terça-feira, 30 de abril de 2013

SOU UM ASPIRADOR DE PÓ

Arte de Peter Blake

Se quiser me ofender, terá trabalho.

Não facilito a vida do agressor.

Ele vai suar frio, passar sufoco, esclarecer questões, explicar posicionamentos.

Não sairei de cena chorando logo que ganhar um desaforo. Não aceitarei o figurino de vítima. Não me farei de coitadinho. Não me trancarei no quarto. Não evitarei o convívio.

Sou muito escolado em bullying para acolher rapidamente desaforo. Só eu mesmo posso me ofender e me perdoar – mais ninguém.

É o que todos deveriam pensar antes de sofrer.

O debochado não tem repertório. Ele guarda uma ou duas tiradas engraçadas que podem ser rebatidas com a autocrítica e inteligência.

Não se veja derrotado no início do jogo, não se enxergue constrangido por antecedência.

No Ensino Fundamental, na abertura das aulas, Marquinhos, líder da bagunça e das baixarias, buscou me humilhar na frente dos colegas. Quando a professora abandonou a sala para repor o giz, aproveitou a ausência e se aproximou de minha mesa.

Ele me analisou, analisou e despejou o veredito:

– Você tem cara de “aspirador de pó”.

O novo apelido vinha do nariz avantajado. Era uma versão doméstica para tamanduá.

Pronto: a turma inteira gargalhava alto de mim. A investida sugeria uma desmoralização do nome e sobrenome dali por diante.

Mas engoli a vergonha como uma aspirina a seco. Respirei fundo. E, de modo inédito, diferente de todas as vezes que me tolhi e me escondi, que fechei meu rosto nos braços, decidi responder. Concordei com a observação.

– Sim, eu sou um aspirador de pó.

Ele não atinou o que desejava concordando, e completei:

– Sou mesmo um aspirador de pó, que bom que você descobriu. Vem trocar meu saco!

Ele se calou. A turma agora reagiu a meu favor, dobrou o volume das risadas. Foi uma histeria coletiva, cadernos voando, pés batendo no chão, palmas estalando.

É certo que ele não sabia o que retrucar. Comeu a língua. Patinou na palavra. Demorou a perceber o estrago. Ficou branco, pálido, lesma.

Não contava com uma reação bem-humorada. Uma resposta espirituosa. Quem agride não programa a tréplica. Planejava criar uma tristeza em mim e abandonar a vítima no chão.

Mas não deixaria por menos. Nunca mais.

Marquinhos desapareceu ao longo do tempo, como poeira ranzinza da classe. Não esperava que o aspirador de pó estivesse ligado.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 30/04/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17418

QUESTÃO DE HONRA


Arte de Peter Blake

Numa palestra, um adolescente me perguntou como deveria reagir às mudanças de comportamento. Relatava a inversão de papéis masculino e feminino, onde as posições mão estão mais definidas. Ele me questionava: "O que me recomenda fazer?"

Eu respondi de bate-pronto:

– Mijar de pé!

O homem só não pode perder o direito de mijar de pé. A decadência é irreversível quando aceita mijar sentado.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (30/4) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola:


segunda-feira, 29 de abril de 2013

A MÁQUINA RECEBE JOÃO CARLOS MARTINS

O maestro João Carlos Martins decora as partituras. Acredita na divisão da mente entre o rítmico, o melódico e o balanço.

Passou madrugadas tentando controlar a distonia tocando em um piano mudo.

Confissões das notas em meu programa A Máquina, da TV Gazeta, exibido na noite de terça (23/4).

domingo, 28 de abril de 2013

POR QUE VOCÊ NÃO ARRUMA NAMORADO?


Arte de Fatturi

Você não entende como não começa um relacionamento, como não se apaixona novamente, como não muda de vida.

Reclama da ausência de opções. É bonita, inteligente, divertida.

Minha hipótese é que não abandonou o passado.

Mantém flertes com o ex indiferente, ou continua saindo com sujeito que jamais assumirá o romance.

Raciocina que, enquanto não vem o escolhido, o príncipe, pode se entreter com velhas paixões.

Mas todos pressentem quando uma mulher está enrolada, todos intuem o caso mal resolvido, e não se aproximam.

Não virá ninguém para espantar os corvos e dissolver essa atmosfera pesada de Prometeu.

É trabalho em vão soterrar o precipício. Mulher desinteressada é impossível.

Ninguém ousará quebrar o monopólio de sua dor.

Você cheira a encrenca, cheira fidelidade a um terceiro. Seus ouvidos estão lentos, sua boca paira em distante lugar, seus olhos se distraem seguidamente.

