A mulher somente despreza quem ela amou demais. Não é qualquer homem que merece, não é qualquer pessoa. Pede uma longa história de convivência, tentativas e vindas, mutilações e desculpas. O desprezo surge após longo desespero. É quando o desespero cansa, quando a dúvida não reabre mais a ferida.
É possível desprezar pai e mãe, ex-esposa ou ex-marido, daquele que se esperava tanto. Não se pode sentir desprezo por um desconhecido, por um colega de trabalho, por um amigo recente. O desprezo demora toda a vida, é outra vida. É nossa incrível capacidade de transformar o ente familiar num sujeito anônimo.
Assim que se torna desprezo, é irreversível, não é uma opinião que se troca, um princípio que se aperfeiçoa. Incorpora-se ao nosso caráter.
Desprezo não recebe promoção, não decresce com o tempo. Não existe como convencer seu portador a largá-lo. Não é algo que dominamos, tampouco gera orgulho, nunca será um troféu que se põe na estante.
Desprezo é uma casa que não será novamente habitada. Uma casa em inventário. Uma casa que ocupa um espaço, mas não conta.
É a medida do que não foi feito, uma régua do deserto. A saudade mede a falta. O desprezo mede a ausência.
O desprezo não costuma acontecer na adolescência, fase em que nada realmente acaba e toda vela de aniversário ainda teima em acender. É reservado aos adultos, desconfio que deflagre a velhice; vem de um amor abandonado. Trata-se de um mergulho corajoso ao pântano de si, desaconselhável aos corações doces e puros, representa a mais aterrorizante e ameaçadora experiência.
Indica uma intimidade perdida, solitária, uma intimidade que se soltou da raiz do voo.
O desprezo é um ódio morto. É quando o ódio não é mais correspondido.
Não significa que se aceitou o passado, que se tolera o futuro; é uma desistência. Uma espécie de serenidade da indiferença. Não desencadeia retaliação, não se tem mais vontade de reclamar, não se tem mais gana para ofender. Supera a ideia de fim, é a abolição do início.
Não desejaria isso para nenhum homem. O desprezado é mais do que um fantasma. Não é que morreu, sequer nasceu; seu nascimento foi anulado, ele deixa de existir.
O desprezo é um amor além do amor, muito além do amor. Não há como voltar dele.
Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 07/03/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16632
63 comentários:
Simplesmente fantástico! Adorei o texto.
Uma sensibilidade incrível e uma reflexão fantástica. O texto é puro e verdadeiro. Adorei a crônica!
é bem isso.
depois de tanto amor, com a separação vem o desespero, aquela coisa inaceitável da perda. feito ferida aberta, a insistência do retorno. até que um dia entregam-se os pontos. a certeza de que tudo não volta mais nada surge como cicatriz que é preciso aceitar ou entender. entender ou aceitar, nunca os dois. então é: o amor total vai se virando um desprezo a ponto de transformar o tudo em coisa nenhuma - nem pó, nem fumaça. algo que é quase possível atravessar e tornar mais invisível que um mendigo no meio da rua.
O desprezo é um ato sublime para enterrar um amor que se quer foi verdadeiro
Das duas uma: ou você é bruxo ou é macumbeiro. Todas as vezes que leio suas crônicas sempre me tocam de um jeito indescritível, e quando me identifico, me dói nos lugares onde eu nem sabia que existiam em mim. Às vezes é como se você pudesse colocar nas palavras tudo aquilo que sinto, mas não consigo dizer (a não ser com os olhos). Sou fã demais das suas palavras.
Perfeita essa crônica, veio muito bem a calhar, carapuça que serve a tantas...
É aquilo que nós que sentimentos nem sempre temos tão claro: o surgimento do desprezo, as nossas razões e o amor que tivemos e que se converteu em indiferença, não como resultado de uma guerra perdida, mas como a última atitude de quem cansou de lutar.
Abraços
Esta crônica é um tratado de psicologia dos mais modernos e profundos. A missão do artista é colocar em letras os sentimentos (nada mais abstrato.
Parabéns pela inspiração, conhecimento e experiência.
Na música do Brasil tem um compositor que é Identificador de Sentimentos: é o PENINHA.
Jocimar - taiguar@terra.com.br
;
Você o faz com grande assertividade nas crônicas.
