sexta-feira, 17 de julho de 2015

CRISE DOS SETE ANOS

 
Arte de John William Waterhouse

Você dorme de costas para seu marido ou esposa?

Você é o último a saber do que está acontecendo dentro da própria casa?

Você parece que não tem mais o que dizer?

Você perdeu o interesse em comum com sua companhia?

Você somente é criticado, mesmo quando tenta ajudar?

As aparências não importam mais?

Usa desculpas para evitar discussões e problemas?

Finge que nada está acontecendo?

Talvez você esteja enfrentando a crise dos sete anos de casamento.

Jura que é infeliz, mas eu tenho inveja de você. Você tem um casamento que conseguiu a proeza de atingir sete anos.

Queria estar em seu lugar. Para enfrentar esta crise, você precisou ter antes a sorte de um casamento longo.

Já é complicado um relacionamento durar sete semanas ou sete meses. Alcançou sete anos de intimidade com alguém, dividindo os hábitos e somando as vidas. Não é pouco, não é troco, não jogue fora.

Ouça meu comentário na manhã dessa sexta-feira (17/7), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


quarta-feira, 15 de julho de 2015

FEITIÇO DA GINA

 
                                                                 Arte de Eduardo Nasi

Não se estarei casado ou solteiro na próxima semana, não sei onde estarei morando no próximo ano, não sei se ligarei a máquina de lavar e de secar direto do celular, não sei se me apaixonarei pela voz do computador, não sei o que me espera.

Os tempos são rápidos e provisórios.

O que me acalma diante da enxurrada de notícias, aplicativos solicitando atualização e links abertos é comprar no supermercado um caixinha de palitos Gina e um pacote de Pastelina.

São as únicas embalagens que permanecem iguais desde a minha infância.

Gina e Pastelina não mudaram. Algo não mudou no mundo. Algo segue intocável há quatro décadas.

É como uma casa que não foi destruída no bairro em que nasci.

É como um brinquedo embalado e jamais usado.

Gina e Pastelina são objetos de colecionador que tenho o direito de adquirir semanalmente.

Recordo do tempo em que íamos toda a família para a churrascaria Barranco, e que os palitos serviam para brincar com os meus primos. Quebrávamos cinco Ginas ao meio, juntávamos suas pontas e derramávamos uma gota de água no centro em comum das varetas. Incrivelmente, a madeira absorvia o líquido e começava a inchar. Os palitinhos cada vez mais abertos formavam uma estrela pulsando, uma estrela se agigantando, uma estrela engolindo a mesa.

Só com o cheiro da Pastelina, sou levado de volta para a alegria do intervalo da escola. Equilibrando um copo de guaraná e o pacotinho de massa frita, sentava no terceiro banco de pedra do pátio, meu camarote imutável para assistir as meninas jogando vôlei.

Gina e Pastelina me proíbem de envelhecer. Gritam “estátua” para mim e não me mexo.

É melhor do que chá de melissa: desaparece a enxaqueca, refaz a minha linha de tempo do Facebook, acaba com bloqueio criativo.

Gina e Pastelina resistiram aos layouts modernos, à ânsia de consumismo, às tentativas de se mostrar diferente por fora e apenas por fora.

Desconheço quem inspirou o logotipo da Pastelina. Tampouco muda a minha admiração ter consciência de que a modelo dos artefatos de madeira foi a polonesa Zofia Burk, que depois não conseguiu mais emplacar nenhuma campanha.

Ela será sempre a rainha da minha cozinha: dona de casa feliz e radiante, com seu cabelo de penico dos anos 70, o olhar roubado de Jesus Cristo, a dentição de quem nunca conheceu uma cárie.

Ele será sempre o rei do meu eterno recreio: o feiticeiro narigudo, de fraque, gravata borboleta e cartola, que somente entregará a receita da Pastelina se a Coca-Cola mostrar a sua.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 15/07/2015

terça-feira, 14 de julho de 2015

AGUENTE DECLARAÇÕES DE AMOR SEM GRACINHAS

O sarcasmo destrói a sinceridade.

Já fui vítima e já fui algoz.

O homem, principalmente, tem vergonha de se declarar e vive se escondendo em brincadeiras. Tem vergonha de se emocionar e vive mascarando com piadas os momentos próximos das lágrimas.

É perceber que vai chorar ou umedecer os olhos que ele retira uma ironia do fundo de si para escapar ileso da entrega.

Em vez de retribuir uma delicadeza ou entrar no clima romântico, ele vem com uma grosseria para tentar descontrair.

Não faça mais isso, aprendi a não fazer.

É tão difícil ser sincero, leva muito tempo para o outro encontrar força para dizer algo importante, não banalize o encontro com a sua desatenção.

É custoso formular o que talvez nunca tenha sido dito para ninguém, não estrague com o deboche.

Sua namorada pode ter atravessado décadas naqueles minutos para entender um sentimento e partilhar uma verdade.

Relembre seus amores platônicos e doloridos da infância: quantas vezes procurou se declarar para uma menina, as frases subiram até a boca e voltaram ao silêncio? Você deseja que sua companhia passe pelo mesmo sofrimento?

Ninguém é covarde sozinho. Somos covardes porque nos deixam sozinhos com as palavras, não somos ajudados a falar o que nos incomoda.

Apoie a coragem de sua namorada.

Devemos economizar e preservar as confissões de amor. Devemos valorizar e inspirar as confissões de amor.

Temos que diferenciar a hora da ironia da hora de falar sério.

Não desestimule a sinceridade com palhaçadas. Drama pede meia-luz, mãos dadas e olhos nos olhos (o gênero comédia romântica é uma mentira – é só romance, colocaram comédia no nome para forçar o namorado a ir ao cinema).

Não dê motivos para que ela desconfie de seu compromisso – é o que acontece quando reage superficialmente diante de conversas mais profundas.

Fique quieto, parado, ouvindo, sei que você se enxergará emparedado, encurralado, assustado com a queda repentina de testosterona no corpo, pronto para abrir a porta do riso e sair correndo, mas segure a respiração e suporte escutar que você é a pessoa mais importante de alguém, sem baixar a cabeça, sem buscar refúgio no celular, sem nenhuma gracinha.

