sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

ME POUPE DOS DETALHES


Sei que meus pais transavam. Mas me poupe dos detalhes. Os detalhes traumatizam.

É um assunto que devemos conhecer superficialmente, manter a criança dentro de si desinformada. Enxergar sem querer é natural, abrir a porta e testemunhar aquele amontoado frenético de corpos também não faz mal, são casualidades da casa e podemos guardar as imagens em caixinhas fechadas no depósito do inconsciente. Ainda temos controle do lacre. A questão é a confissão, o desabafo sem pudor estraga a relação, não existe como se defender das palavras.

Não haverá melhoria da qualidade sexual descobrindo o que os pais faziam na cama, se eram coreógrafos do chuveiro ou usavam a poltrona ou aproveitavam o espelho do armário. Mudará o nosso jeito de habitar o espaço e desfrutar dos objetos sagrados da convivência. Aumentará o repertório do nosso bloqueio criativo. O risco é o surgimento da maldita cena em horas impróprias. O pior não é broxar, porém explicar para a coleguinha o motivo.

É a mesma relação com o motel. Se soubéssemos o que aconteceu antes de entrar, jamais pagaríamos o quarto.

A intimidade exarcebada com os pais não acrescenta em nada em cultura geral. O efeito é até castrador. Vai contaminar pontos erógenos da memória.

Minha mãe inventou de me revelar que dançava Bolero de Ravel nua. Eu gritei: - Para agora, não me interessa, não perguntei!

Não tenho ideia de onde o relato poderia desembocar. Ela ficou assustada, não tanto quanto eu. Os limites são importantes para preservar a doçura assexuada.

Graças a Deus que não era surubinha de leve, mas a simples menção da trilha erótica foi suficiente para que procurasse novamente o terapeuta. Custará três meses de sessão para apagar parte dos ouvidos. Não consigo mais ouvir essa música. Nunca mais na vida.

Publicado em O Globo em 07/02/2018

Um comentário:

Fabíola disse...

Como não amar Fabrício Carpinejar, seja na TV, no Instagram, no Youtube ou nos meus livros de cabeceira...
Utilizando suas crônicas nas minhas aulas de português, quem sabe não ajudo a despertar os cronistas que existem no interior de meus alunos...
Grande abraço,

Fabíola Jácome Medeiros