Não tem brilho na pele, porém tensão nos ombros.

Sua respiração é um poço de suspiros.

Vive ansiosa por notícias, por reatos, mensagens. Não presta atenção, não se entrega para as casualidades.

Quem enxerga fantasmas não vê os vivos.

Não dá para começar um novo amor sem abandonar os anteriores. Errada a regra que a gente somente esquece um amor antigo por um novo.

Está com o corpo fechado, costurado, mentindo que já não sofre mais com as cicatrizes.

Espera herança, não sai para trabalhar ternuras.

Mendiga retornos, não cria memória.

Sua nudez não responde ao pedido da curva. Nem balança com a música favorita.

Está tomada do carma, do veneno, do ressentimento.

Pensa que está bem, mas está em luto. Uma mulher em luto não permite arrebatamentos, afasta-se na primeira gentileza que receber, recusa a prosperidade das pálpebras piscando nos bares e restaurantes.

Você nunca vai encontrar seu namoro, seu casamento, sua paz, se não terminar de se arrepender.

É preciso guardar o máximo de ar, ir ao fundo, descer na tristeza e nadar para longe dela.

Não amará outro alguém sem solucionar pendências, sem recusar o homem que não a merece, o homem que não vai embora e tampouco fica.

Não amará outro alguém sem abandonar algumas horas de alívio em motéis.

Não amará outro alguém se não bloquear as recaídas, se insistir em ressuscitar as promessas.

Uma mulher nunca será inteira se mantém romances quebrados.

Nunca estará presente.

Nunca estará aqui.

Entenda, minha amiga, só ama quem está disposta a ser amada.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 28/04/2013 Edição N° 17416

quinta-feira, 25 de abril de 2013

FACA NA BOTA

Você cede?

Ou é teimoso e nunca recua?

Se acha o bom samaritano do relacionamento?

Confira se o orgulho é o veneno da relação no meu quadro DRnaTV, da TVCOM, com produção de Fernando Muniz e mediação de Sara Bodowsky.

A exibição aconteceu na noite de terça-feira (23/4).

BEM-VINDO, MEU AMOR



Bem-vindo, meu amor, nosso soluço não é mais do choro, agora é do riso, pelo excesso de alegria.

Deixe para trás os ossos dos homens que não souberam lhe amar. Os ossos não têm olhos.

Deixe as despedidas ingratas, a avareza dos outros.

Deixe o que não traz mais lembrança; mentiras jamais acalmam.

Não seremos prisioneiros da culpa e do remorso, não seremos reféns das incertezas.

Incertezas envelhecem, as dúvidas não.

Você cria mistérios, sou mais vivo porque me questiona, sou mais seu porque não para de me perguntar o que aconteceu.

Venha engolir vento comigo, inspirar o primeiro ar da manhã da estrada, lavar as mãos no solzinho tímido.

Vem comigo, amor, cheira meu pescoço. É cheirando meu pescoço que descobrirá se falo a verdade. O cheiro é minha confidência. Meu cheiro tem o seu cheiro. Transpiro o que leio em sua pele.

Amar só traz simplicidade.

Amar só traz humildade.

Amar antes só me trouxe para perto.

Para aqueles que pensam que caso e me separo com facilidade, você será minha contradição, a insistência da virtude, a volúpia dos sapatos.

E vamos rir de soluçar. Pois ninguém acreditou na gente, a não ser a gente. Temos a vantagem da intuição, amor.

Você dormiu colada em meu corpo desde o início. E não pedimos trégua, água, tempo.

Sua respiração me assobia, me canta, me compõe.

Você não escondeu nada de mim.

Você conversa comigo como se eu fosse seu próprio pensamento.

Você já fez minha barba para sentir o quanto custa ferir meu rosto.

Eu já penteei seus cabelos para sentir o quanto um nó puxa a cabeça para baixo.

Bem-vindo, amor, nosso passado é o nosso futuro.

Você escolhe a roupa na última meia hora de sono. Eu me visto de suas escolhas pelo resto do dia.

Bem-vindo, amor.

Brigaremos no supermercado para definir nossa janta. Faremos festa ao descobrir um pequeno aumento no salário. Puxaremos assunto com os garçons. Receberemos elogios de estranhos comovidos com nosso abraço e inveja dos casais mais antigos. Tocaremos os pés na madrugada e ficaremos com vontade de acordar. Encostaremos os braços nos filmes e ficaremos com vontade de dormir. Jamais trocaremos de lado na cama. Dividiremos o jornal de domingo. Gostaremos das mesmas coisas das vitrines. Seu número em meu telefone constará como um segundo nome. Seus anéis estarão dentro de meus livros. Minhas mãos estarão dentro de suas mãos.

