sexta-feira, 26 de março de 2010

VICENTE E MARIANA



Meus filhos não são impossíveis, eles me tornam possível.

Há segredos de Mariana que Vicente sabe, há segredos do Vicente que Mariana sabe. Não sei de nenhum dos segredos e não sinto falta. Eles se bastam.

Sou pai e meu trabalho é fazer com que eles se defendam de mim, inclusive de minha paixão por eles, que não é pouco.

Mariana tem 16 anos e fica uma criança ao lado do caçula. O caçula tem 8 anos e fica um adolescente ao lado de sua mana. Trocam as fases com facilidade. Eles me enganam com suas frases espirituosas.

A árvore tem frutos para poder voar. Temos idades diferentes para não morrer.

Mariana decidiu pintar o cabelo de vermelho. Vulcânico. Vicente decidiu que seu cabelo irá crescer. Vendaval. Uma atitude é ligada à outra. Complicado definir quem segue o exemplo de quem. Eles dividem um quarto virtual, o blog, radiomilpontozero.blogspot.com, para trocar suas canções prediletas.

Mariana toca violão, Vicente é que dirige seus videoclipes. Quando estão juntos nas férias, atravessam a noite conversando. Eu finjo que estou dormindo. Não vou atrapalhar se não há escola. Estou errado, mas é um erro emocionado.

Vicente me explicou como fazer para interromper a tristeza da Mariana. "Conversa sobre signos com ela, pai". Ele decorou os horóscopos para dar colo às suas dores.

Mariana me explicou como distrair o choro do Vicente. "Fale sobre as raças de cachorros, pai." Mariana estudou a fundo os pedigrees para passear com a angústia do menino.

Ambos me chamam de "Pánceps". Tento fazer barriga para honrar o apelido.

Eles guardam uma mãe em comum, apesar das mães diferentes: a amizade.

Fácil identificar quando os filhos se amam. No momento em que aprontam. A bagunça detém o mistério da cumplicidade.

Não se entregam, nunca se denunciam. Não importa a pressão. São leais no tropeço. Não consigo ficar brabo. Estou errado de novo. Deliciado com o improviso, ouço um completar a história mais maluca do outro.

Num dia de palestra, eles ficaram com a avó. Meia-noite e recebo a ligação materna, incapaz de controlar a felicidade dos dois.

- Eles não me respeitam. O Vicente está com um abajur na cabeça fingindo que teve ideias geniais.
- O que , vó?
- Isso, ele falou que a eternidade não dorme.
- Depois a gente se fala, tá?

Meia-noite e meia e Vicente me liga.

- A gente só estava brincando.
- Precisam respeitar a avô?
- Tá, mas posso te contar....

Meia-noite e quarenta e Mariana me chama.

- Não foi bem assim.
- Mari, não força a barra. Cuida da avó que está velha.
- Tudo bem, mas não é justo. Posso te contar....
- Ok, mas desliga a cabeça do Vicente, por favor!

Repetiram exatamente a mesma versão. Igual até nos engasgos. Não sou bobo, aquilo que é ensaiado é mentira. Mas eles não escondem a verdade, protegem e cuidam da verdade melhor do que eu. Um dia vão me devolver.

Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 119, Número 196
Março de 2010

35 comentários:

  1. [é, caro Fabrício... ofício de pai é igual em todo o lado, em todos os lugares; a diferença talvez resida no facto de andarmos ou não a ler manuais de instruções, para saber como "essa coisa funciona"... e no fundo é só olho aberto, ouvido discreto e coração na mão! O resto... é acréscimo!]

    três imensos abraços, Fabrício
    que os seus filhos não podem ficar de fora

    Leonardo B.

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  2. lindo. lindo. assim mesmo, duplamente.

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  3. As crianças guardam segredos, têm o seu própro mundo, nos enxergam de maneira diferente. Um dia elas nos enxergarão igualmente, mas aí sentiremos saudade dos tempos dos seus segredos mal guardados.

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  4. Passei a apreciar sua forma de escrita. Já estou até vendo que vou absorvê-la um pouco, você permitindo ou não. :)

    Tenho um blog que escrevo também, se quiser dar uma passeada por lá pra conferir se absorvi de verdade :p...

    www.modeloclassico.com.br

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  5. Também quero ter filhos que não se entreguem.

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  6. Adorei o texto. Meus parabéns. Sua sutileza com as palavras e o sentimento transbordando em cada linha é o q torna a leitura emocionante e a vontade de comentar inevitável. Senti mta saudade dos meus irmãos ao ler sobre seus filhos. "A bagunça detém o mistério da cumplicidade" = maravilhosamente verdadeiro.

