sábado, 22 de janeiro de 2011

COMO SER FELIZ NA CIDADE DE FELIZ

Fotos de Ricardo Duarte


Em Feliz, terra de 11 mil habitantes encravada no Vale do Caí, os motoristas ainda ensaboam seus carros, as crianças ainda lavam seus cachorros, os estudantes ainda esperam o feijão brotar no algodão na escola, as faxineiras ainda passam óleo de peroba nos móveis, os pais ainda emolduram fotos da primeira comunhão, os relógios ainda são regulados pelas badaladas da igreja, os homens ainda discutem se Deus existe bebendo cerveja.

Ainda são feitos trotes, ainda se borda, ainda se forra gavetas com papel-presente, ainda se recebe visitas na sala de estar, ainda se descasca laranjas, ainda são feitas contas no papel, ainda há tempo para o leite ferver e o bolo descansar, ainda se deixa a porta aberta e as roupas no varal. Não duvido que a lata de azeite ainda seja furada com preguinho.

É mais simples ser feliz na cidade de Feliz e nem estou falando do alto índice de alfabetização, acima de 98%.

São as delícias das coisas singelas. Colher morangos, por exemplo.

– Em maio, pelos cachinhos, sei que teremos uma grande safra e que não passaremos sufoco. É a minha maior felicidade, eu me sinto uma noiva – conta a agricultora Cátia Martins, 32 anos.

Ela veio de Santa Rosa com o marido, Admir, pela tranquilidade. Não se arrepende. Pôde realizar o sonho de quatro filhos em escadinha, como nas antigas famílias: Felipe (13), Pablo (9), Vinicius (6) e Júnior (4).

Uma das paixões felizenses é andar a pé, passar pela Ponte de Ferro (trazida da Bélgica e instalada em 1900) e espiar como está o humor do Rio Caí. E também aprender um segundo idioma em casa. A dúvida é se a primeira língua é a portuguesa ou a alemã. Para não sofrer com o dilema, fala-se o dialeto Hunsrückisch, originado na região de Hunsrück, no sudoeste da Alemanha, e abrasileirado no sul do país.



A fala é rápida, a ponto de não se perceber diferença entre o nome e o sobrenome.

– Como se chama?

– Talcilolorscheiter

– IlsunStumm

– IraciStumm

– Nossa alegria é trabalhar demais para fazer bastante festa, ter uma hortinha para passar o tempo e um ser vizinho do outro. Aqui não falamos mal das pessoas, falamos a verdade – ri Talcilo, 49 anos, que costuma frequentar a residência do casal amigo Ilsun e Iraci.

Para Clarissa Herter, 17 anos, alegria é comemorar com um folhado de salamito.

– É meu luxo – confessa com o salgado recém embrulhado da Panificadora KS.

Ela acabou de ser contratada para seu primeiro emprego na Hidrojet, como analista, selecionada após um ano de curso.

– Agora falta o primeiro namorado – completa.

Ela se encabula para contar onde mora com a mãe, Marlise. Diz, baixinho:

– Bananal.

Ficar envergonhada é também um contentamento.

Em Feliz, ainda é possível descobrir as espécies dos pássaros pelo canto.

– Tesourinha? Siriri? João-de-barro?

O músico Jair da Silva, 41 anos, o Jabá, vai antecipando os sons do alto das árvores para Andrea Barbosa, 27 anos.

– Assim que ele me canta – ela brinca.

O casal namora toda manhã no Parque Municipal. São 25 hectares de sossego, chimarrão e concerto gratuito de aves.

– Não existe como ser feliz sem o parque – afirma Jair, lembrando que é o local das duas principais festas do município (Festa da Amora, Morango e Chantilly e Festival Nacional do Chope).

– Não existe como ser feliz sem Jair – aproveita Andrea.

Os dois se beijam longamente. Com aquela mansidão boa de banco de praça, de ruas vazias, de amor público.

Perder tempo parece que é ganhar felicidade.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 33, 22/01/2011
Porto Alegre, Edição N° 16588
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25 comentários:

  1. Muito bom!

    P.S.: Agora sabemos quem amassou as flores do parque.