Bem-vindo, amor.

Felicidade não é para ser vivida sozinha. Sozinha, ainda é segredo.

A felicidade é uma denúncia. Vou denunciá-la com um beijo.

Denunciá-la para minha eternidade.



Minha coluna na Revista IstoÉ Gente
São Paulo, abril de 2013, p. 80, Edição Nº 696

quarta-feira, 24 de abril de 2013

ATÉ O FIM


Arte de Eduardo Nasi

Nunca toque numa mulher por tédio. Nunca toque uma mulher por tocar. Nunca toque uma mulher para completar uma palavra ou ocupar um silêncio.

Nunca toque para apoiar os medos, cobrir mágoas, equilibrar a nudez.

Nunca toque uma mulher por vingança, por carência, por controle.

Não toque se não pode andar na imaginação, se não tem vontade de segurar sua mão enquanto arde, de emparedar a respiração com os olhos.

Não toque se não está disposto a sofrer, se não está disposto a curar o sofrimento.

Nunca toque uma mulher por imprecisa hospedagem, para breve visita das pálpebras.

Toque se quiser morar, se quiser naufragar pelas janelas, se quiser morrer de ansiedade.

Não toque se não deseja, se não assumiu a ponta dos lábios nos dedos.

Não acorde o corpo de uma mulher se não irá acalmá-lo depois. Não importune a mulher se não sonha em laminar o rosto em sua pele.

Não convoque os seios para despistá-los. Não prenda a cintura se não mergulhará no cheiro.

O toque é uma promessa. Não se esvazie na repetição.

Não toque se resta dúvida, não toque se vem desistindo da relação.

Não toque uma mulher por luxo, para experimentar uma fantasia, para justificar uma ideia.

Não toque uma mulher porque não tem nada a fazer, se pensava em outro lugar.

Não toque uma mulher por vaidade, para testá-la.

Não toque para apenas para se deleitar com o prazer do suspiro, pela glória de vê-la excitada.

Não toque uma mulher à toa, por brincadeira, por maldade.

Não desonre a suavidade com a falta de firmeza.

Não toque se não precisa, se não tem urgência. Até a preguiça tem urgência.

Não toque se não ficará mais tempo, se não pode conversar, se não há como gemer.

Não se sinta melhor do que o tato.

Não se aproxime se não busca deitar. Não deite se não busca acordar. Não mexa se não tem como enlouquecer.

Não finja que não chamou, não minta que não ouviu.

Não simule pergunta para fugir da resposta.

Não menospreze a frustração.

Não cumprimente se não abraçar, não abrace se não roçar.

Não toque numa mulher por obrigação, para mostrar virilidade. Não a incomode com os beijos se não pretender soprar os ouvidos.

Não desperte as contradições, os tremores, se não pretende seguir adiante.

Nunca provoque uma mulher se não vai comê-la.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 23 de abril de 2013

ERMENEGILDO


Fui comprar um terno. Tenho alguns, mas desejava adquirir uma opção para o inverno.

Acompanhado da namorada Juliana, entrei em loja do térreo do Shopping Iguatemi totalmente desavisado.

Era um espaço mais tradicional, conservador, de grife. Não custava olhar, apesar de não fazer meu gênero.

Girei pelos manequins à procura de um conjunto moderno em conta.

Nenhum casaco descia em meus ombros com exclusividade. Já estava com a cabeça fora dali, idealizando o nosso jantar.

Mas, na saída dos corredores, percebemos um terno lindo, preto, com corte diferente nas mangas.

Para quê? Experimentei e entrou como se a minha pele nascesse dele.

Não escondi o entusiasmo e questionei o preço para a vendedora.

Ela soletrou:

– R$ 4 8 9 6 5...

Já vibrei com o braço na frente do espelho, meditando que poderia pagar R$ 489.

Arrematei o cabide:

– Decidido, vou levar!

A atendente arrumou a barra com alfinetes, dancei Travolta com o novo visual, combinei a retirada na próxima tarde, e me dirigi ao pagamento.

Para me certificar, consultei o preço.

Ela reiterou pausadamente:

– R$ 4 8 9 6 5...

Juliana ficou perplexa. Não alcancei a confusão. Deduzi que fosse pela passionalidade da compra.

Ela abanava com as mãos em minha orelha:

– Mas é um Ermenegildo, Fabrício, Ermenegildo!