Serão juras que salvarão o relacionamento quando estiver em crise.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  14/07/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18223

CONSELHOS INTRAGÁVEIS

Arte de Umberto Boccioni

Evite conselhos durante a abstinência.  O melhor é andar com protetor de ouvido.

Sempre vem alguém para dizer aquilo que você não precisava ouvir. É um comentário que desmerece o desafio ou menospreza a importância de cada dia longe da dependência.

A tentação recebe o disfarce das pessoas mais próximas.

Contei para um amigo que estava há duas semanas sem fumar, ele me respondeu:

- Não é nada. Só me fale quando completar um mês.

Contei para a minha mãe que parei de fumar, ela nem esperou terminar a frase:

- De novo? Já não acredito.

Contei para uma amiga que parei de fumar, e ela me respondeu:

- Não consigo te imaginar sem cigarro.

Por último, reclamei para a mulher que estava triste por não fumar mais:

- Então seja alegre e volte a fumar.

Fim de vício é como velório: ninguém sabe o que falar.

Ouça meu comentário na manhã dessa terça-feira (14/7), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


domingo, 12 de julho de 2015

CASAL BRIGANDO ESQUECE QUE TEM FILHO


Arte de Lasar Segall


Quando estou numa discussão de relacionamento ainda me pego guri, ainda me pego distraído.

A mulher me pergunta algo simples e objetivo berrando e me perco no ponto de interrogação, somente presto atenção no agudo de seu timbre.

Ela questiona sim ou não, e rastejo indeciso num estado meditativo.

Com uma caneta nas mãos, faço de conta que não é comigo. Já me flagro tirando o canudo, reparando o estado da tinta, me desligo completamente das palavras. Diante da voz levantada, as palavras não são mais comigo, sou inteiro do silêncio.

É um estado de fuga que guardei da infância, no momento em que meus pais brigavam aos gritos.

O palco permanece montado em minha memória: arrumados na sala, eu e os irmãos brincávamos de forte-apache enquanto esperávamos para almoçar.

Tudo ia bem, os cabelos estavam penteados e a mesa posta.

De repente, a porta da frente batia, os lustres balançavam e a paz ia embora.

Alguém saía de casa correndo, talvez o pai, talvez a mãe, e um seguia o outro.

A discrição não frequentava o nosso endereço, envolvia perseguição de carros, latidos desesperados no quintal, abraços histéricos e empurrões confusos.

Descobria que não teria almoço, nem sessão da tarde, muito menos tranquilidade.

A briga dava dois trabalhos: o de explicar aos vizinhos durante toda a semana o que aconteceu e o de acalmar o coração que nunca sabia ao certo o que estava acontecendo.

Eu me abstraía de propósito, recusando determinar se correspondia ao fim do casamento ou uma reiterada tentativa do papai e da mamãe de se entenderem e de serem felizes.

Os filhos desapareciam naquele instante para os pais, eles realmente esqueciam que eram pais. Casal quando briga esquece que tem filhos.

Alheios ao que escutávamos e à nossa posição vulnerável no front de batalha, retornavam para a sala, jogavam objetos nas paredes, soltavam palavrões que jamais poderíamos repetir e se xingavam mutuamente, com energia e disposição demoníacas.

Eu mexia cada vez mais no cocar de meu índio do forte-apache e em sua machadinha marrom. Fingia que não existia, diminuindo de tamanho, até me transformar num boneco e alguém me guardar na caixinha para brincar no dia seguinte.

Fixo na caneta e vejo que não me defendo do medo de gritos, apesar de adulto, apesar da paternidade.

Em vez de escrever qualquer coisa de útil, em vez de pedir socorro, vou desmontando a caneta no meio de uma nova e inesperada gritaria doméstica.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  12/07 /2015 Edição 18224

sexta-feira, 10 de julho de 2015

SE ARREPENDIMENTO MATASSE...

Arte de Kandinsky

Ao colocar em ordem sua biblioteca ou guarda-roupa, veja se terá condições de terminar a tarefa.

Depende de tempo livre, de férias, de folga. Não tente fazer no meio da semana, de qualquer jeito.

Não seja levado pela passionalidade que é tirar tudo do lugar para ajeitar pouco a pouco.

O chão estará cheio de pilhas de livros e não poderá caminhar livremente pela casa durante semanas.

A cama estará carregada de roupas e não haverá nem espaço para dormir.

Sua vontade é de chorar. Começou algo que não imaginava que ocuparia tanto tempo.

Ficou projetando que seria fácil e rápido e agora se arrepende amargamente de seu impulso.

Não tem como finalizar a arrumação, assim como é tarde para colocar os objetos de volta.

Piorou o que estava ruim. Já quer jogar fora seus livros prediletos ou as camisas novas somente para não precisar dobrar mais ou procurar espaço nas estantes apertadas.

Às vezes, para não enlouquecermos, a bagunça é o nosso anjo da guarda.

Ouça o comentário na manhã desta sexta-feira (10/07), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quarta-feira, 8 de julho de 2015

A CHAVE DE MINHA PERSONALIDADE

                                                                               Arte de Eduardo Nasi

Nunca reparei na porta da residência de minha mãe e da minha infância. Por mais que tenha atravessado a sua fronteira milhares de vezes. Por mais que tenha girado a chave em sua fechadura. Por mais que tenha mateado em sua soleira. Por mais que tenha trocado os adereços de bem-vindo.

Ela é de ferro, pesada, lembrando um cofre, porém é toda constituída de vidro, com a leveza da armação de uma janela.

Arranha o chão, só que não pode ser batida com força senão quebra a vidraça.

Com uma base fixa e instransponível, mas absolutamente vulnerável por cima.

É forte e fraca ao mesmo tempo. Uma pedrinha arremessada já arrebenta sua estrutura. Só que ela tem o peso de um tanque de guerra.

A porta sou eu: incoerente, contraditório, instável, que dissimula suas feridas e ferocidades.

A porta é a minha família. O espírito de minha família, que diz sim com facilidade para depois complicar, nada é transparente em suas reuniões e encontros, há um quê para ser decifrado nas frases mais bobas, uma segunda intenção latejando nos discursos mais banais.

