quarta-feira, 30 de novembro de 2011

MÁRTIR

Fred é um Heleno de Freitas das Laranjeiras. Executou uma metamorfose lendária. É uma garça que virou pelicano. Não existe bola ou peixe perdido. Marcou oito gols em três partidas na reta final do Brasileiro. Era para ser apenas competente, foi extraordinário.

Nosso texto na íntegra em Rolo Compressor.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

PAREM DE MATAR CACHORROS!

(ou a memória é um retrovisor que não tem como arrancar)

Arte de Hans Hofmann

Na BR-116, é certo que encontrarei engarrafamento e cachorro morto. A cada animalzinho estirado na mureta, tapo os olhos de meu filho Vicente – não é uma boa recordação para se levar à escola logo de manhã.

Mas fui notando que teria que deixá-lo vendado o trajeto inteiro. No intervalo de 10 quilômetros, avistava um novo corpo já despossuído de alma e Deus, inchado e anônimo, sem a gentileza de cruz e o amparo da coleira.

Cachorro atropelado na Grande Porto Alegre é tão frequente quanto as capivaras abatidas na BR-471.

Procurava desvendar como o cão atingiu o miolo da estrada. Na minha idealização, o bicho esquecera o caminho de volta e não contara com sorte ao cruzar a mão dupla. Por uma série de tristes casualidades, fora jogado na loucura assassina de um autorama.

Não me passava maldade pela cabeça. Sei o quanto um cachorro costuma cheirar caminhos e se distrair com facilidade.

Até que descobri que existe um nazismo canino. Cachorros são abandonados na rodovia pelos próprios donos. Aquilo que vejo todo o dia não representa acidentes, é, sim, resultado de uma matança deliberada.

Famílias compram ou recebem de presente um cãozinho, acham que é barbada cuidar, enfrentam uma semana de experiência, gastam demais com ração e higiene, e decidem sacrificar o hóspede. Sem tempo a perder, desaparecem com as provas de uma existência. E ainda raciocinam que não é um assassinato, que Palmira Gobbi é apenas o nome de uma avenida. Fingem acreditar que não cometeram mal nenhum, largaram o pequeno à mera provação do destino.

O motivo é sempre gratuito. Matam o cão para prevenir incômodos. Ou porque ele adoeceu ou envelheceu. Ou porque o remédio e o veterinário são caros ou porque o abrigo é longe e não podem se atrasar para o trabalho.

Que mundo é este? Pela janela, eliminam uma vida com a leviandade de alguém que arremessa longe uma bagana de cigarro, uma embalagem de picolé, um saco de salgadinho. Absolutamente crentes na impunidade.

Quem faz isso não merece perdão. Não merece explicação. Não merece defesa. É um crime premeditado. A mais implacável execução que conheço, antecedida de lenta tortura emocional.

Repare na insensibilidade: o dono mente ao seu cachorro que irão passear, para desová-lo no corredor da morte. Calcule o terror do bichinho quando não entende o castigo, e corre uivando, desesperado, atrás de um carro que nunca será mais o seu.

Cansei de esconder os olhos de meu filho.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 29/11/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16902

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

CONFESSIONÁRIO

Colaboro com matéria sobre a importância dos segredos em nossa vida. Apareceu no Teledomingo da RBSTV, exibido na noite de domingo (27/11/2011).

sábado, 26 de novembro de 2011

MOTORISTA DE TODAS AS SAUDADES

Fã de música sertaneja, a versátil Elisete tem a missão de levar para casa os boêmios que frequentam baile na praia de Quintão, no Litoral Norte. Foto de Emílio Pedroso.

Elisete Varani Mattos, 53 anos, acabou de fazer escova. O cabelo loiro, curto, não tem nenhum fio fora da moldura do rosto. Os lábios estão pintados e nem parece que ela faxinava naquele momento.

Ela trabalha com o que aparecer pela frente. Durante a semana, é pedreira, é zeladora, é manicure, é caminhoneira. Quase impossível prever como os moradores a encontrarão na rua: de bermuda, conduzindo carrinho em construção, ou de boné, liderando fretes. Ela se autodenomina Serviços Gerais de Quintão, balneário de Palmares do Sul, cidade de 11 mil habitantes, a 78 quilômetros de Porto Alegre.

– Nunca digo que não sei, aceito para depois aprender, não tenho escolha – afirma.

Nos últimos três meses, assumiu uma nova função que aumentou sua popularidade no litoral norte do Estado: a de motorista do Clube da Saudade, baile que acontece domingo, das 19h à 1h, no salão da esquina das ruas Esparta e Alegrete.