Tranquilizei:

– Vi, amor, um Ermenegildo mesmo, é barbada, né? Que sorte entrar aqui e pegar uma promoção.

Ela mordia os dedos.

Eu não tinha ideia de que a peça se tratava de Ermenegildo Zegna, pai dos ternos da Itália, Dom Corleone do tecido, mentor de Dolce Gabbana e Armani, figurino predileto do Oscar, stradivarius das golas.

Confesso que desconhecia Ermenegildo.

Na hora de passar o cartão, a caixa perguntou se eu desejava parcelar o valor.

Disse que não precisava, que poderia ser direto no débito. Em uma vez.

Juliana arregalou as sobrancelhas.

O cartão não autorizou. Reforcei que havia saldo. A caixa explicou que as financiadoras não aprovam compras em shoppings depois das 22h, para evitar sequestros.

Ela tentou driblar o controle e dividir o valor em dois cartões. Eu assobiava de feliz.

Neste momento, eu vi, eu enxerguei a verdade cósmica dos números no visor, o E=mc2 do meu consumo.

O valor da compra era de R$ 4.896,50.

A soletração sem vírgula da funcionária me confundiu.

O terno de Ermenegildo, em promoção, valia R$ 5 mil.

Reprisei as feições da namorada em sequência, e compadeci do seu desespero. Um pouco antes, no mercado, na frente dela, neguei uma gilete pelo acréscimo de R$ 0,50.

Não entendeu nada do que aconteceu. O meu surto. A minha surdez.

Quando descobri o engano, não encontrei coragem de contar a verdade e menti para a vendedora que voltaria no dia seguinte.

O terno continua me esperando, com as minhas medidas impressas na calça.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 23/04/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17411

UMA AUSÊNCIA INEXPLICÁVEL

Arte de Paul Klee

Não xingue o pai de seu filho usando o que ele foi como marido.  Não xingue a mãe de seu filho usando o que ela foi como esposa.

Ele pode ser um excelente pai e um péssimo marido. Ela pode ser uma excelente mãe e uma péssima esposa.

É preciso separar as duas condições.

Para evitar represálias, para evitar que a criança não fique traumatizada.

O que costuma acontecer: os pais desabafam para o filho tudo o que deu errado no casamento.

Expõem o ódio. Criticam o ex abertamente. Lavam a roupa em público.

A criança fica em pânico, não entende qual lado defender.

Jura que o pai e o marido são uma única pessoa.

Contaminamos a paternidade e a maternidade com ressentimentos do relacionamento.

Os filhos assistem as crises, as brigas e os motivos do divórcio. Mas ninguém diz para eles como foi o início feliz da história.

Por que os pais, mesmo separados, não contam como se conheceram, como ficaram juntos?

Por que omitem de seus filhos o começo de tudo? Por que não provam que seus filhos são frutos do desejo, não erros, não descuidos?

Não mostram que seus filhos foram queridos, planejados.

Como estão em outros casamentos e para não gerar ciúme nas atuais companhias, sonegam o princípio do romance. Não descrevem como um dia se amaram.

Se você não conta o melhor da história, como seus filhos vão acreditar no amor quando adultos? Como?

Eles não vão querer se relacionar, mas pensar que casamento é apenas ódio e rancor, disputa e confusão.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (23/4) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Andressa Xavier:

domingo, 21 de abril de 2013

NÃO ABANDONAMOS O QUARTO NO DOMINGO

Arte de Fatturi

Acordamos e não nos levantamos.

Desde que nos apaixonamos, a cama é o nosso acampamento.

Despertamos cedo e ficamos conversando, recapitulando a rotina, rindo à toa.

É um domingo inteiro assim, entre travesseiros, almofadas e edredom.

O quarto permanece trancado, as cortinas fechadas, o jornal empilhado na porta.

De vez em quando, um dos dois é sorteado como emissário da geladeira, para buscar frutas ou água. É uma visita rápida pelos demais aposentos, na ponta dos pés para não assustar as pálpebras.

Não é aconselhável demorar pela sala, para a claridade não quebrar o encanto e nos obrigar a sair à rua.

Somos sonâmbulos um do outro. Viciados um no outro. Intoxicados um do outro.

Passamos os dias no colchão travando histórias e revelando segredos.

A cama é o nosso hotel, nossa casa na serra, nossa residência de praia, nosso bunker, nosso pub, nossa água-furtada.

A cama é o que precisamos do mundo, o resto pode levar.

Reduzimos o universo àquele estrado de madeira, e nos divertimos com os problemas antigos, com as dores antigas, com aquilo que nos antecedeu e ainda não era a gente.