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  2. É exatamente isso que vejo quando vou para o interior. Talvez seja por isso que eu ame me perder nestas cidades nas férias... acho que tu esqueceu de dizer que as pessoas te cumprimentam quando tu passa sem ao menos te conhecer ;)

    Adorei.

    p.s. bom saber que a safra de morangos vai ser boa - a festa vai bombar! :)

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  3. Como eu ainda queria poder ter essa "inocência" em Feliz. Mas a vida não quis, me tirou de Santa Rosa e hoje estou na Amazônia, mto infeliz...

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  4. sinistro. vc capta as pequenas nuances da vida com maestria admirável.

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  5. Comi o texto enquanto li a chuva. Obrigada!

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  6. Incrivel...
    Esses também são, leia quando tiver um tempo:www.expressaonoturna.blogspot.com
    www.estoriasdeaprendiz.blogspot.com
    Beijos!

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  7. OLÁ FABRÍCIO CARPINEJAR

    NADA A COMENTAR:

    CERTOS TEXTOS QUALQUER COEMNTÁRIO ESTRAGA O CONJUNTO DA OBRA.

    EU O CASO.

    SÓ QUERIA CONVIDÁ-LO PARA CONHECER MEU BLOG:

    "HUMOR, EM TEXTO".

    A CRôNICA DESTA SEMANA É:

    "MOMENTOS DE UMA VIDA A DOIS.

    FICARIA HONRADO.

    UM ABRAÇÃO CARIOCA.

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  8. Lindíssimo!

    Ah, eu tb quero viver duzentos anos como eles, sim porque com toda essa qualidade de vida não duvido que em FELIZ existam moradores beirando os duzentos anos...hehehe

    Abç

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  9. quanta poesia há na felicidade! Senti o quanto perdemos tempo aqui...

    Parabéns

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  10. Adorei *---* simplesmente lindo.

    estou seguindo o blog, claro.

    beijos

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  11. Adorei! Amo o interior com todos os seus encantos e diversidades. Principalmente, pela pura simplicidade. Parabéns pelo texto. Vou deixar o endereço do meu blog. Se tiveres um tempinho de uma passada por lá. Sou graduada em Letras pela Unisinos, mas infelizmente não tive o privilégio de ser sua aluna.
    Então, sou sua seguidora. Segue meu blog: Olá!
    Estou divulgano o meu blog. Escrevo sobre literatura e arte de um modo geral. Entrem, comentem, critiquem, mas não deixem de acessar. Segue o endereço:
    http://linguagenseliteratura.blogspot.com/
    Abraço,
    Ana

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  12. Boas coisas simples como lamber o pote com resto de massa de bolo da avó...

    Larguei Sampa a pouco tempo. Ninguém lá quer perder tempo. O paradoxal da história é que eles só trabalham. Isso é ganhar tempo?!

    Já dizia Russell que deveríamos ser educados para o tempo livre, ou mais longe, Epicuro já o dizia também.

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  13. Interior é sempre interior, não, Carpinejar? Não que interior seja bucólico, calmo, aquelas coisas... mas nunca esconde o quê de interior (e a graça é essa)

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  14. eu vivo numa cidade bem assim.

    pensa que coisa bem boa.
    adorei o texto!

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  15. Adorei o texto e conheço a cidade! Joias!
    Tente conhecer também a cidade de Nova Petrópolis. Gostaria de senti-la conforme seus relatos floreados, mais que a praça, mais que o parque.
    Lançado o desafio.

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  16. Fabricio! Quero te parabenizar pelo belo texto que vc fez sobre a minha cidade! Fiquei muito feliz quando vi a matéria e lendo o texto pude identicar cada situação descrita como se estivesse lá. Realmente a cidade é muito linda e ótima para se viver. As pessoas são simples e tem o coração cheio de amor e esperança.
    Tu conseguiu expressar em palavras os sentimentos de nós felizenses. Parece que a nostalgia bateu a minha porta! Mas mesmo aqui em POA desde 2006, Feliz sempre vai ter um lugar especial no meu coração e com certeza muitas lembranças de lá eu levo comigo!
    Bjs, Suelen

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  17. Caro Fabrício! Sou Felizense de coração! Tudo na crônica é real. Parabéns

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  18. Que porcaria!