Separada há duas décadas, mãe de três filhos (Isaías, 29 anos, Everton, 27 anos, e Letícia, 14 anos) e vó de uma neta (Isabela, dois anos), a fã de música sertaneja aceitou a missão de levar os boêmios para suas casas num antigo ônibus de linha. É uma viagem por semana, que permite que os outros bebam sem problema algum. Elisete recebe R$ 100 por mês e carrega 30 pessoas no final da festa, numa cansativa baldeação pelas praias vizinhas.

– Já me sustentei como motorista de caminhão, o pé na estrada é herança de meu pai José Renato. Ele realizava longas viagens pelo interior do Estado em seu Mercedes-Benz cinza. Quando regressava, era sempre feriadão para nossa família de 11 irmãos. O maravilhoso de ir é ter motivo para voltar: a saudade me mantém viva.

O ônibus é velho, a poltrona de couro preto tem o estofado rasgado, o motor tosse e enguiça, mas nada é obstáculo para seu capricho obstinado. Ela não desanima com a feiúra da lataria, nem com a pouca grana – o que é torto tem direito de ser simpático.

Assim como não perde a pose nas atividades braçais, enfeita seu ônibus para receber os passageiros noturnos. Colocou fitas rosa e lilás em todos os bancos. O corredor do veículo lembra a decoração de um casamento.

– Falta apenas um marido, as guirlandas e o órgão tocando “tan na na nan”.

O banco da motorista é um autêntico altar, com ursinhos balançando no retrovisor.

– É uma carruagem do amor! – explica.

Para quem não achou sua cara-metade no bailão, que reúne 200 clientes ao preço de R$ 8 (ingresso masculino) e R$ 5 (feminino), tem uma repescagem no retorno.

– Muitos casais se formam ao sentar lado a lado no transporte, quando haviam abandonado a esperança de se dar bem. Relaxados, conversam melhor, não querem impressionar e se apaixonam.

Sem aparelho de som, ela não se nega a cantar no trajeto. Interrompe o silêncio da madrugada com animado karaokê.

– Ah... Sou também metida a mecânica e cantora, tudo a ver – ela ri.

A amizade cura ressaca. A motorista é a confidente predileta dos clientes, o pronto-socorro das desilusões. Oferece dicas, orienta relacionamentos, conforta os clientes com exemplos de suas desventuras amorosas.

– Do mesmo modo em que os bebês dormem facilmente no carro, meus bebês grandes se acalmam com o sacolejo da minha voz e das pedras irregulares.

Se a noite é uma criança, Elisete é a babá das estrelas e das dunas de Quintão. Põe os baladeiros a dormir com segurança.





Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 26/11/2011
Porto Alegre, Edição N° 16898
Conheça um pouco da praia de Quintão em vídeos

terça-feira, 22 de novembro de 2011

SANTO EXPEDITO

Arte de Jean-Baptiste-Siméon Chardin

Solidão é escutar a casa do outro como se fosse a sua.

Na hora em que atinge esse ponto, esteja certo: você conheceu o isolamento perfeito. Um isolamento físico e mental. Um isolamento de mangueira de chuveiro.

Você descobriu que não tem amigos. Você descobriu que o mundo é um segundo ventre, e não existe cesariana. Você descobriu que não tem passado, o que é muito mais grave do que descobrir que não tem futuro.

Você dorme e toma emprestado o despertador do vizinho. Não que a parede seja fina entre os imóveis, a sensibilidade da audição triplicou com o vazio.

Nada lhe resta senão obedecer ao relógio. Como uma criança deitada na classe aguardando o sino da escola.

Você bebe qualquer som. Consegue identificar o motor da geladeira, coisa que nunca reparava. O que é longe é perto. No fundo tanto faz a distância, não tem nenhum lugar para ir, nem vontade de ficar.

Ao andar pela sala, vê a necessidade de trocar o forro das almofadas, de arrumar infiltrações no teto, de corrigir o mau contato do abajur. Mas não tem vontade de consertar a vida. O conserto exige esperança.

Você se julga morto. O café é chá, a sopa é suco, a segunda-feira é feriado, a terça é sábado, a quarta é domingo, a quinta é paralisação, a sexta é greve geral.

Você está no apartamento alheio mais do que no seu próprio apartamento. Porque nada acontece em seu domínio. O estranho do 302 é quase um colega de quarto, um irmão emprestado, a pessoa mais próxima da história recente.

O interfone do vizinho apita e corre para atender, ansioso por algum resgate.

Você não encontra o que falar consigo, e antes reclamava da falta de assunto com a esposa. Você não suporta dormir pelo excesso de quietude, e antes lamentava a algazarra dos filhos.

Você não tem o que pensar, já conhece seus pensamentos de cor, se acha um livro lido e previsível.

Está no ponto de puxar conversa quando alguém liga por engano. É capaz de discar o 190 para lembrar onde mora.

Ninguém pisa em seu capacho, formado por cartas, contas e propagandas.