Na verdade, sinto que estudo para o vestibular de sua memória. Olho o teto coberto de fórmulas, fotos, cenas, equações e cálculos de sua vida.

Decoro suas sobrancelhas, seus suspiros, sou um mímico atento de seu rosto.

Faço perguntas despropositadas - nunca prevejo o que vai cair na prova do amor.

Interesso-me por qual lugar que sentava no colégio Champagnat. Me diz que era no fundo, com as costas coladas na janela.

E você me interroga a cor da minha térmica no jardim de infância do Santa Inês. Falo rápido que era azul.

Quem teria coragem de fazer essas questões senão quem ama? Mais: quem responderia com naturalidade essas questões senão quem ama?

Não nos assustamos com nenhuma gratuidade. Não estranhamos a curiosidade ou nos envergonhamos da loucura.

Intimidade é não temer o que será feito com nossas palavras.

Deitamos de lado, atravessados, você em meu peito, eu encaixado na moldura de seu pescoço. Giramos para esquerda, tonteamos para direita, argumentamos, confortamos, descrevemos nossos amigos, confessamos nossos pecados, sussurramos bobagens.

Os ouvidos se tornam rápidos como a boca. Falo e ouço na mesma hora.

Nossas mãos se beijam, nossos pés se beijam.

Tudo é intenso entre nós a ponto da lembrança criar a experiência. É como se nossos olhos fossem aquela máquina polaroid cuspindo fotos.

Os vizinhos devem suspeitar que já morremos, mas nunca estivemos tão vivos.


Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 21/04/2013 Edição N° 17409

quinta-feira, 18 de abril de 2013

À QUEIMA-ROUPA

Você prefere o amor funcionário público ou o amor nocaute?

Existe um tempo certo para começar o relacionamento?

E a hora de dizer "eu te amo"?

Assista ao DRnaTV de terça (16/4), meu programa na TVCOM, com mediação de Sara Bodowsky e produção de Fernando Muniz.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

UM DIA!


Arte de Eduardo Nasi

Um dia você vai agradecer as separações. Agradecer um por um dos rompimentos, uma por uma das fossas, uma por uma das portas fechadas em sua cara, uma por uma das infiltrações pelo pulmão.

Um dia você vai se desculpar por sofrer, você se livrará dos ressentimentos e das vinganças.

Um dia você se verá feliz por ter estado triste.

Um dia entenderá que o destino realmente faz sentido, e que a falta de sentido ainda era caminho.

Um dia você perceberá a clara diferença entre orgulho e confiança, entre obsessão e paixão, entre fantasia e sonho.

Quando você finalmente encontrar a mulher de que precisava não conservará ódio por nenhuma ex. Mesmo a mais ingrata, a mais perversa, a mais intrusiva.

Quando você descobrir que não precisou inventar a mulher que você ama, que ela existe com toda telepatia e compreensão que jurava jamais testemunhar, você olhará o passado com empatia e sincero perdão.

Será generosamente imprevisível. Não mascará fofocas, apagará os desaforos, conhecerá a gentileza de dia e o cuidado de noite. Derramará em seu sangue uma overdose de ternura. Seus olhos estarão empilhados de estrelas. Os engradados das árvores estarão sendo abertos pelo jorro da luz.

O amor é libertador, o amor é a redenção fiscal, o amor de verdade expira as sentenças.

A vontade é preparar uma farta cesta de frutas e produtos especiais para as ex-mulheres. Gastar o salário do mês combinando iguarias de fino trato.

É meu modo de mostrar que estou imensamente feliz por falhar antes e me permitir viver o essencial agora.

O ímpeto é organizar um berço de fragrâncias e champanhes, conciliar vinhos da Nova Zelândia com patês franceses. Reunir bandeiras e promessas do oceano. Montar uma manjedoura com palha ao fundo daquilo que há de melhor e mais caro na estante de importados.

Uma barca com especiarias da Índia, pepinos do México, azeitonas da Itália, ovos de codorna do Peru e doce de leite da Argentina.

Uma caixinha sortida e colorida com direito a Panetone, passas e castanhas de caju.

Uma cesta graúda com celofane amarelo que alegrava os Natais da minha infância.

E escrever apenas “Obrigado”.

Sem maiores informações.

O milagre é cristalino. Não é possível guardar rancor.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 16 de abril de 2013

MORRER COM SAÚDE


Arte de Serge Poliakoff

Se eu tivesse seis meses de vida, não voltaria a fumar.

Se eu tivesse seis meses de vida, não empreenderia nenhuma viagem pelo mundo.