Papear com a mãe é completar palavras cruzadas, discutir com o pai é resolver criptogramas, eles não expressam o que falam.

Falar é disfarçar o que se pretende. Falar é omitir. Falar é guardar.

Como se fosse falta de educação dizer aquilo que se quer. Fui ensinado a não entregar as minhas vontades, pois a facilidade seria ofensiva, sinal de que somos oferecidos e fracos.

A educação de ferro esconde o nosso desejo de vidro.

Não digo que estou com sede. Antecipo a previsão meteorológica, destaco o tempo infernal, aviso que não paro de suar.

Não sou jamais direto.  Espero que alguém me ofereça um copo d’ água. Não peço o copo d’água.

O meu corpo e as minhas palavras têm confissões sempre diferentes.

Eu embaraço todos que estão próximos. Poucos captam as minhas reais intenções, com dificuldade de definir se converso sério ou debocho.

Para alguns, sou um sedutor. Para outros, sou profundo. Sou apenas um homem confuso. Como a porta de casa, indecisa entre o presídio e a estufa de flores.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 08/07/2015

terça-feira, 7 de julho de 2015

CONFIAR É AMAR


Amar e confiar são a mesma coisa.

Demorei a perceber. Por isso confiamos em pouquíssimas pessoas em nossa vida.

E podemos passar uma vida inteira sem confiar em ninguém.

É tão difícil confiar quanto amar. Tão raro.

A confiança e o amor são conquistados. Exigem tempo, observação, sinceridade, lealdade, soma de atitudes.

Não é porque é sua mãe ou seu pai ou seu irmão que você vai confiar. Família não traz garantias.

Confiar não é genético. Confiar é intimidade recompensada. Confiar é recíproco. É quando damos e recebemos simultaneamente. Confiar é contar um segredo e ver, já no finzinho de nossa história, que nunca foi revelado.

É uma previdência privada de nossos mistérios. É quando as ações comprovam as palavras.

Confiar não é para os apressados, mas representa o retorno de uma longa viagem mental. É a velhice dos nossos hábitos, a velhice das nossas frases, a velhice de nossos juramentos. É quando um gesto recebeu a proteção do silêncio.

Quando alguém confia sem conhecer, na verdade, está esperando confiar. É uma aposta para tornar mais fácil a convivência.

Demonstramos despojamento no início das relações, mas somos complexos no decorrer da cumplicidade. Entregamos a chave da nossa casa para perguntar todo dia se o outro não extraviou. E perguntar é desconfiar.

No máximo, confiamos desconfiando. Com o pé atrás e um olho lá na frente.

Confiamos com medo de confiar, sofrendo o receio de ser enganado, tremendo por depender de alguém, temendo pela nossa vulnerabilidade. Assim como o amor.

Falamos que amamos antes de amar, para nos convencer de que é amor.

Falamos que confiamos antes de confiar, para nos convencer de que é amizade.

Confiar é se desiludir, é se frustrar, é se decepcionar. Assim como o amor.

É criar as mais altas expectativas e depois se acomodar com o que é possível. Como o amor.

É aparecer com todas as certezas do mundo de que aquela é a pessoa certa e descobrir, aos poucos, que ela mente e pensa torto como você.

Confiar dói. Como o amor. Ainda mais quando a confiança é quebrada e não há como restaurá-la com discussões, colá-la com desculpas, consertá-la com declarações grandiloquentes.

Confiar é ter uma relação única com alguém, inimitável, e não dividi-la com um terceiro. É o contrário da falsidade, que significa ser igual com todos fingindo diferença e exclusividade.

Deixar de confiar é deixar de amar - perde-se junto a admiração, o alumbramento e o respeito incondicional. Deve-se desamar para amar de novo.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 6,  07/07/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18216

TRISTE DE QUEM FICA FELIZ

Arte de Louis Boulanger

Se você está feliz numa segunda-feira, você não tem vida pessoal. Está sem ninguém ou na maior fossa dentro de um casamento. O desespero é o mínimo esperado por aquela pessoa que é normal.
Não é recomendado senso de humor numa segunda-feira. Não se pode chegar no trabalho comemorando. Euforia de manhã cedo é ultrajante.

Segunda-feira é dia de luto da alegria, de enterro de samba. Resta uma semana inteira pela frente e o final de semana cheio de aventura ficou para trás. Não há motivos para mostrar os dentes.

Assim como não se deve pisar no trabalho entusiasmado numa terça-feira. É provar que você gosta mais do emprego do que do descanso. Atestado de encalhado, despertará pena dos colegas: - Que vida triste que ele tem para rir numa terça-feira, aposto que odeia sábado e domingo.

Pode começar a sorrir, discretamente, na quarta-feira. E a gargalhar na quinta-feira. Na sexta-feira, seja só contentamento. Cumprimente alto todos e diga que a semana passou rápido, mas o que precisa mesmo é de boas férias.

Ouça o comentário na manhã desta terça-feira (07/07), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 6 de julho de 2015

INVASORES



– Já que ele não vai ficar comigo, não vai ficar com mais ninguém.

Assim também esquece que ele jamais olhará novamente para sua cara. Tentar destruir a próxima relação de seu ex ou flerte postando mensagens ofensivas e insinuações na web ou até mesmo mandando prints de conversas antigas é atitude de recalcada. Desceu sem volta o seu espírito para o inferno mais remoto. Não há depois como salvar o respeito e a reputação. É gesto de megera, de bruxa, de burra, de psicopata, onde os fins justificam os meios.

Pode estar desesperada, louca, histérica, mas até o jogo da sedução é constituído de regras e etiqueta, não é um vale-tudo emocional, o que não é reciproco deixa de vigorar como realidade, cabe respeitar a decisão de sua companhia, mesmo que um dia tenha recebido juras. Nada de destituir a liberdade do outro, que tem todo o direito de reavaliar o trajeto, não querer o relacionamento e trocar de opinião. Nada de bancar a hacker e entrar em contas alheias em nome de uma dor-de-cotovelo.

Depois de perder o amor, é muito fácil perder o amor próprio e despencar para a grosseria.

Não é não, o não está a léguas de significar um charme, não é para insistir se não existe abertura, não é uma provocação, um desafio e uma oportunidade para provar o seu valor.