Solidão é estar absolutamente entregue ao ouvido, todo ruído do lado de fora soa como de dentro. Um morador puxa a descarga e você corre ao corredor jurando que tem companhia. É ouvir passos na escada e confiar que foi na sua sala. É ouvir um grito abafado na rua e disparar para a cozinha.

É sofrer um susto atrás de outro sem motivo.

Solidão é acompanhar um por um dos seus batimentos cardíacos. Enquanto o monitoramento é distraído, tudo bem. Na hora em que você começa a contar, esteja certo: você enlouqueceu.

O nome disso é desemprego.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 22/11/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16894

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

sábado, 19 de novembro de 2011

O QUE É O QUE É

Alunos da Escola João Carlos Rech treinam para gincana municipal. Foto de Adriana Franciosi

No Rio Grande do Sul, não existe cidade do interior, mas somente capitais.

Bento Gonçalves é a capital do vinho. Caxias do Sul é a capital da uva. Santa Cruz do Sul é a capital do fumo. Pelotas é a capital do doce. Novo Hamburgo é a capital do calçado. Nova Prata é a capital do basalto. Em cada pórtico, está gravado o orgulho de uma cultura ou a vaidade de uma economia. Muitas vezes a identidade é resultado de uma peculiaridade famosa do lugar, a exemplo de Cândido Godói, que todo mundo sabe que lidera a taxa de nascimento de gêmeos no país.

Quando não há fabricação de um produto dominante, municípios não ficam atrás e criam lemas sentimentais. Como Alecrim, terra do reencontro, ou Aratiba, local da Energia Positiva, ou ainda Paim Filho, celeiro da solidariedade. Em nossa peregrinação pelo continente pampiano, destacamos Vera Cruz, a curiosa e insuperável capital da Gincana.

WAR

A 166 km de Porto Alegre, com 22 mil habitantes, Vera Cruz é a regressão à infância. Melhor do que hipnose ou túnel do tempo. Retoma-se uma época escolar em que era natural disputar corridas de saco, puxar o cabo de força e fazer rifas.

A gincana é uma febre coletiva. Desde 1989, nos primeiros dias de junho, cinco mil pessoas são mobilizadas para desvendar tarefas gigantescas e concorrer a R$ 25 mil em prêmio. As equipes têm sedes próprias, verdadeiros diretórios políticos abertos o ano inteiro, filiando voluntários e organizando eventos beneficentes para arrecadar fundos.

– Vencer uma gincana é nossa Copa do Mundo, corresponde a entrar para a história da província – esclarece o dentista Cássio Hoff, 32 anos.

– Fiquei rouca por meses, é a glória da minha vida – avisa a estudante Elisandra Rauper, 24.

Com o sigilo de vestibular, uma equipe especializada monta o concurso envolvendo exercícios de matemática, episódios do arco da velha e atividades esportivas. As questões nunca se repetem. O objetivo é homenagear o conhecimento de diferentes gerações dentro de uma família.

– O filho valoriza o que o pai sabe que valoriza o que o avô sabe que valoriza o que neto sabe. Um ajuda o outro a completar os trabalhos. Não vejo nada tão bonito como uma criança exclamando: “Minha mãe conhece a resposta!” – diz Juliano Pauli, 30, coordenador da gincana.

Durante 72 horas consecutivas, a população para, e assiste uma divertida guerra entre seis equipes. O mapa da cidade se converte num tabuleiro de War. A rivalidade é do tamanho de um GreNal, da magnitude folclórica de um duelo dos bois Garantido e Caprichoso.

– Baixa um espírito de combatividade. Amigos de diferentes equipes se dão um tempo até o fim da competição, viram espiões – alerta Cássio, que foi obrigado a mudar de equipe, dos Selvagens para a heptacampeã Kaimana, senão sua esposa Sabrina pediria separação.

SUPERAÇÃO

Já foram 350 charadas distintas em 23 edições. A criatividade não tem fim. Sobressaem operações faraônicas como encontrar a maior quantidade de fichas telefônicas em oito horas (a vencedora coletou 254 fichinhas) ou trazer um preá ou um louva-a-deus em menos de 30 minutos.

– O banco de dados das equipes supera o cadastro da prefeitura – brinca Hoff.

Ninguém tem medo do vexame. O desejo de vencer supera o constrangimento. Empresários, por exemplo, correm 100 metros equilibrando frutas na cabeça. Os prazos apertados não permitem explicações. Encontros repentinos se assemelham a sequestros, o bucólico trânsito da Rua Cândido de Medeiros trepida em fuga de malucos.

– Gritamos para uma colega: “Entra no carro”, ela deve confiar – lembra Patrícia Neves, 21.

O cemitério se eleva a uma peça fundamental na definição do vencedor. Procurar um morto que nasceu numa determinada data, no apogeu escuro de madrugada, é uma solicitação quase tradicional, a sobremesa do suspense.

