segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O PEQUENO GOLEIRO

Arte de Yves Tanguy

Eu prometi para o filho levar os colegas do futebol ao cinema. Disse por dizer, mais educação do que esperança. Qual a minha surpresa quando Vicente tocou em meus ombros na semana seguinte:

– Amanhã é o filme!

Tudo bem; coloquei o cocar da indiada. Pensei que seria um colega, foram cinco, que estavam à espera após o jogo no ginásio. Suados, felizes, gritalhões. Logo olhei a carteira para conferir se tinha dinheiro suficiente – o pacote agora incluía pipoca, refrigerante e ingressos quintuplicados.

Atravessar a rua com a turma representou tremor de ponte pênsil, sempre havia alguém distraído da faixa de segurança, flertando com o perigo. Andava aos trancos de polvo, com os braços levantados, não entendia como os avós vigiavam, ao mesmo tempo, 10 filhos. Naquela época, sair de casa correspondia a montar um comício.

Quando entrei no shopping, suspirei, fiz a contagem mental do time e segui adiante. Rezava para terminar a tarefa, tirar os sapatos e segurar o controle remoto em paz. Mas André, ruivo e sardento, no alto de seus 11 anos, travou no início da escada rolante. Enguiçou de verdade, mergulhou num transe de pavor. Busquei segurar sua mão e ele ganhou de imediato o peso de um Rei Momo. Não se mexia, seus dedos estavam gelados, escorregadios. Formava-se uma fila ansiosa atrás da gente e o guri vidrado no corrimão de borracha, nos degraus se abrindo e fechando. Será que ele tomava remédio? Enfrentava crise séria na família? Possuía uma fobia de lojas? Não conhecia bulhufas do temperamento, só que jogava no gol. Quem é goleiro deve ter algum problema, não é muito certo servir voluntariamente de saco de pancadas.

– O que foi?

– O que é isso aqui?

Raciocinei que perdeu a memória, ainda precisava fiscalizar os outros angustiados com o nosso atraso.

– O quê? É uma escada rolante. Não vê?

– Eu nunca vi.

– Quê?

– Nunca visitou um shopping?

– Não. Ela se mexe, como posso colocar o pé?

Aquilo me pegou de jeito. Achava um absurdo um menino de cidade grande não conhecer uma escada rolante. Mudei o comportamento e o analisava com avidez de colecionador, uma espécie rara, rural. Um bicho estranho e assustado, com cinco olhos, três orelhas, duas bocas.

A turma começou a rir de sua inexperiência de vida, não consegui defendê-lo, imerso em igual pasmo. Depois veio uma compaixão pelos pais desnaturados, que o deixavam à margem do mundo. Tomei o pequeno no colo e o carreguei para cima.

Era tarde para interromper a gozação, alvo de dedos apontados, gargalhadas e apelidos. Foi quando André confessou:

– Eu já beijei uma menina na boca.

E todos esqueceram a escada rolante para descobrir mais detalhes.




Publicado no jornal Zero Hora
Interino de Luis Fernando Verissimo, p. 2, 27/09/2010
Porto Alegre (RS), Edição N.º 16471

25 comentários:

  1. Há muitos "bichos" na cidade grande,
    escada rolante talvez seja o menor deles.
    Parar no sinal, ônibus lotado, trânsito, insegurança...

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  2. Poxa carpi, demais essa crônica. Adorei os detalhes que descreveu. Eu beijei uma menina quando tinha 13. Foi difícil, a maior vergonha do mundo. Não foi por menos que os garotos esqueceram a escada rolante rsrsrs!!! Poxa carpi, bem que vc poderia postar uma crônica todo dia né? Fico numa agonia de esperar a cada 2 dias, às vezes 3. Mais atenção com seus 3 mil fãs tá?rsr

    Abraço

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  3. É ridículo de mais dizer que sou sua fã?
    Foda-se.
    Eu sou sua fã.

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  4. Que delícia de vida, hein! rs.
    Vivenciei uma dessas esses dias. Uma amiga de 22 anos nunca tinha visto uma escada rolante. Subiu e desceu parecendo uma daquelas crianças incontroláveis que correm por shoppings.

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  5. Adoro a forma com que utiliza as palavras. Faz de um tema simples, genial!

    E não posso deixar de falar: SOU TUA FÃ!!

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  6. "Ela se mexe, como posso colocar o pé?"
    Tá aí uma das coisas que se aprende apenas fazendo.

    Abraço!

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. As melhores histórias que contamos são sempre as que são estreladas por nossos filhos. Que delícia!
    E a gente ainda se ilude, achando que tem mais a ensinar do que a aprender com eles...

    http://omundoparachamardemeu.blogspot.com/

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  9. Ora, isso é infame.
    Nós goleiros não temos medo de escadas rolantes. Elevadores, talvez, mas escadas rolantes, NUNCA!

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  10. Adorei,
    É de uma verdade singela com palavras mágicas que descrevem filhos, obrigações e surpresas cotidianas.
    Excelente.

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  11. Viver é ainda surpreendente. Quando vi o mar, pela primeira vez, aos 21 anos!, abriu-se um cataclismo dentro de mim. Se eu pudesse beber aquele mar todinho...

    Abraços!

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  12. Parabéns, um belo relato do cotidiano. Texto típico dos grandes cronistas. E essas coisas parece só acontecer com você, não é Fabrício?

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  13. Não precisei ler mais do que um texto Seu,para me transformar em admiradora!Esse,como tds....é de Gênio!!!! Adorei...

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  14. Dei um espasmo de riso ao final. Que bacana, cara... Muito bacana mesmo.

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  15. Adorei! Acho que é a primeira vez que comento um texto seu, apesar de ter lido muitos outros.
    Mas esse em especial me chamou atenção. Minha cidadezinha tem um shopping minusculo faz muitos anos, mas aqui essa história não pegou, mesmo que quando inaugurado iriamos passear lá, sem um tostão furado no bolso, apenas para subir na escada rolante (que aliás hoje encontra-se desligada, não rola mais), era como um parque de diversões, assim como o garotinho eu acho que fiquei estática diante daquilo que pra mim era como uma aberração. Foi assim, certamente continuará sendo, loucura de cidades grandes, não chego muito perto de uma dessas faz tempo e acho que quando ver uma dessas novamente vou querer brincar novamente!

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  16. É como gozar do menino estudioso e esquisito, certo que um dia você irá trabalhar para ele.

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  17. será q ele beijou mesmo a garota, ou foi esperto, pra pararem com gozação?

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  18. Bah, Fabro. Final impecável! tipo: toooooooma! hahaha abs!

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  19. ser foda é uma coisa,
    ser phoda é bem outra!

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