    Abraços e parabéns pelo blog!

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  7. Linda história e contada deliciosamente!
    Dá saudade das estrepulias de ser criança e suas cumplicidades rss.
    bjs

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  8. Emocionante, Fabro! Delícia ler isso! Abração!

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  9. Se eu comentar muito, se eu elogiar muito, estrago. Então, só posso te agradecer por ter escrito e tornado público. Continue sempre.

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  10. Oi Fabrício!

    Muito lindo, e eu, por ter também 2 filhos, até me emocionei.
    Os meus "meninos", também são super unidos, e o mais velho é praticamente da sua idade: vai fazer 37 em novembro...
    A cumplicidade entre os filhos é tamanha, que a gente às vezes se sente mesmo "meio que" excluido, mas não se importa, pois temos consciência que um dia a gente se vai, e eles que vão ficar por aqui, por mais algum tempo, tem que ter esse elo maravilhoso, para poder se amparar durante a vida... Irmão é para sempre!
    Seus filhos são muito lindos. Parabéns!

    Eu já tenho uma netinha, e o dia que você chegar lá, vai ver que realmente eles veem cobertos de mel e a gente fica COMPLETAMENTE e IRREMEDIAVELMENTE boba e entregue mais uma vez...Rsrsrs

    Um grande abraço, e que Deus conserve toda essa sua inspiração e sensibilidade.

    Cid@

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  11. É, Leonardo disse sobre manual de instruções e eles não vem como.
    Mas no meu ponto de vista, de pai, e de 3 Ynaê com 13, Pietra com 10 e Munir com 7, acredito que esta é a melhor coisa deles: SEM AMNUAL.
    Cada um se mostra como ser único e todos os dias nos dão lições e mais lições, o que mais gostei do seu texto foi saber da cumplicidade dos dois, isso é uma coisa que tento cultivar nos meus, enquanto eles forem cúmplices entre eles...hahahah o resto do MUNDO que se exploda.
    Parabéns Carpinejar, pelas delícias que nos oferece, pela Mariana e Vicente.

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  12. Lindo. Uma cumplicidade desinteressada, como toda cumplicidade deveria ser.
    beijo
    Débora

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  13. Fabro, que lindo.. Já amo teus filhos de longe, pelo coração.
    Agora, e isso não pode faltar, uma crítica. Na declaração para a namorada, você disse:
    "Imaginei que conversaria com uma fã, alguém que gostava do meu estilo, que inflamaria a vaidade".

    E depois:

    "Ela desenhou camisas com minhas crônicas. Um trabalho artesanal para oferecer de presente aos amigos".

    Você encontrou sua maior fã. Porque não confessa, pois fica parecendo que você fez um malabarismo heróico pra chegar até a cyntia. Não lavou a mão dela de loucura, foi criativo, romantico, mas ela que te deu o passe né?

    abs

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  14. Bárbaro, Fabrício!
    Eis a delícia de termos filhos! : )

    Beijo,
    doce de lira

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  15. Carpinejar, que lindo! Ter pequenos (ou grandes) por perto é um enorme privilégio. Eu convivo com dois que, não tendo saído de mim, são os amores da minha vida e me transformam diariamente.
    Parabéns pela amizade que seus filhos guardam.

    Beijos.

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  16. choro, de alegria, de inveja, de saudade de filhos que não tive. E penso... que vontade de ser pai... onde foi que me escondi pra não ter feito obra prima assim?
    parabéns...

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  17. Maravilhoso o escrito! Deixemos nossos filhos um pouco a vontade e com suas verdades.
    Nada tão grave no comportamento deles ou seu que requer preocupação.
    Coisas entre pais e filhos.
    Um beijo,
    Isadora

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  18. (Abro uma cerveja, acendo um cigarro e começo a pensar-sentir entre as espirais azuis...).

    No post anterior, caro Fabro, escreveste que “o enigma é o futuro do mistério”. Pois bem... Em uma primeira aproximação tal aforismo não tem sentido, porque ‘enigma’ e ‘mistério’, em português, são sinônimos; contudo, pela sintaxe, tu sugeres que entre o enigma e o mistério há um processo evolutivo, isto é, por ser futuro, o enigma advém do mistério. Assim entre o enigma e o mistério há, na passagem do espaço-tempo, a construção de uma civilização (ou civilizações). Mas como é possível o existir de tal civilização (ou civilizações)?
    Ora, por meio duma ética (ou éticas), duma moral, ou morais (ou melhor, vários tipos de moral – ah, estas coisas da nossa amada língua!), duma estética (ou estéticas) e duma política (ou políticas) - não necessariamente nesta ordem.
    Desta maneira, o teu aforismo, para mim, caríssimo poeta, está associado à humanidade que ainda não nasceu.
    Somente nos últimos 300 anos, aproximadamente, é que começamos a nos propor e a decifrar alguns dos enigmas de nossos mistérios de 30000 anos!
    Logo, é óbvio que novos enigmas aparecerão em nossas línguas que balbuciam ainda em emoções desarticuladas. Portanto, bem-vindas sejam as futuras e corriqueiras noites estreladas...

