quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

CASINHA DE SALVA-VIDAS

Guarita que serve de brincadeira para crianças de dia se transforma em abrigo de namorados à noite.


Nossa residência em Rainha do Mar tinha dois quartos e 10 colchões. Bastava apertar um pouco e surgia lugar para mais um. Vigorava uma generosidade que não conhecia em Porto Alegre.

Os parentes descobriam o endereço e apareciam de repente para descolar uma hospedagem de graça. Nem avisavam, desciam a bagagem com a vibração das cornetas dos sorveteiros. O sofá servia de beliche, não me pergunte como. Um primo acabou dormindo no chão da cozinha. Não se podia pegar água, senão o acordava. Não conferi o telhado, não duvido de tios roncando nas calhas.

Familiares ocupavam as mínimas frinchas. O último a voltar do mar sofreria para puxar uma sesta. Tomar banho, nem se fala, uma fila se formava no corredor, com o pessoal segurando suas roupas.

Apesar da multidão espremida na mesa, dos imprevistos financeiros e da falta de conforto, minha família nunca brigava no mar. O cheiro do mar agia como um chá de camomila. As discussões sobre os problemas de casamento desapareciam na areia branca.

O litoral representava um alegre esquecimento. Dois meses de paz em que não enxergaria a porta trancada do quarto com minha mãe chorando ou meu pai na varanda olhando melancólico para as formigas nos contornos dos azulejos.

Eles selavam um pacto de felicidade. O único momento em que tiravam fotografias. Em todas as minhas imagens da infância, estou com calção de banho. Penso que não existe jeito de ser triste com o barulho do oceano.

Na praia, eu fiz mais amizades do que na escola. As residências sem cercas, a bola que atravessava as fronteiras dos guarda-sóis, o amontoado gostoso da padaria, tudo ajudava para puxar conversa. Amizade acontecia com o esbarrão, não precisávamos saber quem o outro era e de onde vinha. Com um riso, logo estávamos marcando um jogo de futebol ou dividindo um picolé de fruta.

Na capital, havia o cuidado com os estranhos. No litoral, havia o cuidado para não ser estranho.

Cresci aguardando as férias para crescer. Aprendi a andar de bicicleta nas ruas inclinadas de pé-de-moleque. Aprendi a ficar de pé na prancha e ainda acenar para a turma. Aprendi a cortar grama com a camisa amarrada na cabeça como um hindu. Aprendi a dirigir na solidão dos descampados. Aprendi a esperar a chuva amainar jogando cartas e varetas. Aprendi a despertar com o sol inundando o quarto.

Mas aprendi a amar, principalmente.

Eu me apaixonei no momento errado. Conheci Laura justamente no seu último dia de veraneio. A gente se encontrou descendo nas dunas em caixas de papelão. Apostamos corrida, em seguida entramos no mar. Sua boca: um biquíni vermelho cobrindo a brancura maravilhosa dos dentes. Encostei sua mão em meu ouvido. Gemido bom de concha. Brinquei de telefone com os dedos dela. De tanto que me estendi, devo ter ligado para a África.

Na volta, mostrei minha casa. Ela me mandou um bilhete de tarde com desenhos de Minnie. Foi a primeira carta de amor que recebi.

“Fabrício olhos de jabuticaba
Vamos casar? Na guarita. 18h.
beijo
Laura”


Os casais namoravam escondidos na guarita. A escada acentuava a aventura.

Expirava o horário dos brigadianos e os apaixonados se protegiam do vento e assumiam os cuidados do horizonte. Muitas vezes, salvaram a lua em seus mergulhos noturnos.

Escondi o papel no bolso. Com 11 anos, aquilo foi assustador. Como contaria aos pais que iria casar? Preparei uma malinha levando minhas bolinhas de gude, meu time de botão, duas bermudas e três camisas. Achava que era suficiente para uma vida a dois.

Deitei na rede e não me mexi para o tempo passar. Quando não me mexo, é que o tempo demora.

O cansaço doeu e virou saudade. Lutei contra o sono, mas é impossível impedir o avanço do bocejo, sonhei que dava um beijo leve em sua boca de pano.