– Trata-se de um jogo maravilhoso de dedução, um momento detetivesco, de juntar pistas e atingir uma revelação – define Juliano.

Crianças passeiam por lápides decorando sobrenomes alemães, sem ressabio de fantasmas e assombrações. Desde pequenas, desprezam o medo do escuro e do sobrenatural para somar pontos.

Em Vera Cruz, gincana é brincadeira séria. Que ganhe o mais vivo.







Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 19/11/2011
Porto Alegre, Edição N° 16891
Conheça o cobiçado troféu da gincana municipal

terça-feira, 15 de novembro de 2011

VEJA SE VOCÊ É CIUMENTO

Arte de Giorgio de Chirico

(Teste infalível)

(  ) Ciumento mesmo não diz alô ao telefone, já sai falando: “Onde você está?”. É um GPS movido a energia solar.

(  ) Ciumento mesmo não pergunta, dá a resposta no lugar do outro. Não oferece tempo para sua companhia pensar.

(  ) Ciumento mesmo não questiona seu destino, é ansioso demais para acreditar em qualquer coisa. Ele aparece de repente em seu trabalho.

(  ) Ciumento mesmo conversa com a sogra mais do que com a mãe.

(  ) Ciumento mesmo condena primeiro para julgar depois. A ofensa é preventiva.

(  ) Ciumento mesmo odeia os amigos solteiros do seu marido/esposa, e deseja sempre casar os próprios amigos.

(  ) Ciumento mesmo enxerga a culpa como uma vantagem. Pressiona que sejam feitas promessas a todo instante. O objetivo é colecionar desfeitas.

(  ) Ciumento mesmo confere os bolsos antes de pôr as roupas na máquina de lavar.

(  ) A sentença preferida do ciumento: “Você não me valoriza”. A ameaça preferida do ciumento: “Você acha que sou idiota e não vi?”.

(  ) Ciumento mesmo não liga uma só vez. Deixará várias chamadas não atendidas no curto intervalo de três minutos.

(  ) Ciumento mesmo é uma câmera escondida dentro da rotina. Não tem lembranças, e sim reprises.

(  ) Ciumento mesmo (mulher) chama qualquer ex dele de vaca. Ciumento mesmo (homem) chama qualquer ex dela de boiola.

(  ) Ciumento mesmo é um operador de cartão de crédito, nunca termina de confirmar informações.

(  ) Ciumento mesmo espalha pertences pelo carro do seu par a fim de marcar território. Não estranhe se aparecer, da ala feminina, lingerie no bolso do banco, secador no porta-luvas, liquidificador no assento de trás, porção de cabides no porta-malas. Da ala masculina, o costume é plantar artigos esportivos no veículo (taco de beisebol, capacete de rúgbi e bolinhas de golfe).

(  ) Ciumento mesmo não “mexe” nas gavetas, mas “arruma” as gavetas e ainda espera agradecimento.

(  ) Ciumento mesmo fecha o Facebook, o Orkut e o Twitter para obrigar o(a) parceiro(a) a também apagar as contas na rede. Assim como recusa convite para beber ou dançar determinado a cobrar a retribuição do gesto.

(  ) Ciumento mesmo joga verde para colher os podres. Alega que ninguém alertou nada, ele é que tem sexto sentido e vive descobrindo sozinho.

(  ) Ciumento mesmo não discute a relação. No seu entendimento, ele é forçado a brigar para salvar o relacionamento.


Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 15/11/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16887

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

RAZÕES PARA AMAR PORTO ALEGRE


"115 razões para amar a cidade"
Veja Porto Alegre
Editora Abril
Ano 44 (Veja 2243)
Novembro de 2011

domingo, 13 de novembro de 2011

ALEGRIA DEPOIS DOS 85

A RECEITA DE QUEM VIVE MAIS NO INTERIOR

A cidade do interior é uma aliada da longevidade.

Velhos não são velhos, tornam-se referência cultural, são chamados respeitosamente pelo sobrenome, não abandonam a própria casa, mesmo com a independência dos filhos, e assumem o papel de conselheiros dos netos.

A receita é permanecer trabalhando e sendo visto, não mudar os hábitos, não fugir do convívio, continuar encontrando os amigos e seguir com as atividades domésticas e familiares. Dois personagens mostram que envelhecer não é sinônimo de isolamento.

Em Ibirubá, município de 18,7 mil habitantes da Região Noroeste, Etwin Schweig completou 95 anos sem tirar o pé do acelerador do seu trator vermelho. Já nas Missões, em São Luiz Gonzaga, terra de 34,5 mil moradores, Giovani Fontoura está com 85 anos bem alinhados. Todo dia veste terno e gravata para atender os clientes no balcão de sua joalheria.

TANGO DE ALEMÃO

Disposição não falta a Etwin Schweig, 95 anos, para tocar bandônion ou cortar lenha. Fotos de Marcelo Scapini.