    (Abro outra cerveja, acendo outro cigarro e começo a pensar-sentir entre as espirais...).
    Filhos... Filhos... “É melhor não...”. Mas, então, como agradecê-los...?

    METAMORFOSES
    by Ramiro Conceição

    Lambi teus lábios salgados,
    pois cri na criatura além de ti
    que sonhava.

    A paternidade é questão de fé.
    A maternidade, questão de fato.

    Ter um filho é como andar
    à beira do mar (não, comandar
    uma batalha),
    é pressentir perto o Universo.

    Em cada borboleta,
    uma crisálida.
    Em cada crisálida,
    uma lagarta.
    Em cada lagarta:
    borbolertas!

    (Abro outra cerveja, acendo outro cigarro e começo a pensar-sentir...).
    O enigma é o futuro do mistério...

    PROFECIA HUMANA
    by Ramiro Conceição

    Em tempos terríveis,
    quando a herança é o medo,
    é bom acender uma fogueira
    para que todos se aqueçam;
    assim, talvez,
    poucos b êbados alumiem-se
    com palavras de entusiasmo
    e êxtase!

    Porque a Vida
    pr’alguma coisa celestina - se destina.
    Viemos d’estrelas, para lá retornaremos.
    Eis a humana profecia: do pó – à Poesia!

    (Abro outra cerveja, acendo outro cigarro e começo... O enigma é o futuro do mistério...)

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  19. errata:
    onde aparece 'borbolertas',
    é óbvio que é borboletas.

    Grato, Ramiro.

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  20. nossa Fabrício, já amo teus filhos[+1]
    muito lindo o que vc escreveu. *-*

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  21. Não tenho filhos ainda ... Pretendo um dia tê-los ... Um pedaço seu que te surpreende, que mesmo tendo parte de sua codificação genética, não é você. Não é você. Isso cai tão bem aos olhos. Um você que te ama com seus defeitos, o abraço que arrebata por inteiro... É a rara oportunidade que temos de nos encontrar do lado de fora, e ainda assim estar totalmente do lado de dentro.

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  22. Eu aqui, me sentindo as vezes parecida contigo em relaçào a minha Cacau.
    "errado, mas é um erro emocionado."
    abraço

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  23. Essa fidelidade entre irmãos é bonita e necessária. Com ela qualquer mentira, transmuta-se de defeito, em qualidade.

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  24. Muito bonito. Eu sempre achei que a boa maternidade/paternidade são aptidões, dons que só algumas pessoas possuem e só estas possuidoras deste "dom da maternagem" deveriam ser pais. Apenas quem sente que possui este dom deveria ter filhos, os outros deveriam desistir.

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  25. Eu não gosto é do silêncio dos filhos, atormenta. Abraço.

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  26. Cada frase que voce escreve, é delicioso demais de ler!

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  27. "Desliga a cabeça do Vicente..."

    Muitas vezes é preciso desatarraxar suas cabeças p/ deixá-las descansar na mesinha-de-cabeceira; dia seguinte voltam-nos as costas e vão às suas vidas, inocentes, re-in-ci-den-tes, como gatos de armazém.

    Saudações marítmas prá vcs!

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  28. Que coisa mais linda.
    Como você.
    Um beijo, querido!

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  29. Ótimo texto!
    Quando eu crescer, tbm quero ter uma coluna pra mim! (e não é a vertebral..)

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  30. gosto de tudo que escreves - de tudo - porém quando falas dos filhos eu fico encantada - essa paixão mútua é o que me co_move!
    besos

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  31. Lindo, lindo, lindo!!! Dizer mais o que? Adoro sua escrita, de milhões, milhares de sentimentos em tão poucas palavras! Parabens!

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  32. Gente, eu nem sei o que dizer, é tão profundo e verdadeiro, só lembro do meu irmão, como é comigo, e eu mesma, como sou com ele... Mesmo com uma diferença considerável na idade, a vida parece não caminhar...

    Lindo, lindo, lindo...

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  33. Seus filhos têm a cumplicidade da felicidade.

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