Minha mãe me acordou às 20h. Estava abraçado à mala.

– Ai, perdi o encontro!

Não vi a menina na manhã seguinte, nem depois.

Quando caminho pelas margens da praia ao entardecer, talvez por cisma, talvez por esperança, espio por dentro das casinhas de salva-vidas.




Publicado no jornal Zero Hora
Foto de Adriana Franciosi
Editoria Geral, p. 55, seção Estrelas do Mar
Porto Alegre (RS), 11/02/20010

12 comentários:

Anônimo disse...

Dois Gaúcho

Diz que o gauchão estava montado em seu cavalo, conduzindo a tropa de gado pelo pampa, de uma estância para outra.
Passando próximo à curva de um rio, qual não foi sua surpresa ao ver dois gaúchos, ambos de bombachas arreada, um
comendo o outro. Diante daquela cena o gauchão perdeu a paciência:

- Mas que diabo, tchê!! - dando dois tiros pra cima - como se não bastasse a fama que tem este estado, os próprios gaúchos
agora contribuem?! Pois vou passar fogo nos dois!!!

O "gaúcho ativo", sem parar de fazer o que estava fazendo, responde:
- Tu não ta vendo que estou salvando a vida deste vivente aqui? - dando umas palmadinhas no traseiro do "gaúcho passivo".
- Mas como assim salvando a vida? - pergunta intrigado o gauchão, trinta e oito ainda em punho.
- O vivente aqui tava se afogando - explica o gaúcho ativo, ainda fazendo o que estava fazendo.
O gauchão ficou meio ressabiado, cofiou a barba e finalmente argumentou:
- Mas se o infeliz tava se afogando, tu tinha que tirar ele da água, fazer uma massagem no peito, uma respiração boca a
boca...
- E como é que tu acha que tudo começou, tchê?

Maria Tereza disse...

"Preparei uma malinha levando minhas bolinhas de gude, meu time de botão, duas bermudas e três camisas." O bom mesmo é a inocência... :)

Anônimo disse...

Que bacana mesmo, hoje em dia não existe mais isso, nem na infância...nasci na época errada eu acho! rsrsrsr! Essa fase é tão boa!

Lí o "Complexo de guaipeca" em casa, bah ri muito...

"Na ausência de programas, criamos passeios para analisar as residências alheias. A curiosidade nos permite ampliar os conhecimentos de decoração."

É bem assim mesmo que acontece!

Mariana da prefeitura de Alvorada, tu me ligou ontem. Já estou seguindo teu blog, muito legal viu! Parabéns pelo teu trabalho!

PAZ.

Anônimo disse...

Quando vejo o sorriso estampado nos rostos das minhas filhas, quando corremos pela orla, quando coloco uma na bicicleta e nos aventuramos calçadão afora, sinto participar de momentos semelhantes ao narrado por vc, poeta.

Anônimo disse...

Fabrício olhos de jabuticaba...Procurei você aquela noite... você não veio!
Beijos
Laura

Anônimo disse...

Ai que liiiinnnnndo texto Fabricio. Lindo porque é simples e o que é simples é bonito. E por isso mais difícil né?
forte abraço
madoka

Lívia disse...

É exatamente neste "olhar" inocente e neste "outro olhar" de mundo que me agarro à suas palavras... É mágico conseguir manter isso vivo, já adulto... Parabéns. Mais uma vez!

Samyta disse...

Tão pueril, lindo, tocante...

Adorei.

As always.

Parabéns!!!

Isa Arth disse...

Olá , Maurício,
Estou acompanhando suas crônicas e adorando!Sucesso!

Violeta disse...

Me fez reviver na memória minha infância na praia de Mariluz...
Hoje, em outra casa de praia, embora muito maior, em uma praia um tanto melhor, não tenho a felicidade que tinha na minha prainha!!!

Parabéns... consegue com suas palavras, tocar corações!!

Anônimo disse...

oiMauricio, conheci vc hoje no programa Espaço Aberto.Adorei a cronica,suas ideias.Parabens.

sheyla Castelo Branco disse...

Você conta como quem fala ao ouvido, escuto o vento e o desespero do seu acordar depois das 18:00. Pueril e lindo,lindo!