quarta-feira, 14 de julho de 2010

FONTANA DI TREVI

Arte de Cínthya Verri


É achar uma fonte e pretendo viciá-la em desejos. Intoxicá-la de promessas. Chantageá-la com meus pedidos absurdos. Eu me transformei num traficante de milagres, num aliciador de degraus e lajes.

Não tenho pudor. Às vezes cometo gafes e despejo a niqueleira em santuários de Nossa Senhora ou em piscinas de plástico. Qualquer água parada é motivo para depositar os centavos. Persigo os tanques como um Aedes aegypti da superstição.

Assim como crianças gostam de lançar farelos de pão aos patos, jogo moedas aos meus sonhos.

Todo lugar é Roma, todo aquário de pedra é Fontana di Trevi.

É uma fixação messiânica. Os guardadores de carro que me perdoem, mas não nutro simpatia pela superfície, deixo as economias para as profundezas e os ralos; os santos têm que mergulhar, abrir os mariscos de metais, lustrar efígies.

Minhas orações pedem hidromassagem. Não me atraem velas e candelabros, cera e fumaça, mas espuma, cheiro de cloro, limo.

Não controlo a compulsão. É meu bingo aquático. Meu porquinho flutuante.

Não sou nem um pouco exigente. Já ataquei fontes de hotel, de praça pública, de loja de móveis, cascatas de motel. Pode ser um poço artesiano, não faço cerimônia para rezar.

A água é o único mendigo em que confio. Não penso muito. Não reparo se é uma escultura de artista reconhecido ou se é um dormitório de tartarugas quase extintas, escolho a maior moeda, viro, fecho os olhos e arremesso. Ao escutar um baque seco, percebo que errei a pontaria. Não recolho a mesma moeda, o pedido sairá ao contrário, azar na certa, preciso usar outra e outra até acertar o alvo. E me acalmo com o splash na espuma. Dou três meses para a realização da prece, costuma ser mais rápido que o Procon.

Decidi partilhar o segredo com a minha namorada. Jurei que Cínthya ficaria sensibilizada. Estávamos numa pousada em Gramado, era domingo, friozinho, a luz com a boina da neblina, uma atmosfera absolutamente romântica; enxerguei uma fonte entre as pedras, ri daquele anjo condenado a uma eterna cusparada, mas me concentrei na confissão.

Aproximei-me de seus ouvidos:

— Vamos jogar uma moeda na fonte.
— O quê?
— Fazer um pedido de amor?
— Isso não é uma fonte de desejos.
— É que ninguém ainda descobriu o poder religioso desse ponto.
— Para de fiasco.
— Quando a gente iniciar a prática, outros verão a moeda no fundo e seguirão jogando, e logo teremos uma romaria de fiéis. O destino da fé é virar ponto turístico.
— Mas há peixes ali?
— Não vamos machucar, eles fogem dos objetos, são espertos.
— Não, não é justo.
— Tenta, por favor, por mim…

Diante da implicância, Cínthya se posiciona e joga de costas uma moeda de R$ 1. Apostou bem alto em nossa longevidade amorosa. Numa casa espaçosa, com quintal e varandas. Numa lua-de-mel nas Ilhas Gregas.

Corro para ver onde caiu. Não digo para ela. Um peixinho dourado engoliu o nosso casamento.



Crônica publicada no site Vida Breve

25 comentários:

  1. Ai que lindo! Poesia, beleza .. Adorei!

    ResponderExcluir
  2. Um brinde, com água Perrier,à sorte, para que nos sorria com mais requinte.

    ResponderExcluir
  3. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  4. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  5. Hahahaha...muito boa!! Você é simplesmente maravilhoso!! Leitura que dá prazer do início ao fim. Adorei seus posts no blog, suas frases no Twitter, seus livros, sua entrevista no Jô... parabéns pelo grande talento!! Continuarei aqui e onde vc estiver!!!
    Um grande abraço!!!