– Onde está Etwin Schweig?
– Cortando lenha.
– Onde está Etwin Schweig?
– Foi para o centro buscar o jornal.
– Onde está Etwin Schweig?
– Na rádio, tocando bandônion.
– Onde está Etwin Schweig?
– Com seu grupo de Tiro ao Alvo.
– Onde está Etwin Schweig?
– Nos festivais.

O que Ibirubá mais pergunta é onde está Etwin Schweig. Ele não cessa um minuto. Ou está carpindo ou limpando o pátio ou gemendo sua sanfona para alegria dos cachorros, que uivam sincronizados às frequências musicais.

Sua disposição é lendária na pequena cidade. Artista autodidata, faz questão de autografar o CD Schweig e seu bandônion com a data de nascimento: 3/1/1916. É o toque final para humilhar os preguiçosos.

– Minha base espiritual é sesta e chimarrão. E não se meter em confusão. Se o outro não me bate, eu não brigo.

Com 95 anos, viúvo, não há como controlá-lo. Morador de 36 hectares às margens da rodovia Cruz Alta-Tio Hugo (ERS-223), investiga o movimento das ruas em cima de seu trator vermelho (entre as crianças, mais famoso do que o trenó do Papai Noel). Das janelas das casas, meninos e meninas acenam quando avistam a simpática e fofa cabecinha branca do motorista.

– Troquei a pressa pela memória, e saí ganhando – pontua.


Se contar o tamanho da família, os shows pelos festivais de Passo Fundo e Frederico Westphalen nunca estarão vazios. Tem oito filhos, 26 netos (incluindo o prefeito Gustavo Schroeder), 22 bisnetos e seis tataranetos.

– É uma torcida desorganizada, numerosa demais para controlar – brinca o filho Rudi, professor aposentado, 64 anos.

Schweig toca nas escolas da região, ensaia manhã e tarde, não falta a um encontro do grupo de amigos “Os Divertidos”, joga conversa fora na Agência de Correios e não passa uma data sem mexer na terra ou limpar sua Massey Ferguson.

– Teimoso é quem teima com ele – afirma a filha Lor, 62 anos.

Mambembe, extrovertido, econômico, sempre se virou com pouco. Aprendeu meia dúzia de composições antes de servir ao Exército. Viveu com esse limitado repertório durante uma década, animando os bailes alemães.

– Como não tinha recursos para aulas particulares, começava e recomeçava as seis canções por noites inteiras – confessa.

– Hoje gravei 13 peças, já estou melhor do que naquela época.

Seu segredo é tocar a mesma música como se fosse uma nova. Com igual frescor e sincera descoberta. Todo mundo pensa que é outra e dança com a força de uma estreia.

– Acho que é assim que sou, não canso de me repetir.

CONDUZINDO MISS JESY

Com vitalidade de sobra, Giovani Fontoura, 85 anos, madruga para trabalhar na sua joalheria. Fotos de Rogério Sartori.

Ninguém acerta sua idade, até Giovani Fontoura erra de primeira, diz que tem 83 anos, vacila, coloca a mão no queixo para acertar seus 85 anos na segunda tentativa.

Não é problema de desmemória, é excesso de vitalidade.

A cada amanhecer, ele desmente sua certidão de nascimento. Morador de São Luiz Gonzaga, casado há mais de seis décadas com Jesy Poppe, 81 anos, não reclama de coisa alguma. Nem do casamento, sequer de dor nas juntas. Muito menos de levantar cedo, às 5h, para abrir sua joalheria, onde continua atendendo ao lado da mulher.

– Os minutos que usaria para reclamar uso para agradecer – esclarece.

Puro sorriso, irônico, proprietário de um jazigo para ter sorte, costuma se antecipar às situações para oferecer ajuda e se mostrar necessário. Tanto que se tornou o motorista oficial da própria empresa. Não transfere responsabilidades aos empregados. Viaja semanalmente para Cruz Alta e Porto Alegre com objetivo de renovar o estoque.

Com jeito de lorde, não abre mão da modernidade, do estofado de couro creme, do som de última geração e do câmbio automático.

– É um velhinho trigueiro – conceitua Jesy.

Bota trigueiro nisso. Anda embecado, relógio grande, sapatos envernizados. É um dos homens mais elegantes da Avenida Senador Pinheiro Machado, a ponto de ser chamado pelas lojas de roupas masculinas a dar palpite nas compras de cada estação e preparar o nó das gravatas das vitrines. Típico sujeito que toma café puro, usa mesóclise, esconde o apelido familiar dos outros (Nenê) e tem um lenço branco no bolso do terno.

– O máximo de seu despojamento é dobrar as mangas da camisa – confessa a companheira.

Ostenta nobreza sem sacrificar a rotina atlética. Não difere de quando era adolescente. Faz musculação três vezes por semana e corre nos domingos. Para completar o quadro, abusa dos traços românticos.