Se ele não quer ficar junto, não se rebaixe e, o mais grave, não busque rebaixar todo mundo. Não arraste inocentes para seu túmulo. Se está infeliz, não espalhe a infelicidade. Aceite a derrota e o fracasso com humildade. Não procure sofrer acompanhando a novela do amor recente nas redes sociais. Não fique investigando o perfil da nova namorada. Não faça comparações e conclusões distorcidas, não crie tumulto e fakes. Policial amador é criminoso.

Ele não quis permanecer a seu lado quando apresentou seu melhor, não é com o pior que mudará seu conceito.

Compreensão e respeito são capazes de trazer alguém de volta, jamais mentira e invasão de privacidade. Isso serve para homens e mulheres.

Não provoque o desprezo. O desprezo é a paixão azedando, vinho virando vinagre, sem rótulo e safra para ser lembrado.

Quando o sentimento acaba por uma das partes, é necessário ser amigo do tempo. O tempo cordial é a única esperança que resta.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  05/07 /2015 Edição 18215

A BOFETADA

Arte de Vito Campanella

Não foi brigando com nenhum homem que amadureci. Não foi invocando nenhuma guerra no trânsito que amadureci. Não foi enfrentando tumultos e acotovelando beberrões que 

amadureci. Não foi apanhando dos pais que amadureci. 

Amadureci quando levei uma bofetada da namorada durante a adolescência. Nenhum homem cresce se não levar um tapa na cara de uma mulher em algum momento da vida. Aquele 

tabefe seco, bloft, inesperado, e merecido. E nem pode reagir porque é justo. Aprontou, levou o peso da palavra e do castigo na bochecha. É aguentar a fisionomia de 

tacho, a imobilidade de idiota, a vergonha do vermelhidão. 

Um homem só aprende a assumir seus pecados e sua culpa depois de uma bofetada feminina. Antes ainda é uma criança, ainda é filhinho da mamãe, ainda acredita na impunidade no amor. 

Ouça o comentário na manhã desta sexta-feira (03/07), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

BONECO INFLÁVEL

Arte de Eduardo Nasi

Se o homem lhe ama não mudará o rosto depois do sexo. Não mudará de atitude.

Não ficará com vontade de fugir da cama, não se sentirá incomodado pela intimidade e pressionado pela madrugada, não lembrará de nenhum compromisso da manhã seguinte, não sairá da cama à caça das roupas e do celular.

Se o homem lhe ama, ele é igual antes e depois do sexo. Exatamente igual. Não usará da educação para se distanciar. Não formulará nenhuma pergunta sobre o tempo. Não escolherá as palavras mais neutras. Poderá convidá-la para tomar um banho junto ou comer algo na cozinha (quer melhor cena do que o casal apaixonado rindo e cozinhando pelado?). Certo é que não arredará o pé dali sozinho, sob hipótese alguma.

Já quando procura somente sexo, são visíveis os sinais. É como um despertar de transe, de uma hipnose.  Ele tem a língua cortada pelo fim do prazer. Não difere muito de um boneco inflável, inflado de poder e potência na véspera, esvaziado e culpado após o orgasmo.

As mulheres não dependem de nenhuma astúcia para resolver a charada. Basta comparar quem começou a transa e aquele que restou no quarto.

Como que o sujeito passional, pedindo tudo para ontem, com ânsia de tirar seu sutiã, soprando safadezas sem precedentes nos ouvidos, não suportando um minuto longe de suas pernas, desliga-se de qualquer aproximação e é capaz de dar agora um descarado e sem sal beijo na bochecha?

Se o homem lhe ama, demonstrará apego, oferecerá o peito para sua cabeça, segurará sua mão, alisará os cabelos, continuará beijando na boca, comentará algo engraçado para distrair a seriedade daquele momento.

Se o homem lhe ama permanecerá perto, respirando longamente a falta de ar.

Completamente dispensável o telefonema do dia seguinte para definir se é ou não é amor. Quando o homem lhe ama, torna-se óbvio, redundante, até piegas, deseja ainda agradar mesmo saciado.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 01/07/2015

ANTES E DEPOIS DO COFRINHO


O homem renuncia seus títulos de nobreza quando mostra o cofrinho.

Antes disso, ainda desfruta de chances de salvação e de terapia. Existem na trajetória masculina dois períodos da cristandade no casamento bem definidos: AC e DC.

No momento em que ele se agacha, na pose de mecânico distraído, com a calça arriada e o fundilho aparecendo, acabaram suas pretensões estéticas.

Não há desculpa para a falta de cuidado. Inútil alegar que estava arrumando o vazamento da cozinha ou procurando algo debaixo do sofá e não contava com as mínimas
condições para se preocupar com os detalhes.

É pecar uma vez que o demônio da preguiça assume o corpo.

Após o vexame, o sujeito descerá a ladeira longe do trio elétrico. Cultivará a barriga, esquecerá o cinto, deixará crescer pelo no nariz e na orelha.

Será capaz de tudo: de sair na rua de abrigo rasgado, de roupão, de pantufas, de chinelos da Bela Adormecida. Não arcará com mais nenhum capricho e controle da
aparência. Abandonou o time em campo.

Coitada de sua mulher. O próximo passo é usar calção sem cueca e não perceber o que está dentro ou fora do forro.

Expor o cofrinho é próprio de macho largado. Não terá mais nenhuma vontade de agradar. Sacrificou o último estágio da censura e da decência.

Não se penitenciará pelas constantes porquices dentro de casa. Confundirá intimidade com desleixo. Logo mais estará urinando de porta escancarada, palitando os dentes
de boca aberta, soltando flatulência na cama e obrigando a sua companhia a cheirar junto debaixo do edredom e arrotando na mesa para pedir aplauso.

Testemunhar seu parceiro de quatro é tristemente inesquecível, que sempre pega a mulher desprevenida. Ela jamais percebe quando irá acontecer para se preparar e se
defender. Pode ser na frente de uma geladeira ou do armário. A camiseta levanta subitamente, a calça cai e é tarde demais para fechar os olhos e não gravar a porção indefinida entre glúteos e gordura.