    ResponderExcluir
  6. Todos os peixes dourados são assim. Vão engolindo tudo o que veem pela frente. A indigestão dá promessa. A promessa dá indigestão.

    Só sei que casei com seu texto.
    Se quiser visitar alguns meus rafaellarimoli.blogspot.com

    Beijos.
    Rafa.

    ResponderExcluir
  7. O texto fechado com chave de ouro... Você realmente é o cara. Tô louco pra começar a ler os teus livros.
    Abraço

    Parabéns!!

    ResponderExcluir
  8. Amei, meu querido.. lindo poetico divertido o texto, como sempre!
    Janjan

    ResponderExcluir
  9. Parabens, tua leitura é muito prazerosa e simples. Te sigo!
    Abraço Ema Machado

    ResponderExcluir
  10. O peixinho deve estar constipado, coitado.

    Não obra desde então.

    Redondo duplamente: pela moeda e pelo cocozinho entalado!

    Se for daqueles meio transparentes, induzirá pessoas a pensar "como é valoroso esse peixe!".

    Gostei demais do texto.

    ResponderExcluir
  11. Mas isso é mais do que um sinal de sorte... :)

    ResponderExcluir
  12. TEMPO DOS SERES


    Além das flores, quem és?
    - Sou as cores.

    Além das cores, quem foste?
    - Fui amores.

    Além de amores, quem serás?
    - Serei o que deste e dás.

    Além das flores, quem eras?
    - Era as cores.

    Além das cores, quem foras?
    - Fora amores.

    Além de amores, quem serias?
    - Seria o que deras e davas.

    Além das flores, quem sejas?
    - Seja as cores.

    Além das cores, quem fosses?
    - Fosse amores.

    Além de amores, quem fores?
    - For aquilo que desses e dês.

    Além das flores sê
    os seres sendo, sido.

    Além dos pecados… idos!

    ResponderExcluir
  13. Lindo texto e terrível texto. As promessas e os pedidos de amor, amores possíveis e impossíveis. Terno e durador, breve e algoz, cortante. O amor é sempre algo de se jogar, como uma moeda numa fontana qualquer. Sem saber se nesse lançar-se será o início do fim, ou o início do infinito. Só saberá quem o fizer, sem medo de depositar suas esperanças no fundo de uma fonte qualquer.
    Abraços de Anselmo A. Souza.

    ResponderExcluir
  14. Carpinejar, você é um poeta e tanto. Pulsa a cada palavra, faz o leitor pulsar também. Mas por favor não precisa se expor tanto em programa de auditório, com gente que respeita a conveniência, e não os outros. beijos e abraços. anselmo a. souza

    ResponderExcluir
  15. ai fontana quase me esqueci ainda bem que o google me jogou aqui hoje, acho que ele está ficando meio sentimental e otimista.

    ResponderExcluir
  16. O peixinho fez o pé de meia dele e, pudesse sair desta fonte, iria ganhar a promessa do mar. Acho que vc e Cínthya seriam convidado para padrinhos!

    Brincadeiras a parte, estou gostando muito do seu texto. Vou voltando. Ficaria honrada com uma visita no meu cantinho.

    ResponderExcluir
  17. Lindo e divertido!
    Na mesma proporção...

    ResponderExcluir
  18. maccanto@brturbo.com.br15 de julho de 2010 às 14:03

    Crônica é isso!
    Gostei do diálogo...

    ResponderExcluir
  19. Se o peixe comeu é necessário pedir de novo? E assim o vício segue...

    ResponderExcluir
  20. Lindo!!!Estou adorando acompanhar o seu blog...bjs

    ResponderExcluir
  21. Fabrício!
    Vi-o a primeira vez no programa Sem Censura, a pouco tempo. Depois acessei um blog onde o autor falava sobre você. Decidi então procurar seus textos. Achei o seu blog! Estou simplesmente amando, especialmente esse texto, que achei muito divertido! Parabéns pelo seu trabalho! Continuarei a acompanhá-lo. =)

    ResponderExcluir