Se eu tivesse pouco tempo de vida, não enlouqueceria a resistência com farras e bebedeiras.

Não entraria em casas noturnas para mergulhar em rodadas insanas de sexo.

Não iria surtar dobrando o colesterol e engordando nas mesas das churrascarias.

Absolutamente não me vingaria dos vícios abandonados ao longo dos anos.

Não depredaria a casa bradando justiça.

Não sairia atropelando os amigos com as vontades reprimidas.

Não realizaria catarse, libertação, desforra dos recalques.

Manteria a musculação quatro vezes por semana, continuaria não bebendo refrigerante, preservaria as caminhadas, insistiria em dormir e acordar cedo. Minha Porto Alegre me veria em seus mercados, parques, restaurantes.

Um aviso fúnebre não impactaria meus cuidados físicos.

Não lamentaria que não adiantou em nada a preocupação com o bem-estar, que fui burro me controlando.

O fim não elimina o valor das dietas que experimentei, das fisioterapias que acumulei, das restrições alimentares que adotei.

Temos a sensação de que paramos o que nos prejudica para viver mais.

Eu parei para viver melhor. Mesmo que seja por mais alguns dias.

Viver melhor para mim é viver mais.

Minha mãe de 73 anos soltou uma de suas frases sábias quando passeávamos pelo bairro Petrópolis.

– Quero morrer com saúde.

– Como assim? – repliquei. – O que é morrer com saúde?

– Quero morrer com forças para enfrentar a morte de igual para igual. Morrer mexendo na horta, lendo na varanda, pensando em qual filme ainda não vi. Tão triste morrer e não ter nem força para cumprimentar os anjos.

Eu também quero, mãe. Morrer bonito. Morrer com o rosto descansado e satisfeito. Morrer com um pouco de preguiça. Morrer sobrando. Morrer com a vontade de amar a mulher de noite. Morrer espiando as ofertas dos classificados, completando as palavras cruzadas do jornal. Morrer com as articulações das pernas firmes e os braços levantando o peso das frutas. Morrer sabendo o resultado de meu time e sua posição no campeonato. Morrer com confiança. Morrer respirando largamente. Morrer com a memória das datas prediletas.

Não morrer pessimista. Não morrer desesperançado. Não morrer longe de mim.

Morrer feliz com o que eu tive e fui capaz de fazer.

Morrer acenando com força na janela dos olhos de Deus.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 16/04/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17404

DEPOIS DOS 35 ANOS



Arte de Sigmar Polke

A cantora e ex-primeira dama da França, Carla Bruni, falou em entrevista para a revista Veja algo que acredito muito.

Que depois dos 35 anos, a beleza é resultado da simpatia, da elegância, do pensamento, não mais do corpo e dos traços físicos.

A beleza se torna um estado de espírito, um brilho nos olhos, o temperamento.

A sensualidade vai decorrer mais da sensibilidade do que da aparência.

Uma mulher chata pode ser bonita antes dos 35 anos.

Uma mulher burra pode ser bonita antes dos 35 anos.

Uma mulher egoísta pode ser bonita antes dos 35 anos. 

Uma mulher deprimida pode ser bonita antes dos 35 anos. 

Uma mulher desagradável pode ser bonita antes dos 35 anos.

Uma mulher oportunista pode ser bonita antes dos 35 anos.   

Uma mulher covarde pode ser bonita antes dos 35.

Depois, não mais, depois acabou a facilidade. Depois o que ilumina a pele é se ela é amada ou não, se ela ama ou não, se ela é educada ou não, se ela sabe falar ou não. 

Depois dos 35 anos, a beleza vem do caráter. Do jeito como os problemas são enfrentados, da alegria de acordar e da leveza ao dormir. 

Depois dos 35 anos, o sexo é o botox que funciona, a amizade é o creme que tira as rugas, o afeto é o protetor solar que protege o rosto. 

A beleza passa a ser linguagem, bom humor. A beleza passa a ser inteligência, gentileza. 

Depois dos 35 anos, só a felicidade rejuvenesce. 

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (16/4) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola:


domingo, 14 de abril de 2013

MINHA MULHER NÃO É FURACÃO

Arte de Fraga

Você não é um furacão.

Trata-se de uma cilada masculina.

Não aceite ser nomeada desse jeito.

Representa um falso cumprimento.

Todo homem diz que a mulher é um furacão como projeção: é o que ele deseja da companhia, não é o que ela é.

Pode soar sedutor, pode sugerir passionalidade, pode sugerir fogo e charme, porém é uma armadilha.

Sua intenção não é boa.

Furacão não é convidado.

