Vivo uma maratona de viagens, descanso numa cidade e acordo noutra. Como durmo pouco, a namorada insistiu para que pelo menos aproveitasse o travesseiro e adquirisse abrigos e camisetas brancas. Dolorido gastar com o sono, sair com uma sacola do shopping para desaparecer, anônimo, entre os lençóis. Eu me via como um idiota, a quantia deveria ter sido direcionada a melhorar o visual no trabalho.
O homem tem pavor do acessório. Não costuma inaugurar roupas na hora de deitar. Usa a que for mais folgada, e não pensa mais nisso. Da mesma forma não se preocupa com cuecas e meias. Nunca repara na cama, nas colchas e edredons, a não ser no início do casamento. Não sei como nossa espécie não foi extinta até hoje. Depois que aceitamos o pijama, também não precisamos mais pagar ônibus – é que ficamos velhos. Aliás, macho não compra pijama, somente recebe de sua mãe ou de sua mulher.
Mas atendi a mudança de costumes e separei as peças para testar no hotel de Torres. Vencido o compromisso, de banho tomado, sossegado no quarto, abri a mala para colocar a calça. Ela murchou, não entrava. Estranhamente encolheu. Parecia grande, mas não o suficiente. Confundi o número na loja? Botei a perna esquerda e trancou mesmo. Observei que não era minha, mas de Vicente.
A possibilidade do engano é que me transtornava. Como meu filho amadureceu tanto a ponto de confundir minha calça com a dele? Cético, pasmo, estendi o abrigo na cama para comprovar sua altura, assim como meu pai conferia meu crescimento com a fita métrica – lembro que ria todo orgulhoso com o veredito. Às vezes, o pai mentia o avanço (não podia crescer três centímetros todo dia), porém acreditava, não desconfiava das boas notícias.
Acariciei cada linha do pano e imaginei o peso, o tamanho, a envergadura atual do meu Vicente. Não é que sou distraído, é que ele me surpreende sempre. Fui tocando em seu tempo, nos fios costurados de seu tempo, revendo suas gargalhadas na banheira azul, o espanto com o vaivém do balanço, as corridas vacilantes de cisne, o andar firme e decidido ao atravessar a rua, a concentração na primeira aula, o temperamento de virar a cabeça quando apanhado no colo, os cabelos compridos de roqueiro. Seus oito anos deslizaram pelos dedos. Transformei as mãos num ferro elétrico, desamassando os vincos, desfazendo as dobras. O rio subia os muros, avançava as marcas. Já havia uma enchente na minha respiração.
Ai,Vicente, você cresceu e nem me avisou.
Publicado no jornal Zero Hora
Interino de Luis Fernando Verissimo, p. 2, 25/10/2010
Porto Alegre (RS), Edição N° 16499
16 comentários:
Lindo, meu velho. Com "Ai, Vicente, você cresceu e nem me avisou.", tu não precisavas dizer mais nada. Sentimento puro.
Desculpa comentar algo que não diz respeito ao texto aqui, mas acabo de ler no twitter "a ternura é uma cilada no namoro. É o que mais se parece com amor, mas só gera amizade." Tão verdadeiro isso. Mas, então, o que devem fazer os doces e meigos? Socorrro!
Lindo isso!
Escrevi no final de semana um texto sobre filhos e despertar. Se tiveres um tempo, dá uma conferida. Adoraria de ver por lá.
Um semana cheia de descobertas pra ti, Fabro.
Bj,
http://www.construtoradepalavras.com.br/2010/10/amor-incondicional.html
Eles nunca nos avisam... Snif!
Fazer o que? É a vida!
Adorei a crônica e me identifiquei horrores: também venho trocando figurinhas, digo, "roupinhas" com a minha filha.
http://omundoparachamardemeu.blogspot.com/
Tudo o que você escreve parece perfeito.
Me tornei uma grande admiradora de seus escritos, suas crônicas são simplismente incríveis.
Gostaria de saber me expressar assim tão bem quanto você.
http://www.sobaminhapele.blogspot.com/
Muito lindo!
Poético!
Vixe!Fan-tás-ti-co!
Lembrei de um domingo em família contando esses e outros causos.
Beijo pra ti.
Eu, eu mesma e Irene
Belo é crescer e mais belo ainda é perceber.
Lindo!!! Adoro seus escritos!
Caramba, muito lindo mesmo!
Soube do seu blog faz pouco tempo, realmente seus textos são ótimos.
Gostei muito.
Pedro Bravo,
http://fotosdepalavras.blogspot.com/
Lindo e tão doce texto...
Eu adoro suas descrições e a pormenoridade de seus escritos. abraços
A idade dos filhos parece pesar mais para os pais do que a própria.
Belo texto!
Abraço.
Me identifiquei de pronto, me fez chorar. Beijos.
Carpinejar sou sua fã!
Que lindo,que palavras maravilhosas,que serenidade,que tamanha doçura em falar claro e envolvente.
De fato, muito bom!
esse não merece ser lido, pois o rio corre no rosto do leitor desavisado
Expressão espontânea de puro sentimento!!!
Amor paterno...perfeito!
Carpinejar/Vicente!
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