O berço do ogro é o cofrinho. A paisagem desastrosa de um traseiro desgovernado não provoca cumplicidade feminina, mas rejeição. E, principalmente, desperta uma dupla pena, do homem na posição de Napoleão perdendo a guerra e de si, por estar casada com ele e não ser nem uma Josefina para ter um amante de respeito.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  30/06/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18209

O TEMPO DA RESPOSTA

Arte de Raul Santos Zerpa

Você não pode perder o tempo da resposta para sua mulher.

Não dá para demorar muito.

Se atrasar, ela ou vai achar que está mentindo ou ganhando tempo ou que é indiferente aos assuntos dela.

Todas as opções são péssimas.

Tem que reagir rápido diante de uma questão. É bater um escanteio.

Caso contrário, ela não falará mais no assunto. Vai se calar pelo resto do dia. Vai se emburrar, embirrar. Você ficará como um idiota suplicando a repetição da pergunta, buscando agradar de tudo o que é jeito, mas perdeu a chance.

Mulher contrariada é impossível de contentar. Espere o dia seguinte.

Ouça o comentário na manhã desta terça-feira (30/06), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Kelly Matos:

FELIZARDOS OS CASAIS DA MANHÃ


O sexo de manhã estabelece anticorpos contra a infidelidade.

Casais que preferem o turno matinal desarmam qualquer pulada de cerca.

É um escudo para amantes. Uma cerca eletrônica na aliança.

Dificilmente a esposa ou o marido trairá com um envolvimento ao despertar do dia, seja rapidinha, seja média com pão e manteiga. O contato fervoroso logo cedo liquida com as dúvidas do relacionamento.

Estará com o cheiro de seu amor no corpo, a saudade quente, o gosto da cama da própria casa, é muita desfaçatez sair procurando mais, daí já é doença.

A tese de trair por falta de interesse do parceiro também cai por terra. Nem pode alegar a ausência de cuidado para flertar com terceiros.

O hábito ainda acaba com a compulsão dos tarados. Não há tentação que resista.

O sexo de manhã é prevenção. É marcação de território. Felizardos são os que praticam.

Quem terá vontade de transar em menos de seis horas? Improvável. Estará satisfeito demais para dar mais uma e correr o risco de ser pego.

Interrompe as estratégias dos amantes de se encontrar ao meio-dia em hotel e no decorrer da tarde em motéis, suspende as escapadas dos intervalos do serviço.

É tudo muito recente para pensar bobagem. A culpa não lhe deixará responder sim para o inimigo.

Por sua vez, os casais que optam pelo tradicional sexo no fim do dia sofrem com o acúmulo de tarefas. Para transar, terão que enfrentar o cansaço do trabalho, os problemas e o sono. Podem adiar o prazer à espera de um final de semana redentor, que nunca chegará. A abstinência involuntária abre a guarda para indiscrições e convites na web. Não estarão mais sozinhos, mas rodeados de preocupações a respeito do pensamento silencioso de quem acompanha: será que ele me ama? Será que ela me quer? Por que não me procura mais?

A idealização sempre gera adiamento. Será uma maratona para abrir espaço a dois e criar clima entre banho, jantar, filhos, contas, tarefas, telefonemas, leituras, televisão. A noite gera desespero e extremismo. É agora ou nunca. Um vai querer mais do que o outro, um vai se incomodar mais do que o outro, um vai dormir emburrado por fracassar em seus ataques enquanto o outro dormirá triste por ser forçado a algo que não deseja.

Já os que realizam sexo de manhã têm uma vantagem. Vivem desobrigados, leves, podem reservar o entardecer para conversar, jantar e assistir novela. Não precisam pressionar nada, muito menos inventar desculpa como enxaqueca e indisposição.

E se, por ventura, estiverem excitados à noite será um bônus, uma promoção, um prêmio pela antecedência. Certamente despertarão inveja dos amigos: alcançaram a média nacional do mês em 24 horas.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  28/06 /2015 Edição 18208 

SEMI

Arte de Endre Rozsda

Não sou famoso, sou quase, vítima sempre daquela observação vaga: "eu te conheço de algum lugar".

O sucesso não subiu à minha cabeça porque jamais deixou os meus pés.

Alguém me encontra na rua e pede para fazer uma selfie, na hora me sinto um ator de novela, o cara ainda fala alto para todo mundo ouvir: "vc é da televisão, muito famoso". Estou já me vendo na capa da revista Contigo!, até que ele destrói qualquer ilusão e me pergunta:

- Como é seu nome mesmo?

Não têm como fugir do vexame.

Ou quando sou cumprimentado no supermercado: "Carpinejar? Adoro tudo o que faz. Sou seu fã, Mauricio Carpinejar"

Nem corrijo. Subcelebridade não corrige nada.

Ou quando me confundem com um outro careca, o Paulo Gustavo. Depois de foto, autógrafo e abraço apaixonado, entendo a confusão:

- Morro de rir com seu programa no Multishow.

Não tenho programa no Multishow.

Só me resta ser sósia, dublê e figurante até a fama chegar. E isso se ela me reconhecer.

Ouça o comentário na manhã desta sexta-feira (26/06), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

DECEPÇÕES AMOROSAS

Arte de Eduardo Nasi

Já gerei decepções, mesmo quando não cogitava corresponder a uma idealização.

Somos o que também o outro nos sonha, o que é um atalho de pesadelos.

Em uma noite violácea, como são as noites quentes estreladas, a namorada bebia na cozinha quando reparou num objeto com frisos laranja e preto de pé na sala, preso num suporte.

Ela gritou, sem esconder o entusiasmo. Os olhinhos brilhavam:

- Você tem uma guitarra! Toca para mim?

Tudo bem que estava escuro, à meia-luz, mas não era uma guitarra, mas um aspirador de pó de última geração, que se adaptava aos movimentos do corpo.

Ainda expliquei:

- Queria há muito tempo.

E demonstrei que uma das peças era removível e funcionava como aspirador portátil, de mão, para vãos e mesas. Falava com entusiasmo e orgulho, repetindo as palavras de Excel do vendedor.