Furacão passa rápido.

Furacão é somente sexo.

Furacão é pressa.

Furacão não tem endereço, nem infância.

Furacão destrói lares, arrebenta relacionamentos.

Furacão não chora, não se arrepende de colecionar vítimas.

Furacão não pergunta duas vezes.

Furacão não volta, não cria raízes, não se despede.

Furacão é triste, solitário, assim como vulcão.

Furacão é vazio, repetitivo, rancoroso.

Furacão não deixa bilhetes, não tem recaídas.

Chamar uma mulher de furacão é uma forma machista de se expressar e impor brevidades amorosas.

Quando alguém lhe caracteriza de furacão, não está festejando sua vida.

Pretende usá-la e não se responsabilizar pelas consequências, busca explorar sua fugacidade, destacar sua intemperança, avisar que é fácil, que não pensa, que age por impulso, que não mede a força.

Furacão é carente, perdido, uma nuvem dançando seu sofrimento.

Furação deserda, não conquista.

Furacão devasta, não reúne.

Ninguém namora um furacão. Ninguém casa com um furacão.

Furacão é reduzir a mulher ao papel de amante, é considerá-la uma ameaça da intimidade, um rastro desorganizado e provisório.

A mulher que amo não é um furacão, e sim brisa, um sopro calmo que veio estudado das marés.

É a soma das ondas, o resto de estrelas, o cheiro casado das rochas e das conchas.

Não subestime a intensidade da insistência.

A brisa é mais contundente do que o furacão.

A brisa me faz virar o rosto, pressinto alguém chegando.

A brisa tem o peso exato de uma palavra no ouvido.

É vento, mas também é um chamado.

É vento, mas também é saudade.

É vento, mas também é música.

É espuma de vento, levemente úmido, meio água, meio ar.

Mulher minha não é furacão. Mulher minha é brisa.

E nunca será minha porque vento não se enjaula.

Teremos casa, filhos, pátio, varanda, e não cansaremos de contar como nos conhecemos.


Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 14/04/2013 Edição N° 17402

sexta-feira, 12 de abril de 2013

INIMIGOS POR NATUREZA

O amor se relaciona com o que é íntimo no outro e o desejo acende com o que é desconhecido.

Qual o equilíbrio entre os sentimentos inimigos?

E por que reclamamos que o amor é líquido ao invés de aprendermos a nadar?

Assista ao DRnaTV de terça (9/4), meu programa na TVCOM, com mediação de Sara Bodowsky e produção de Fernando Muniz.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

A MÁQUINA RECEBE OTÁVIO MESQUITA

O apresentador Otávio Mesquita é viciado em carros, fofocas e maldades.

Ele destila seu veneno em meu programa A Máquina, da TV Gazeta, que aconteceu na noite de terça-feira (9/4).

A MÁQUINA RECEBE EDUARDO KOBRA

O artista plástico Eduardo Kobra quer um relacionamento como Diego Rivera e Frida Khalo.

A pintura separa, as tintas são amantes insaciáveis.

A entrevista aconteceu em meu programa A Máquina, da TV Gazeta, na noite de terça-feira (2/4).

quarta-feira, 10 de abril de 2013

O SABIÁ QUE SABIA


Arte de Eduardo Nasi
Tenho um amigo que faz locução. Ele engoliu um ventríloquo. Encontra cinquenta variações de uma única frase.
“Tome café torrado do Paraná” torna-se uma esquizofrenia em nossos tímpanos.
Repete de um modo, de um novo, e não termina de inventar uma nota diferente.
Nunca reconheço sua locução na rádio, no cinema, na televisão. É um Zelig fônico. Um ectoplasma da garganta.
E quando reconheço, reconheço errado: não foi ele que realizou o trabalho. É tão outro que nunca sei quando é ele. Ou imita tão perfeitamente os outros que não identifico mais os outros e acho que tudo é ele.
Renato nasceu com os tons de verde nas cordas. Sua voz troca de roupa como um sabiá.
Como explicar seu dom? Seu filho pequeno diz que ele escova os dentes das palavras.
Pode ser mesmo.
Mas não há talento que também não seja maldição.
Ele sofre na hora de gravar comerciais.
Os diretores de criação enlouquecem nosso bardo.
Ele fica trancado quatro horas num estúdio para acertar a atmosfera de duas frases como “Oi Gente. Tome Solitel”.
São inúmeras ordens e contraordens, sugestões e palpites sucessivos.
Somente o operador de áudio tem pena de sua incansável compaixão.
Ninguém sabe como é para falar. O cliente pressiona o publicitário que pressiona a execução das tarefas, e ambos se extraviam em bajulações poéticas.
A equipe da agência busca orientar o Renato:
— Quero uma voz introspectiva, mas para fora.
— Como?
— Uma voz tímida, mas expansiva.
— Não entendi.
— Um tom sufocado que está liberto.
— Pode explicar?
— Algo cult, mas que seja Faustão.
— Não captei…
— Um desespero cheio de esperança
— Pode dar um exemplo?
— Não consigo definir… É muito sutil.
— Seria como uma muçulmana de burka e biquíni?
— Sim, perfeito. Entendeu o espírito. Vamos gravar?
— Tô dentro, mas tô fora.
— Viu? Pegou moral! Grande Renato! Você é um dos nossos.
E Renato lê do jeito que deseja, sem pensar em nada:
— Oi Gente. Tome Solitel!