Ler você é conhecer-se melhor.
Abraços bons
Seria o desprezo a "insustentável leveza do ser"?
É assim mesmo... o oposto do amor não é o ódio, é o desprezo, a indiferença.
Adoro te ler.
bjos paulistas
a indiferença machuca muito mais que o ódio! quando alguém te odeia você sabe que ainda mexe com a pessoa, que tem algum sentimento ali! Mas desprezo, fode! Ser desprezado, desprezar alguém... indiferença machuca demais! =//
Até agora esse foi o melhor texto seu q já li. Embora ache que existem coisas piores do que o desprezo e que ele está longe de ser uma prerrogativa feminina.
Seja como for, gostei muito. Parabéns.
Um abraço do observador.
Deprezo, subproduto do amor, café forte e amargo.
Fiquei chocada! Incrível sua capacidade de desvendar a alma humana, sobretudo, a alma feminina. Parabéns!!
Beijos!
Sua fã, Patricia.
desprezo é a única tábua de salvação para aqueles que foram tratados com indiferença.
Só mesmo você para descrever um sentimento com tanta convicção e verdade. Principalmente o desprezo, tão obscuro entre todos os outros!
Um beijo
Perfeição!
é melhor não pensar sobre ele
deixá-lo como é de fato:
névoa com chumbo.
forte abraço,
camarada.
"A mulher somente despreza quem ela amou demais. Não é qualquer homem que merece, não é qualquer pessoa. Pede uma longa história de convivência, tentativas e vindas, mutilações e desculpas. O desprezo surge após longo desespero. É quando o desespero cansa, quando a dúvida não reabre mais a ferida."
Mais um de seus perfeitos textos.
"Um texto perfeito e não serve apenas o desprezo de mulher para homem, mas o desprezo que qualquer ser humano tem por outro ser humano"
Fantásticamente verdadeiro... MAS...não concordo com o final:
"O desprezado é mais do que um fantasma. Não é que morreu, sequer nasceu; seu nascimento foi anulado, ele deixa de existir".
Se a mulher amou "demais", ela pode até desprezar esse homem... E desprezar-se a si mesma por haver amado um ser desprezível. Mas ele estará pra sempre vivo nela.
Maravilhosa crônica, MESTRE!
certeiro.
Parabéns pela crônica. Assim como algumas de suas palavras no Twitter, retrata algum momento que já vivi ou que estou vivendo.
"O desprezo é um amor além do amor, muito além do amor. Não há como voltar dele."
Não há como voltar dele.
Não há como voltar dele.
Não há como voltar dele.
NA MOSCA.
Maravilhoso.
Para mim, os grandes escritores medem-se pela capacidade demonstrada em exprimir por palavras aquilo que todos já sentimos mas fomos incapazes de verbalizar, por qualquer circunstância. Até hoje, só encontrei dois autores com esse dom : Fernando Pessoa e José Saramago. Creio que o senhor, com as suas crónicas, está em vias de se tornar o terceiro.
Obrigada pelas suas palavras e por compartilhar a sua arte. Ler os seus textos é a minha nova terapia emocional.
PS - Adorava saber se algum dos seus livros está publicado em Portugal.
Definidor, de novo.
Desprezo, afinal, é pior que a indiferença.
É bom que ele não ocorra (o desprezo), pois como vc disse, não dá pra voltar atrás.
Fica a sensação de que se luta para não desprezar e apagar da memória um pouco da história de cada um.
Lindo texto!
Não sei se é pior: sofrê-lo ou senti-lo. Estranho sentimento insensível. Insípido, inodoro, incolor, como água não se vive mais sem, por medo da dor que leva em troca. Sede sem fim.
Você escreve o que vem de dentro ou transpira toda essa lucidez?
Fantástico!
Texto fabuloso!
E que mulher/homem, não precisou exorcizar amor para continuar vivendo?
Que doída e tão bem argumentada constatação! Maraviloso!
Sábias palavras. Parabéns.
Amei o texto
e realmente é verdade que nós mulher só desprezamos quem já amamos demais.
Adoro seu blog sempre que posso passa para dar olhadinha.
bjus
Porra, que tratado de psicologia mais poético! Arrepiei.
Simples assim: perfeito!