O rosto dela se deslocou do ocidente ao oriente em minutos. Para quem aguardava um guitarrista descolado e senhor da madrugada, deve ter sido frustrante encontrar uma dona de casa vespertina e careta. Não transamos naquela noite, ela enfrentou sérias dificuldades para mudar o seletor materno e doméstico para o de homem de sua vida, selvagem e imprevisível.

Como estávamos nos conhecendo, não havia como prever o que eu era, qualquer início de relação é envolta em mistérios, pistas e descobertas. Vi que ela acalentava a fantasia de um músico-poeta, entoando suas canções prediletas ao pé do ouvido.

Mas não menti, não fingi, escolhi a verdade como passaporte para a felicidade, quando o costume é entrar nela de forma clandestina.

Realmente guardo uma paixão ardente por faxina, por esta possibilidade barata de reformar o ambiente apenas com a limpeza.

Eu despertei cedo para inaugurar o aspirador. Ela dormia.

Procurei fechar as portas e vedar o som. Poderia ter esperado a minha companhia ir embora, só que não me contive. Todo adulto ansioso é uma criança.

Vestido de abrigo e de camiseta rasgada, voei pela sala e cozinha baixando e levantando a mangueira de vento. Aspirava até o teto. Ria ao destruir uma teia de aranha transparente ou ao capturar ciscos do alto da estante.

Foi quando testemunhei a namorada, pasma e atônita com a minha movimentação, parada no corredor:

- Pode parar com esta barulheira?

Naquele momento, diante de sua advertência, eu me senti uma pomba-gira de Keith Richards, Leonardo Wohlers, Stevie Ray Vaughan, Chuck Berry e Robert Johnson, um guitarrista tocando na garagem, envaidecido pelos seus acordes altos e ensurdecedores.

Ninguém me arrancaria do meu transe inspirado.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 24/06/2015

BATIZADO DO TÊNIS


Mantenho até hoje pânico de sair na rua com tênis novo.

As duas décadas de experiência desde a escola não aliviaram a ansiedade.

Minha vontade é comprar tênis usado, para não sofrer com o receio infantil que se esconde intacto nos meus olhos de meia-idade.

Sofria com o batizado dos colegas. Bastava aparecer com um tênis branquinho que a turma fazia fila para batizar.

Nunca estudei em seminário, mas a turma virava um bando de padres sedentos para aspergir lama no recém-nascido.

Havia um delator espertinho, que gritava ao tocar o sinal:

– Fabrício está de tênis novo!

Eu procurava argumentar em vão:

– Só lavei, só lavei.

Experimentava no recreio um corredor humano que não permitia fuga. Sem apelação, escapatória, adiamento, liminar. Fechavam a porta.

Em minutos, o tênis ficava barrento, sujo, com manchas pretas de piche. Mais humilhante do que um dia de chuva.

Recebia o mapa de Porto Alegre nos cadarços – herança das longas caminhadas das crianças, que vinham de longe para a escola, atravessando vários bairros a pé.

Meus dedos terminavam esmagados e achatados. São absolutamente tortos devido a esse trauma silencioso.

O primeiro que se aproximava para inaugurar era gentil, já os demais compensavam o atraso com força e truculência. Aproveitavam o contexto para me chutar e descontar 
diferenças de brigas históricas do futebol. Os pisões se transmudavam em coices.

Adoecia de remorso ao voltar para casa. A mãe protestava injustamente, ralhava que joguei bola logo na estreia do presente, que não cuidava de minhas coisas e não compraria mais nada.

Tratava-se de uma ameaça séria numa época de recatado consumismo e de poucas opções (ou se adquiria Conga ou Kichute ou Rainha).

Eu não tinha outro tênis, era um só até arrebentar, até aparecerem as unhas, até a sola se esfacelar como pão molhado.

Pai e mãe analisavam o estado dos nossos calçados diante da reivindicação de que precisávamos de um segundo par.

No jantar, enfrentávamos uma vistoria tensa, algo como reunião para melhoria de salários entre CUT e sindicato patronal.

Os pais conversavam, cochichavam e vinham com o terrível parecer:

– Dá para usar mais uma semana.

A semana durava um mês e meio.

Os tempos de quem sofre e de quem cuida são sempre diferentes.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 6,  23/06/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18202

domingo, 5 de julho de 2015

ATÉ QUE O FACEBOOK NOS SEPARE

Arte de Mario Carreño

Ser fiel e leal atualmente exige novos acréscimos no juramento da igreja.

É preciso ser fiel e leal na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, mas também no Facebook, no Whatsapp, no Skype, no e-mail, no Twitter, no Instagram...

Estamos nos casando hoje duas vezes. São dois casamentos simultâneos: na realidade e na virtualidade.

Tem gente que casa na vida real e não na virtual.

Não é apenas ser fiel e leal com o corpo, mas também com a imaginação e com a fantasia.

Não é apenas ser fiel e leal dividindo as tarefas, mas também não escondendo nada do celular.

Não é apenas ser fiel e leal em casa, mas em todas as caixinhas de mensagens e inbox.

Não é apenas ser fiel e leal falando, mas também em todas as letras, bytes e emojis.

Não é apenas ser fiel e leal na aparência, mas também quando ninguém está olhando, o que significa não seduzir ou não se mostrar fácil em diálogos na web, é ser casado
24 horas, é não testar os limites de estranhos com perguntas, não acreditar que traição é apenas sexo.

Traição é ser íntimo de duas pessoas ao mesmo tempo.

Ouça o que falei na manhã dessa terça-feira (23/6) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

POR QUE ESCREVO SEM PARAR?


Escrevo sem parar, escrevo cinco textos por semana, para que você nunca deixe de se apaixonar por mim.

Escrevo sem parar para que você me abrace pelas costas, e nem lhe veja se aproximar de mim, distraído como sou diante das janelas abertas, que apareça com seus pés de vento e pluma e me enlace e encaixe sua cabeça em meus ombros e diga que me ama suspirando, como alguém que diz um bom dia nos ouvidos.

Escrevo sem parar para lhe convencer do quanto preciso de você, do jeito que for, do jeito que é.

Escrevo para me casar com você, para planejarmos as férias, para um dia você deixar que o nosso filho jogue bola dentro de seu ventre.