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 9 de abril de 2013

FIZEMOS TUDO ERRADO


Arte de Marc Chagall

Fizemos tudo errado.

Não deveríamos ter nos beijado nos primeiros minutos.

Não deveríamos ter dormido de conchinha já na primeira noite.

Não deveríamos atravessar as madrugadas rindo.

Não deveríamos transformar todo abraço em esquina.

Não deveríamos denunciar nossos pensamentos, permitir o ciúme, expor os nossos defeitos.

Não deveríamos, é o que os amigos me ensinaram. Para conquistar alguém, é obrigatório esconder o jogo, fingir independência, disfarçar o arrebatamento.

Falhamos, amor. Somos afoitos, ansiosos, sinceros.

Fracassamos no drama, perdemos a concentração. Somos péssimos atores do desejo.

Nossa história poderia ser diferente.

Eu não deveria ter atendido ao telefone no primeiro toque.

Você não deveria ter atendido ao interfone no primeiro chamado.

Eu não deveria ter dito que sentia saudade na segunda hora.

Você não deveria ter dito que sonhava comigo.

Eu não deveria ter pedido em namoro no segundo dia.

Você não poderia ter aceitado.

Eu não poderia ter mandado flores.

Você não deveria ter regado as plantas de minha casa.

Eu não deveria ter apresentado meu filho no final de semana.

Você não deveria ter tomado um Nescau em nossa segunda noite.

Eu não deveria ter deitado em seu colo para assistir tevê.

Você não deveria ter me apresentado sua mãe e seu pai na primeira semana.

Eu não deveria ter convidado para uma festa do trabalho no terceiro dia.

Você não deveria ter deixado um vestido em meu armário.

Eu não deveria falar de minha vida de solteiro.

Você não deveria descrever seus antigos relacionamentos.

Eu não deveria ter separado uma prateleira para colocar suas roupas.

Você não deveria ter segurado o guarda-chuva.

Eu não deveria abrir a porta do carro e puxar sua cadeira no restaurante.

Pecamos, tropeçamos na bondade.

Você não deveria ter dito que nunca teve tanta intimidade com alguém.

Eu não deveria ter dito que a amava depois da terceira noite.

Bem que nos avisaram que seduzir é se aguentar, é se conter, é não demonstrar os próprios sentimentos.

Fizemos tudo errado, por isso estamos juntos.

Amor é exceção, amor é quebrar as regras.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 09/04/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17397

A COLEÇÃO PREFERIDA DE MEU OLFATO


Arte de Marc Chagall

Não farei um comentário, mas uma nebulização. 

Não custa nada lembrar de todos os cheiros bons da vida. 

— Perfume de plástico do carro novo
— Perfume de fruta da geladeira cheia.
— Perfume de talco do rosto do filho quando ele nos beija.
— Perfume do bolo esfriando.
— Perfume de colírio de piscina. 
— Perfume de sexta-feira do piso encerado.
— Perfume de xampu quando sua mulher sai do banho.
— Perfume de balão de aniversário.
— Perfume de papel-presente quando rasgado. 
— Perfume de sol dos lençóis.
— Perfume de churrasqueira no domingo. 
— Perfume da madrugada depois de uma festa.
— Perfume da lasanha sendo levantada do forno. 
— Perfume de chuva nas calhas e árvores.
— Perfume de torrada de lancheria de hospital.
— Perfume de lavanderia. 
— Perfume de café e biscoito. 
— Perfume de livro novo.
— Perfume de caneta hidrocor.
— Perfume de esmalte do primeiro encontro.  
— Perfume de loção do inverno.

Para ser feliz, não é preciso usar a cabeça, mas apenas o nariz.

Ouça o que eu disse na manhã de terça-feira (9/4) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola: