Toda família tem um tio fracassado. Aquele tio que não se firmou em nenhum emprego. Ou um tio tarado, o que erramos o nome da nova esposa.
É uma figura essencial para o equilíbrio genealógico. Será a fonte de fofocas na falta de assunto durante as datas festivas. Em caso de silêncio fúnebre na hora do pernil, é alguém perguntar “E como está o tio?” e a maldade alegre volta a correr solta.
Tio é o único parente que pode ser nosso ou não, dependendo das circunstâncias. Um ioiô de nossas vontades. Um curinga do nosso oportunismo. Se ele comete um crime, nunca ouvi seu nome, é muito distante. Se ele fica milionário, é irmão de meu pai ou de minha mãe, achegado demais, um padrinho espiritual.
Falo de cadeira cativa, sou tio, nem quero descobrir qual o meu papel para os dois filhos de Carla. Talvez seja o do tarado e do fracassado simultaneamente.
O bom de exercer essa função intelectual é que não temos noção do que representamos para os outros. O tio é o que nos mantém jovens, uma década mais velho ou alguns anos a mais, porém sempre acabado ou vítima de uma recuperação difícil, o que dá no mesmo para assegurar o viço de nossa aparência. Em função de sua coragem (que para muitos é inconsequência), alimento uma admiração clandestina pelo personagem.
Pois encontrei com o tio Daciano no último final de semana. Simpático, fanfarrão e encharcado de uma felicidade pouco educada (como deve ser a autêntica felicidade). Foi num churrasco de improviso, em que sobram copos e os pratos não são suficientes. Ele mora no Acre. Não entendo direito do que vive, acho que é de transporte de carga.
Nossas conversas eram tomadas por demonstrações. Eu pretendi antecipar seu sofrimento com o inverno gaúcho. Negaceou com os dentes e mostrou sua jaqueta de couro, toda forrada de lã.
– Não sofro, vê essa jaqueta?
Toquei na blindagem, analisei o zíper e elogiei seu aspecto imponente de armadura.
– Comprei por R$ 50 na Bolívia. Tenho três na mala.
Mudei de tema e confessei que meu relógio machucava o pulso, apesar de não abdicar de pulseira grande, chamariz da curiosidade feminina. Ele riu, e retirou três exemplares de sua jaqueta.
– Comprei por R$ 80 na Bolívia. Troco a cada viagem. Quer ver?
Arrisquei comentar de perfumes, que meu refil de Diesel terminou. Ele sacou três vidros de um bolso secreto da jaqueta: Jean-Paul Gaultier, Carolina Herrera e Armani.
– Experimenta! Comprei na Bolívia pela metade do preço. São de 50ml.
Depois de borrifadas e testes, lamentei que não havia café para lavar a respiração. Que nada, ele arrancou um saquinho de grãos dos fundilhos da calça e estava resolvido o impasse.
Eu me enxerguei diante de um colecionador. Um mágico retirando das mangas o Zoológico de Sapucaia. Ele agia como um expositor ambulante. Encarnava o casamento da revista da Avon com a Enciclopédia Mirador. Sua língua imprimia preços de passagens, de celulares, de computadores, de iPods. E fechava a vitrine tocando em meus ombros, num suspiro samaritano: “Fabrício, está pagando caro sua vida...”
Quando ele começou a falar de sua mulher, não resisti:
– Já sei, conheceu na Bolívia.
Publicado no jornal Zero Hora
Editoria Geral, p.2, 18/06/2010 Edição N° 16370
17 comentários:
Acho que sou o meu próprio tio,
irmão dos meus pais,
sozinho numa tarde modorrenta.
sou o tio fracassado sem dúvida nenhuma, desempregado crônico e poeta.
caramba! todo mundo se considera o tio aqui? eu também ia nfalar justamente isso, mesmo eu que deveria ser a menina educadinha da família, às vezes me sinto peixe fora dágua quando levanto da mesa de jantar pra fumar, e quando fico parada alí fora, sozinha na varanda começo a me sentir o "tio" pensando o que eles devem pensar de mim. a tarada? a fracassada?..rs.
mto boa a sua definição e seu tio Daciano!
bjs!
Adorei!
Excelente!
Nada como um tio para me tirar do tremedal da ignorância!: não sabia que a Bolívia era uma sucursal do Paraguai. Ou seria da China?
Parabéns pela postagem.
Abraço.
*Dica: se achar conveniente, coloque, por favor e obrigado, os comentários em janela independente, pois há dias em que é chato esperar a abertura completa da janelona. A janelinha autônoma é rápida e prática, apesar de mais insegura.
Todos os meus tios são assim, o que não falta é assunto na família.
Meu Deus! Quantos bolsos tinha este casaco?
A cada texto que leio me faz ter mais certeza:
Você merece ser Fabrício, o cara
maravilhoso
HAHAHA. Demais!
Mas que história é essa de o relógio com pulseira grande ser chamariz de mulher? Pra mim quanto mais discreta for a coisa, melhor.
Beijo.
Eternamente sua fã!
- Amo os seus textos!
A Bolívia pode ter até umas coisas mais baratas, mas eu não troco as nossas mulheres pelas deles!
Parece que eu sou a tal tia na minha família... :S
Já tinha ouvido falar em ti... e sinceramente, é muito mais do que falaram.
Encanto!
Abraço.
Procurava saber a função de tio, achei a resposta por Fabrício. Nunca pesquisei sobre o assunto e o texto achei muito engraçado e inteligente. Hoje tenho 55 anos, afastado dos parentes 39. Como posso está de bem com meus sobrinhos, exercer funções de tio se não os conheço a maioria? Se você tem alguma dica mande: laurentino44@hotmail.com.
E ai tio?
Laurentino
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