Escrevo porque não me dei por vencido, não me dei por satisfeito, não sinto que o meu amor é suficiente para garantir o seu amor e farei surpresas no interior das surpresas até que tudo entre nós seja conhecido.

Escrevo sem parar em qualquer canto ou movimento, com caneta, lápis, teclado e unha na tela, a tinta dos meus escritos estará em seus olhos verdes.

Escrevo sem parar, mesmo que não me leia, mesmo que me esqueça, mesmo que não tenha vontade de falar comigo.

Escrevo sem parar porque há datas quebradas, há datas com uma única asa para voar e o esforço das pernas em correr para ganhar impulso.


Escrevo sem parar porque a água é madura com as pedras redondas no fundo do leito, porque eu sou maduro quando toco os seus pés na cama.

Escrevo sem parar, pois caminho um pouco mais com a boca em cada beijo nosso.

Escrevo sem parar em nome do que não vi, não vi você andando de bicicleta.

Escrevo sem parar para chamar a sua atenção, pela carência que ilumina os meus enganos, pela fé que conserta o meu juízo, pela esperança que refaz a nossa memória.

Escrevo sem parar para curar a sua tristeza, para que não se isole nos pensamentos loucos, para jamais conclua que é melhor ficar sozinha.

Escrevo sem parar para vê-la de novo abrindo a porta de nossa casa.

Escrevo sem parar para admirá-la por encontrar um modo de tomar banho de sol no inverno, ainda que cheia de casacos, com o mesmo tempo de frente e de costas.

Escrevo sem parar porque meu sangue deve ser quente e sua cerveja gelada.

Escrevo sem parar como um mendigo que se cobre de jornal e não lê as notícias que estão em sua cara, que prefere inventar a próxima manhã, absurdamente desatualizado da própria vida e só sabendo de você.

Escrevo sem parar por orgulho e teimosia, por insistência e vaidade, já que não encontrei nada melhor que substituísse seu riso.

Escrevo sem parar pelo dom de confundir o espaço dos travesseiros e me prender em seus cabelos quando deitamos juntos.

Escrevo sem parar, como um animal da respiração, baixo a cabeça e escrevo, este meu violão sem cordas, esta minha flauta sem pinos, este saxofone sem garganta.

Escrevo sem parar a procurar um perdão melhor do que o de ontem, uma confissão mais sincera para amanhã, palavras que confirmem o quanto sou seu desde sempre.

Escrever é a minha decisão de estar com você.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  21/06 /2015 

PERGUNTAS DE CRIANÇA

Arte de Roberto Matta

Adoro as dúvidas infantis. Crianças, entre 2 e 10 anos, realizam o bombardeio de 300 perguntas por dia.

Por que chove com sol?

As baratas têm antenas para assistir tevê?

Por que cachorro mia quando se machuca?

Por que o espelho não tem um outro lado como a janela?

Onde caem os passarinhos quando morrem?

Todo gato é homem porque tem bigode?

Como é que dentro do ovo não tem um pintinho?

Por que a voz não sai quando gritamos no pesadelo?

Como os peixes respiram debaixo da água?

Onde termina o céu?

Respondo todas as perguntas de criança com prazer, com curiosidade, com alegria pela observação engenhosa. Mas há algumas questões que não tenho como dar uma resposta e que só resta me calar.

Nem eu entendo.

Fiquei olhando para o infinito, triste, quando uma menina me perguntou em uma palestra: Por que os meus pais estão casados se são infelizes e vivem reclamando um do outro?

Ouça o que falei na manhã dessa sexta-feira (19/6) na Rádio Gaúcha programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

CHAVE DO CAIXÃO

Arte de Eduardo Nasi

No primeiro enterro que fui, do menino Manoelito, do colega de escola Manoelito, e repito Manoelito para vê-lo viver o que ele não teve oportunidade, para recompensar sua morte precoce aos sete anos, reembolsar seus dias de parcos crepúsculos e estreitos amanheceres, não entendi a fechadura de seu caixão. Por que trancaram meu melhor amigo? Ele sofria do medo de dormir no escuro, sofria do medo de maçaneta fechada, seu maior pânico era entrar no banheiro da escola e a trava emperrar.

Mesmo falecido, deveria estar com vontade de luz e ar puro.

Lembro que constrangi a sua mãe, concentrada em sua dor e fungando ritmada, ao perguntar à queima-roupa:

- Quem tem a chave do caixão?

Ela não respeitou o meu dilema, apenas me abraçou forte e chorou mais um pouco. Não se tratava de
uma metáfora, criança é muito realista, não se perde com divagações.

Havia uma urgência concreta e objetiva em minha questão. Estava preocupado com meu amigo, mesmo morto. O fim não termina a amizade. O cuidado não é obediente à morte.

Eu me aproximei do pai, que demorou para entender quem eu era e o que queria. Mas ao menos não me abandonou com cara de cavalo e replicou que não fazia a mínima ideia.

Meus olhos tomaram o tamanho daquela fechadura miúda, de piano de criança, de caixinha de bailarina, de estojo de vó. Quase sussurrava a minha irmã por um grampo de suas tranças, ansiado para futricar o casulo e libertar o meu fantasma de seu aguilhão de madeira.

O medo aumentava a dúvida. Será que o segredo ficava numa gaveta no escritório do cemitério? Será que o coveiro colecionava um molho de seus defuntos? Como que os pais permitiam que a chave do filho acabasse com um desconhecido? Como que uma encomenda é feita para não abrir?

Às vezes, sonho com Manoelito batendo na porta de meu quarto pedindo para entrar. Pode estar também batendo na tampa do caixão pedindo para sair. Não diferenciava as pancadas, se vinham de dentro ou de fora.

A minha cama tornou-se vizinha de sua cova. Ele é meu eterno amigo que dorme no chão. E nem preciso pegar mais o colchonete da garagem.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 17/06/2015

FLORESCER OS BOTÕES


Não quero herdar da casa materna os 8 mil livros da biblioteca.

Não quero os quadros de artistas famosos.

Não quero os móveis antigos ou mesmo a cadeira de balanço onde fui amamentado.

Não me interessa nenhum bem de um futuro inventário.

Não desejo nada dali de dentro, a não ser a caixinha de botões. A caixinha de botões que está na
primeira gaveta da cristaleira da sala.