– Se o sonho feminino é receber joia, dei uma joalheria inteira para minha mulher.

Filho de agricultores, sobrevivente das dificuldades da roça, onde dividia a fome com oito irmãos, desdenha da aposentadoria.

– Trabalho há 71 anos. Comecei consertando relógios, talvez tenha aprendido a atrasar meu próprio tempo.

Giovani brinca de ser a campainha da loja. Grita bom-dia assim que alguém ameaça atravessar os limites do capacho do prédio. Qualquer visitante que entra ganha atenção de um profeta.

– Não gosto de cidade grande. Na cidade pequena, você vive melhor e todo mundo lembra quem você é. Morremos quando somos esquecidos.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, ps. 34-35, 8/11/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16885

sábado, 12 de novembro de 2011

O SALÃO DE MOLAS E TÁBUAS CANTANTES

Encerada com esmero, pista com molas impulsiona os dançarinos. Foto de Emílio Pedroso.

Não tem como fugir da trepidação da música, esqueça o ferrolho da infância e o apoio das paredes.

Um salão de baile especial põe os pares a dançar sem parar. O nome da cidade já é uma ordem ao movimento: Três Passos, de 24 mil habitantes, a 477 quilômetros de Porto Alegre. No interior do município, na localidade de Baixo Erval Novo, a principal atração da pequena comunidade de origem alemã é a Sociedade de Cavaleiros Cantores de Lira e Damas Sempre Alegres.

O salão de madeira, impecavelmente encerado, traz uma pista revestida de molas, que pode impulsionar os dançarinos em 15 centímetros.

– Com mais de cem pessoas juntas, a sensação é que flutuamos, andamos nas nuvens – diz Jorge Bohn, 44 anos.

Quem entra no local não desfruta de direito de escolha, é condicionado a mergulhar no balanço e aderir ao fervor das cornetas e gaitas das bandinhas. Aprende a dançar voando.

– Voar é certo, dançar não sei – diferencia Vilma Bohn.

Os bailes mensais são o passatempo das famílias de agricultores, uma folga benfazeja na dura rotina da lavoura de trigo, milho e soja.

Completando 60 anos, o salão foi criado para facilitar os travados e os tímidos. Por debaixo das tábuas, molas e pneus agem como intermitente trampolim.

– Dançar é pular numa piscina, não dá para ficar parado, tem que mexer os braços e as pernas senão morremos afogados – explica Ido Schu, 63 anos.

– Não vem a ser uma cama elástica, mas é mais do que um colchão, produzindo uma vibração infinita, um sobe e desce de enjoar marinheiro de primeira viagem – comenta o presidente do clube, Nadir Fuhr, 53 anos.

Mas a facilidade motora é apenas aparente na visão de Elaine Petersin, 47 anos, a mais conhecida pé de valsa da vizinhança:

– A pista exige alta precisão, treme muito e o novato não acerta o andamento e se arrepende de aceitar o convite.

Elaine fez questão de casar nas “tábuas cantantes” com Alcídio, 49, até encardir a cauda imaculada de noiva com números de vanerão, xote e valsa.

– Danço aqui desde criança, oferecemos show de graça – exibe-se Alcídio.

Azar dos bêbados que não suportam nem 10 minutos do sacolejo e terminam levados ao nocaute nos primeiros rounds da noite.

– O ébrio logo encontra a lona – graceja Nadir.

A solidariedade é a mais contundente consequência da pista. O espaço abole o egoísmo e isola os individualistas. Não existe como dançar somente cuidando do próprio domínio. Desde o princípio, é trabalho de equipe, coreografia coletiva. Os convidados se enlaçam em um longo e atento nado sincronizado. Se um erra, os demais sentem o tropeço.

– Uma falha qualquer gera o efeito dominó, periga o povo inteiro cair – esclarece Marli Bohn. – Nosso lema é um por todos, todos por um.

O três-passense demonstra ser um legítimo mosqueteiro do bailado.




Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 12/11/2011
Porto Alegre, Edição N° 16884
Conheça a sociedade de Baixo Erval Novo

terça-feira, 8 de novembro de 2011

QUERO UMA CASA NO LITORAL

Arte de Allen Jones

Meu desejo é ter uma casa no litoral gaúcho.

Não me aquieto até que cumpra meu objetivo. É uma espécie de aposentadoria, testamento emocional. Uma residência em Porto Alegre e outra para o veraneio. Fugiria nos dias quentes para o refrigério marítimo. Xangri-lá seria minha Isla Negra, onde escreveria as memórias e guardaria a coleção da revista Placar.

Desde adolescente, observo classificados à procura de barbadas. É surgir uma placa de “vende-se” no alto de uma janela que arregalo as sobrancelhas e decoro o número da imobiliária. No celular, deve existir mais de 30 números de corretores.

