sexta-feira, 18 de junho de 2010

A IMPORTÂNCIA DO TIO PARA A EVOLUÇÃO DA ESPÉCIE

Arte de George Grosz

Toda família tem um tio fracassado. Aquele tio que não se firmou em nenhum emprego. Ou um tio tarado, o que erramos o nome da nova esposa.

É uma figura essencial para o equilíbrio genealógico. Será a fonte de fofocas na falta de assunto durante as datas festivas. Em caso de silêncio fúnebre na hora do pernil, é alguém perguntar “E como está o tio?” e a maldade alegre volta a correr solta.

Tio é o único parente que pode ser nosso ou não, dependendo das circunstâncias. Um ioiô de nossas vontades. Um curinga do nosso oportunismo. Se ele comete um crime, nunca ouvi seu nome, é muito distante. Se ele fica milionário, é irmão de meu pai ou de minha mãe, achegado demais, um padrinho espiritual.

Falo de cadeira cativa, sou tio, nem quero descobrir qual o meu papel para os dois filhos de Carla. Talvez seja o do tarado e do fracassado simultaneamente.

O bom de exercer essa função intelectual é que não temos noção do que representamos para os outros. O tio é o que nos mantém jovens, uma década mais velho ou alguns anos a mais, porém sempre acabado ou vítima de uma recuperação difícil, o que dá no mesmo para assegurar o viço de nossa aparência. Em função de sua coragem (que para muitos é inconsequência), alimento uma admiração clandestina pelo personagem.

Pois encontrei com o tio Daciano no último final de semana. Simpático, fanfarrão e encharcado de uma felicidade pouco educada (como deve ser a autêntica felicidade). Foi num churrasco de improviso, em que sobram copos e os pratos não são suficientes. Ele mora no Acre. Não entendo direito do que vive, acho que é de transporte de carga.

Nossas conversas eram tomadas por demonstrações. Eu pretendi antecipar seu sofrimento com o inverno gaúcho. Negaceou com os dentes e mostrou sua jaqueta de couro, toda forrada de lã.

– Não sofro, vê essa jaqueta?

Toquei na blindagem, analisei o zíper e elogiei seu aspecto imponente de armadura.

– Comprei por R$ 50 na Bolívia. Tenho três na mala.

Mudei de tema e confessei que meu relógio machucava o pulso, apesar de não abdicar de pulseira grande, chamariz da curiosidade feminina. Ele riu, e retirou três exemplares de sua jaqueta.

– Comprei por R$ 80 na Bolívia. Troco a cada viagem. Quer ver?

Arrisquei comentar de perfumes, que meu refil de Diesel terminou. Ele sacou três vidros de um bolso secreto da jaqueta: Jean-Paul Gaultier, Carolina Herrera e Armani.

– Experimenta! Comprei na Bolívia pela metade do preço. São de 50ml.

Depois de borrifadas e testes, lamentei que não havia café para lavar a respiração. Que nada, ele arrancou um saquinho de grãos dos fundilhos da calça e estava resolvido o impasse.

Eu me enxerguei diante de um colecionador. Um mágico retirando das mangas o Zoológico de Sapucaia. Ele agia como um expositor ambulante. Encarnava o casamento da revista da Avon com a Enciclopédia Mirador. Sua língua imprimia preços de passagens, de celulares, de computadores, de iPods. E fechava a vitrine tocando em meus ombros, num suspiro samaritano: “Fabrício, está pagando caro sua vida...”

Quando ele começou a falar de sua mulher, não resisti:

– Já sei, conheceu na Bolívia.

Publicado no jornal Zero Hora
Editoria Geral, p.2, 18/06/2010 Edição N° 16370

17 comentários:

O Neto do Herculano disse...

Acho que sou o meu próprio tio,
irmão dos meus pais,
sozinho numa tarde modorrenta.

Edson Bueno de Camargo disse...

sou o tio fracassado sem dúvida nenhuma, desempregado crônico e poeta.

Camila Reis disse...

caramba! todo mundo se considera o tio aqui? eu também ia nfalar justamente isso, mesmo eu que deveria ser a menina educadinha da família, às vezes me sinto peixe fora dágua quando levanto da mesa de jantar pra fumar, e quando fico parada alí fora, sozinha na varanda começo a me sentir o "tio" pensando o que eles devem pensar de mim. a tarada? a fracassada?..rs.

mto boa a sua definição e seu tio Daciano!

bjs!

Violene Silva disse...

Adorei!

Taís Pereira Lisbôa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Taís Pereira Lisbôa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Excelente!

Anônimo disse...

Nada como um tio para me tirar do tremedal da ignorância!: não sabia que a Bolívia era uma sucursal do Paraguai. Ou seria da China?

Parabéns pela postagem.

Abraço.
*Dica: se achar conveniente, coloque, por favor e obrigado, os comentários em janela independente, pois há dias em que é chato esperar a abertura completa da janelona. A janelinha autônoma é rápida e prática, apesar de mais insegura.

Anônimo disse...

Todos os meus tios são assim, o que não falta é assunto na família.

Anônimo disse...

Meu Deus! Quantos bolsos tinha este casaco?

Ela disse...

A cada texto que leio me faz ter mais certeza:

Você merece ser Fabrício, o cara

maravilhoso

Lara. disse...

HAHAHA. Demais!
Mas que história é essa de o relógio com pulseira grande ser chamariz de mulher? Pra mim quanto mais discreta for a coisa, melhor.
Beijo.

Karine Melo disse...

Eternamente sua fã!

- Amo os seus textos!

Tiago Medina disse...

A Bolívia pode ter até umas coisas mais baratas, mas eu não troco as nossas mulheres pelas deles!

Carola disse...

Parece que eu sou a tal tia na minha família... :S

Pat. disse...

Já tinha ouvido falar em ti... e sinceramente, é muito mais do que falaram.

Encanto!
Abraço.

laurentino44@hotmail.com disse...

Procurava saber a função de tio, achei a resposta por Fabrício. Nunca pesquisei sobre o assunto e o texto achei muito engraçado e inteligente. Hoje tenho 55 anos, afastado dos parentes 39. Como posso está de bem com meus sobrinhos, exercer funções de tio se não os conheço a maioria? Se você tem alguma dica mande: laurentino44@hotmail.com.
E ai tio?
Laurentino