E não passarei mais frio na memória.

O desinteressante pote rosa, entornado até a borda, que nem fecha direito a sua tampa de enroscar, lascada do lado direito.

É um museu das sobras da família. É um achados e perdidos de nossos trajes. Tem botões extraviados ou reservas de três décadas, de camisetas e casacos do meu pai, dos meus avós, dos meus irmãos.

Camadas e camadas geológicas de esquecimento doméstico, recuperadas do chão por uma atenta sentinela do guarda-roupa. Uma montanha de tipos e modelos, desde os embutidos aos duplos, dos foscos aos perolados, de todas as cores e formas.

Era o estojo de primeiros socorros antes de um encontro importante, em que notávamos que não tinha como fechar a camisa.

Lá vinha a mãe acalmar o nosso desespero. Sempre achava o botão certo, o botão ideal, o botão igual. Impressionava-me a quantidade inesgotável de gêmeos guardados naquele berço miúdo.

Havia uma alegria quando ela colocava o fio preto ou branco na cabeça da agulha e nos prendia de novo às certezas da rotina. Ela recuperava a ordem natural do nosso crescimento, como se devolvesse o pássaro ao ramo, o peixe ao rio, a estrela ao céu.

Dedicava tardes esparramando seu conteúdo na mesa, buscando adivinhar a origem de cada uma das peças, realizando combinações, brincando de estilista de brechó, remontando o meu passado de menino.

Mas confesso que também havia uma tristeza no quebra-cabeça dos pequenos objetos, uma melancolia, botões de flores que ficariam fechadas e jamais desabrochariam com o toque das unhas.

Significava ainda restos das pessoas, rastros de beijos e amizades, aguardando uma adoção desesperada, uma nova encarnação.

Ia além. Imaginava os botões como testemunhas dos principais acontecimentos de uma vida. Serviram para o desabotoar os seios da primeira noite de uma mulher ou para fechar a blusa durante a despedida de uma paixão.

Os botões são as âncoras de nossas mãos.

Os botões são as moedas das roupas, o troco de nossas ambições.

O botão é o sino do pano.

O botão é o brinco da veste, o brilho do detalhe.

O botão é um estetoscópio natural. Sem ele, o tecido não escuta a pele.

O botão é a maior das insignificâncias.

Você somente lembra que precisa dele quando perdeu. Assim como o amor de mãe.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  16/06/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18195

NA HORA H

Arte de Oleg A. Korolev

Os pais podem errar um pouco por dia, tropeçar na distração, esquecer um compromisso, não corresponder às expectativas. Afinal, não são perfeitos.

Só que tem aquela encruzilhada em sua vida, aquele dilema, que poderá contar com eles. E só com eles.

Eles não vão faltar na hora H.

Quando você realmente precisar de apoio, eles estarão na primeira fila. Serão voluntários, dedicados, sem nenhuma explicação, sem nenhuma persuasão.

Pai e mãe nunca esquecem de comparecer quando são fundamentais.

Esta é a diferença da paternidade e da maternidade: aparecer na final do campeonato de nossa angústia, na disputa de pênaltis de nosso sofrimento.

Será de menos o conflito de geração, a caretice, a dificuldade de comunicação, as cobranças.
É nisto que precisa confiar: natural que eles vacilem, natural que você reclame, natural que vocês briguem.

Mas eles jamais estarão ausentes nos momentos decisivos.

Pai e mãe entendem como ninguém de prioridade.

Ouça o que falei na manhã dessa terça-feira (16/6) na Rádio Gaúcha programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

AMOR VIRA-LATA


Ela não aceita que chamem seu namorado de feio, diz que ele é apenas desarrumado.

Ela não aceita que chamem seu namorado de vesgo, diz que ele olha para todos os lados por segurança.

Ela não aceita que chamem seu namorado de vampiro, diz que ele tem um sorriso de criança.

Ela não aceita que chamem seu namorado de confuso, diz que ele procura a palavra certa.

Ela não aceita que chamem seu namorado de estranho, diz que só é estranho aquilo que a gente não conhece.

Ela não aceita que chamem seu namorado de retraído, diz que ele é apenas educado.

Ela não aceita que chamem seu namorado de tolo, diz que ele é um sonhador.

Ela não aceita que chamem seu namorado de desocupado, diz que ele estuda muito e um dia será
famoso.

Ela suspira descrevendo o que é a mão dele suando na mão dela, o quanto se arrepia quando ele beija sua testa, o quanto se sente orgulhosa de andar abraçada nele, o quanto logo que se afasta já quer voltar para perto, o quanto a saudade elimina os defeitos, o quanto o coração bate inesperado quando ele deseja uma “Boa aula” ou comenta que “Foi bom te ver”.

Ela não aceita que falem mal de seu namorado. Porque não é qualquer um, é seu namorado, é o homem que ela escolheu entre todos os homens que ela viu passar.

A beleza vem de sua verdade, de nenhum outro lugar mais seguro. Ninguém tira e ninguém atrapalha sua crença. Não serão os pais, os amigos, os colegas que a farão pensar o contrário. O sentimento não muda de opinião.

Ela me apresentou seu namorado em Teresina, quando participava do Salão do Livro do Piauí (Salipi):

– Não é lindo?

Eu achei mesmo o menino lindo. O menino encabulado atrás dela. O menino escondido na moldura crespa dos cabelos dela. O menino e sua leoa. O menino e sua protetora. O menino que amadurecerá protegido por aquela mulher, que conseguirá superar os preconceitos e o bullying pela devoção milagrosa.

Não há como desmanchar um amor vira-lata. Porque o vira-lata não foi escolhido pela sua formosura, mas definido pelo território insondável da ternura.

Adota-se um vira-lata pelo jeito torto que anda, pelo lampejo do olhar miúdo e de pobres cílios, pela carência de seus meneios.

Um vira-lata será chamado pelo nome, não pela sua raça e pedigree.

O vira-lata tem resistência, tem humildade, tem sabedoria de rua.

O vira-lata será sempre grato. Não precisa de nada para ser feliz; basta ser simplesmente amado.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  14/06 /2015 Edição N°18193