    Texto pífio para aplausos dos imbecis. Vergonhoso seu Carpinejar(tu se parece mais com uma lombriga, e bem menos com um filho do grande poeta Carlos Nejar)?

    Esta gente hipócrita e falsamente boazinha, não sei grupo qual seria mais deplorável, os habitantes
    da pasmaceira "Feliz" ou as amebas que aportam em seu blog.

    Vocês estão completamente despreparados para as tempestades vindouras, sem contar as grandes estiagens.

    A natureza, implacavelmente cruel, vai expulsar o homo-imbecilis deste planetinha. A classe mérdia vai sofrer...

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  19. A felicidade é um tempo no tempo onde é dado há esse tempo um tempo para ser feliz, Aproveitando e compartilhando os bons momentos do seu viver. A felicidade é consumida nos simples detalhes exposto pelo tempo. É ter e dar tempo. Desde um simples vapor com cheirinho de café coado no pano (meu adorado tempo de felicidade que não abro mão, até porque adoro café) até amar e ser amado. Assim como: Aprender e ensinar a amar tudo e a todos. Olhar a tristeza do outro antes das lágrimas escorrerem. Estar pronto para acudir todas as fraquezas. Sorrir e dar motivo para gargalhar. Compartilhar um lindo amanhecer assim como o preguiçoso entardecer. Escutar o som da chuva, olhar do primeiro ao último pingo. Tomar banho com a chuva dando tempo para os pingos escolher e conhecer outros caminhos, como os das mãos, dos olhos, da boca, dos pés que os seguram por pouco tempo antes de seguirem seus rumos. Plantar uma roseira regá-la aos olhares todos os dias até o seu desabrochar, recolher a beleza desabrochada e escolher a pessoa certa para entregar como um troféu do amor. Ser espetado pelos espinhos sem reclamar, Merda furei meu dedo. E sim procurar sentir a pequena dor da beleza oferecida pela terra que sustenta e dar sustento. Aproveitar o momento para experimentar a vida na cor vermelha em plena boca, deixando que a saliva se responsabilize pelo estancamento e alivio da dor. O tempo da felicidade dispensa motor, por medo de ser encorajado a correr rumo à linha do futuro duvidoso e desejado, com sua maquinas e inúmeros botões acomodando ainda mais a praticidade da humanidade. É Fabrício tantas coisas que proporcionam o tempo de felicidade que não da pra enumerar, o que sei é que nessa cidade Feliz e em todas as outras só precisa seguir e andar junto com o tempo extraindo prazer e satisfação, viver o momento sem pressa e sem medo de ser feliz, fechar os olhos para o passado, abrir para o presente e piscar para o futuro. Enquanto a felicidade ocupar o seu tempo, aproveite os bons momentos do seu viver para ser feliz.
    Margareth.

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  20. nilvia terezinha hanauer5 de junho de 2011 às 16:55

    Parabéns.Texto de retrato fiel da pequena/grande cidade de Feliz.Ao lermos o texto é bem fácil entender que a cidade faz jus ao nome que tem.Tenho muito orgunlho desta minha terra natal,cuja beleza e encanto me acompanha por onde ando e para onde pretendo retornar.
    Nilvia

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  21. Lindo o texto... sou felizense e o texto relata em todos os detalhes como é viver nesta cidade e nos enche de orgulho!

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  22. Que texto lindo!!! Aperta meu coração de saudade de um lugar que nem conheço!

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  23. Adorei a escrita, muito bem elaborada e cheia de verdades. Todos estes singelos detalhes do povo de Feliz são reais, é uma cidade que ainda preserva seus costumes e vive na simplicidade do dia-a-dia. Por aqui costumamos referenciá-la como "cidade modelo do RS", devido à qualidade de vida e às altas taxas de alfabetização. O povo Felizense só precisa se precaver com os imigrantes menos favorecidos, para que eles não encham a cidade de favelas como ocorre nas cidades do Taquari!

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