Sei que os filhos já cresceram, que não vale a pena manter um endereço fechado o ano inteiro para reabrir nas férias, que terei que pagar caseiro, taxas e impostos, que o melhor é viajar pelo país com o mesmo dinheiro.

Apesar das contraindicações, não desisto, teimo que quero e quero, como uma criança segurando chocolate no supermercado. Compenso a falta de argumentos com beiço.

– Você já parou para pensar o motivo de tanta vontade? – perguntou a amiga Diana Corso.

– Para descansar – respondi.

– Me engana que eu gosto, busca uma casa na praia para brincar de Interior.

Sua frase entrou na perna como um anzol. Ela me pescou, tirou o chão das palavras. Exata definição: ambiciono uma casa na praia para reaver a rotina simples e bucólica do interior do Estado, é meu modo de voltar a ser menino e não me preocupar com paranoia, travas, fechaduras, alarmes e cerca eletrônica.

É minha saudade do quintal, das roupas dormindo no varal, do mosquiteiro e das janelas abertas. É minha saudade da facilidade de fazer amigos, do chimarrão na varanda e de brigar sobre política com os vizinhos. É minha saudade de cumprimentar qualquer um que passa pela rua – qualquer um! – sem a necessidade de conhecer. É minha saudade de jogar cartas e rir novamente de piadas antigas. É minha saudade de preparar bolo de surpresa, de cultivar horta, de comprar veneno para formigas. É minha saudade de ser educado e pontual, do artesanato da vida, da carpintaria dos minutos.

Está explicada a adoração do gaúcho pela sua orla. A Estrada do Mar é o nosso túnel do tempo. O fanatismo pelas praias retilíneas é a possibilidade de retornar às origens, a uma época em que as crianças saíam a andar de bicicleta e apenas ressurgiam no jantar. E não havia o medo do pior, mas a confiança no melhor.

Ao passar pelo nosso litoral, vejo empresários cortando a grama, jogadores de futebol arrumando o telhado, pesquisadores varrendo a calçada, um mundaréu de gente morrendo de saudade, como eu, das discretas e deliciosas cenas domésticas e interioranas.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 8/11/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16880

domingo, 6 de novembro de 2011

CAFÉ FILOSÓFICO

De que modo reagir em famílias formadas com filhos de pais ou mães diferentes, meio-irmãos, guarda partilhada, casais homoafetivos, amigos conselheiros, avôs jovens? Como combinar rigor com liberdade? Como educar a criança no meio da ausência de papéis fixos? Funcionou a substituição da imposição de limites pela importância dos exemplos?

Acompanhe minha participação no Café Filosófico, em Campinas (SP). O encontro virou programa para TV Cultura, com exibição no domingo (6/11), às 22h.

sábado, 5 de novembro de 2011

WOODSTOCK DE CARROS

Caixas enormes que reproduzem um som ensurdecedor dão o ritmo da juventude da cidade de Giruá. Fotos de Emílio Pedroso

Eles não usam malas, não se interessam por ocupar bagageiros com mudas de roupas. O que vale é reservar o espaço interno do automóvel para colocar som mecânico; apenas isso. E um som todo-poderoso para acordar mortos, desembrulhar múmias, invencível como as trombetas de Jericó.

É um clássico da juventude do Interior se reunir na praça com o porta-malas aberto, caixas imensas e ensurdecer os vizinhos com os hits do momento.

Em Giruá, cidade de 17 mil habitantes, a 465 quilômetros de Porto Alegre, a turma de adolescentes foi barrada por lei municipal e ficou proibida de circular com música superior a 80 decibéis. Perdera sentido o ponto de encontro para namoros e exibicionismos eletrônicos no canteiro central Aládio Ferreira.

Sensibilizado com a choradeira dos amigos, o tabelião Rogério Corrêa Trage, 32 anos, não abandonou a irreverência e criou na cidade o Woodstock do som automotivo. Abriu seu sítio no Campo dos Carvalhos a noitadas intermináveis, onde recebe 5 mil pessoas e 350 carros altamente aparelhados. Motoristas disputam troféus em 20 categorias, para descobrir quem tem o melhor conjunto tonitruante.

– Botamos para derreter – avalia o comerciante Sydnei José da Silva, 20 anos, vencedor de 23 títulos em disputas na região.

– É um racha musical. O critério é manter a qualidade com a melodia cada vez mais alta. O candidato que distorce é desclassificado e dá adeus ao pódio – explica Trage.

– Para os mais velhos é poluição sonora, para nós é arte – diz o também multicampeão, Jilsemar Vargas, 21 anos, que acumula 23 canecos.

O encontro mensal, que já está na 4ª edição, converteu uma paisagem rural, bucólica e arcadista, permeada de vacas, ovelhas e cavalos, em autódromo de faróis e luzes piscantes, com torcida organizada nas boleias e nas cabines de picapes.


