quinta-feira, 31 de julho de 2014

IMPROVISO PERMANENTE

Arte de Eduardo Nasi

Casa perfeita é cenográfica. Não há comoção.

Casa habitada tem que ter alguma coisa quebrada, estragada, imprecisa.

Casa não pode ser de passagem, mas enraizada no uso.

São defeitos menores que terminam arrumados por um jeitinho, por algum conserto provisório, uma ideia extravagante.

Os visitantes talvez não percebam, mas você morador conhece os remendos e não revela.

É uma mesa manca reequilibrada com papelão, é uma almofada rasgada virada de lado, é uma maçaneta solta que colocamos um prego, é uma infiltração na parede tapada com um quadro, é uma tomada grudada com durex, é uma gaveta com a fórmica colada com bonder, é o encanamento sanfonado da cozinha isolado com fita.

É um problema que disfarçamos para um dia remediar definitivamente. Os anos passaram e nunca arrumamos.

Trata-se de algo pequeno para mobilizar o acerto permanente e que também não é totalmente insignificante aos olhos.

Costumamos tapear, fingir que a falha não enfeou a decoração. Acho que só um vazamento no apartamento do vizinho não tem como adiar. Já naquilo que incomoda nossa vida, sempre inventaremos um adiamento.

O que está fora do lugar é o que mais me toca na residência. A pobreza que vem com o tempo. A pobreza que é o tempo vivido, partilhado, gasto.

Para abrir a janela da cozinha, por exemplo, aproveitei uma régua de madeira.

Peguei uma vez emprestado do material do escritório, como emergência, para espantar o cheiro de fritura. A exceção virou hábito.

Agora não canso de esticar a janela com a régua para ventilar o ambiente.

Se não fosse ela, seria um guarda-chuva, uma bengala, um taco de beisebol.

O improviso manda na ordem doméstica. Podia visitar a ferragem da esquina e solucionar a questão rapidamente com um sarrafo, porém eu me apeguei à régua.

Ela fica perto do escorredor de louça, como alarme da luz e protetor da fumaça.

Eu faço o chimarrão de tardezinha e abro a janela com a régua.

Vou mateando e espiando as nuvens se dissolvendo com a noite e a o borrão vermelho no declive dos edifícios.

É o encontro da matemática com a poesia.

Meu crepúsculo tem 80 centímetros. Exatamente. Sou o único morador do prédio capaz de medir o pôr-do-sol.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
30/7/2014

2 comentários:

Regina Maia disse...

A-m-e-i!

Unknown disse...

Vc é de mais viu carpinejar