Achei concretissimo o texto. Quase q palpável. Alguém lá em cima falou de psicologia no texto, literatura é uma imersão em si, no outro, nos outros: combinação perfeita com sentimentos, psicologias e afins.
Que texto BOM!!! uma surpresa bem reveladora (e como nos identificamos com ela) para uma manhã de quarta-feira.
Bjus
Lindo Texto! Escritor Fascinante!
Mais certeiro, impossível!
"Desprezo é uma casa que não será novamente habitada."
Sensacional, Fabro!
Incrível mesmo.. de todos os teus textos q li ( e olhe q não foram poucos!) esse foi um dos que mais mexeu cmgo. Muito bom!
Você tem a manha, Carpinejar! Você é o cara!
CA-RA-LHO!
Muito bom... ;D
Que texto texto sensacional!
Você é o melhor. sua crônicas impressionam. Ler suas crônicas reporta sempre a reflexão do que vivo já vivi.
Nossa!! Fim do início, no meio da estrada...
Nossa!! Excelente vc é demais!! adoro suas crônicas
Me tocou lá no fundinho, adorei!
Simplesmente genial!
Ai meu coraçãozinho! Não se faz uma coisa dessas com uma pessoa com esse meu estado de espírito hoje rs Perfeitas palavras para inexpressar tamanho sentimento. Adorei...chorei por gosto.
Ahhh, meu escritor (poeta) favorito...
"O desprezo é um ódio morto.(...).
Não significa que se aceitou o passado, que se tolera o futuro; é uma desistência. Uma espécie de serenidade da indiferença. Não desencadeia retaliação, não se tem mais vontade de reclamar, não se tem mais gana para ofender. Supera a ideia de fim, é a abolição do início."Carpinejar, não é à toa"... Parabéns.
Nossa!
Nunca li uma definição tão perfeita acerca do desprezo. Esse sentimento que anula uma existência dentro da gente. E você tem toda razão quando diz que: "Desprezo é um ódio morto". É mesmo. E acho que se opõe àquele desejo de vingança imposto pelo sentimento de não-aceitação.Vingança é um desejo incontestável de presença, de não querer se afastar; de ter alguma expectativa, mesmo usando o caminho contrário. Desprezo é o desejo incontestável de ausência. É o lugar onde o sentimento não habita mais. O lugar onde não é possível florescer...
Texto MARAVILHOSO!
Me traduziu....
OMG...
Muito bom isso....adorei.
Eu me vi escrevendo isso.....foi demais.
Bjus
Indescritível...
Fabricio querido, amei o seu texto. Eu vivo a estranha experiencia do desprezo em comum...
Quem eu desprezo me despreza tb.É surreal...
Não sei definir..Vc poderia?
Beijos
Esse analogia foi perfeita, fiquei muito encantada com forma que desenrolou todo o texto e por fim concordo que não é a qualquer um que damos o desprezo.
Um grande abraço!
A indiferença é a maneira mais polida de desprezo (Mário Quintana).
O desprezo causa sofrimentos em ambos:O que despreza e o desprezado,porém,o que despreza está querendo dizer que:olha eu me sinto ¨menos do que você¨ e vou fechar as portas de qualquer diálogo e quebra de silêncio à você.Talvez um dia eu me cure...talvez um dia eu te enxergo merecedor.(nem que seja de binóculos rs).
Pelo amor,falar o que mais.mais. Você só pode estar vivendo isso.
Não pare de escrever, por favor.
Cara,com palavras chulas você é foda.
Já li umas três vezes e é exatamente como me sinto em relação à uma pessoa.Muito bom o texto.
Cara,com palavras chulas você é foda.
Já li umas três vezes e é exatamente como me sinto em relação à uma pessoa.Muito bom o texto.
Cara, vc é demais ! Com certeza vc já viveu isso, pois sabe descrever realmente o q acontece com a nossa alma, com nosso coração. Que já nada mais sente, onde antes houve mto amor, mta paixão, desejo, entrega, sonhos e planos, houve luta de enfrentar à tudo e à tdos por esse amor, paciência, compreensão, até perdoar o imperdoável. E de repente, depois de mto sofrimento : o gêlo, a indiferença e o desprezo, onde não tem mais volta , pra resgatar aquilo q um dia foi um grande amor, não tem mais nada a ver.
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