Um dos veículos mais famosos é a Ranger Tenebrosa, que atinge 180 decibéis, mais do que o dobro do permitido em vias públicas. Pirâmides de alto-falantes são distribuídas na traseira formando um paredão de três metros de altura e dois metros de largura.

– Diante dela, o osso treme e a pele vibra, somos faraós da música eletrônica – brinca o dono Marco Antonio Garcez, 40 anos.

A gurizada valoriza o passatempo como uma carreira. Há competidores que gastam R$ 200 mil para comprar acessórios pelo simples prazer de assistir aos rivais comendo poeira.

– O básico do básico custa R$ 5 mil. Não é pouco investimento – explica Trage, que empenhou R$ 18 mil em uma camionete.

Jilsemar pediu dinheiro emprestado ao irmão. Rafael dos Santos, por sua vez, rogou mesada aos pais. O segredo está em abrir uma linha de crédito familiar para fazer bonito com as mulheres.

– A disputa é uma afirmação da masculinidade, uma forma de delimitar território e chamar a menina para dançar. Manda na festa aquele que toca alto e escolhe música boa – conceitua Francieli Lemos, 24 anos.

– No fundo, não deixa de ser um concurso do tamanho de instrumento entre os homens – completa Jilsemar.

Se perigar, até bicicleta em Giruá circula com amplificadores. Silêncio mesmo somente no cemitério, e olhe lá.




Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 05/11/2011
Porto Alegre, Edição N° 16877
Conheça a fazenda do barulho, em Giruá

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

ABRAÇO BOM

Foto de Rodrigo Rocha

Vou autografar meu livro de crônicas Borralheiro na 57ª Feira do Livro de Porto Alegre. A sessão ocorre neste sábado (5/11), às 19h30, no Pavilhão Central da Praça da Alfândega, em Porto Alegre (RS). Espero você com canetas coloridas e o pião do riso.



“O amor é perigoso para quem não resolveu seus problemas. O amor delata, o amor incomoda, o amor ofende, fala as coisas mais extraordinárias sem recuar."

terça-feira, 1 de novembro de 2011

PELA EXTENSÃO

Há histórias que me enervam. Tenho medo de dormir até com a luz acesa. Não paro de andar pelos corredores, inquieto como um copo espírita.

São relatos que despertam a nítida sensação de que a vida é um majestoso percurso de voz e eco. Aquilo que digo num dia terá resposta no seguinte, que o melhor é ser responsável e atento desde cedo.

Minha amiga Teresa brigava muito com seu pai na adolescência. Época de reunião dançante, meias de lurex coloridas, carteiras emborrachadas.

E telefonemas longos, que custavam uma fortuna e recebiam paranoica fiscalização.

No auge dos 16 anos, Teresa tricotava fofocas com o namorado, e o pai Omar acalentava a triste mania de escutá-la pela extensão.

A quebra de sigilo telefônico acontecia pela própria família. Vigorava arapongagem amadora para descobrir o que os jovens aprontavam.

As casas contavam com dois aparelhos, um na sala e um segundo mais privativo, no quarto ou no corredor.

O trinido vinha para Teresa, e o pai protestava:

– É seu namorado, atende logo e não demora, que estou esperando ligação.

Todos sempre esperavam alguma ligação. Todos sempre demoravam. Todos sempre reclamavam.

Teresa colocava os pés na parede, enrolava os cabelos com uma caneta e não cansava o ouvido. O pai fingia que ia dormir e acompanhava secretamente a serenata do casal. Criou uma série de métodos para não ser identificado. Erguia bem devagarzinho o gancho e segurava o pino com a mão esquerda para evitar ruídos. Prendia o ar, e mergulhava literalmente na correnteza verbal. De modo nenhum, suspirava ou tossia. Resistia no esconde-esconde, com taquicardia de ladrão novo. Às vezes, era desmascarado e a filha berrava:

– Pai, baixa o fone!

Na maior parte dos contatos, saía impune. Teresa odiava a bisbilhotice. Reclamava da falta de privacidade. Formulou um padrão de comportamento para censurar a intrusão fantasmagórica. Quando vinha linha cruzada, lá estava o espião. Quando a dicção falhava, lá estava o grampo.

Teresa hoje tem 50 anos. Seu pai morreu há duas décadas. Ela nunca mais ergue um gancho sem cogitar que Omar cuida dela. Tem vergonha de pensar nisso - apoiando a coisa horrível que ele fazia -, porém torce mesmo para que esteja ouvindo tudo no outro lado da linha: prevenindo maldades, aconselhando caminhos.

No meio de uma conversa comigo, bateu um desespero e ela gritou:

– Pai, não baixa o fone!

No início, não entendi: – Pai? Que pai?

Depois fui entendendo que morrer é não ser visto e permanecer vivo na extensão.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 1/11/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16873