quarta-feira, 18 de maio de 2011

O SOLUÇO

Arte de Cínthya Verri


A paixão é descoberta, tudo no outro é novo e nos agrada. Vive-se uma tolerância exacerbada, perguntamos mais vezes, aceitamos o que é estranho, mergulhamos numa fase didática do corpo e da personalidade.

Não existe nenhuma solenidade para explicar, não nos enervamos, toda questão é pertinente, atravessamos madrugadas repetindo recordações.

O que odiamos não é tão grave assim para ser defendido. O que adoramos não é tão imutável assim para não ser contrariado. Atrasos são creditados ao engarrafamento. Ofensas são perdoadas com afagos no rosto. A separação é impossível, acreditamos até depois que se provou o contrário.

Quando conheci Cínthya, no segundo dia juntos, ela soluçou. Aquilo foi inacreditável. Parei em sua frente, incapaz de buscar um copo d’água. Vidrado em seu soluço, admirado, embasbacado. O soluço era a gargalhada do medo, não podia permiti-lo escapar. Esperava um por um dos saltos de sua voz. Vontade de apanhar os sons pela casa como bolhas de sabão.

Seu soluço brilhava para mim. Já cronometrava o intervalo das ocorrências. Agia como um cientista, um sábio de soluços, sua boca caminhava sobrenatural pelos meus olhos, anotava as constelações dos traços e as estrelas das pintas, procurava a mínima casualidade para fundamentar a predestinação do nosso encontro, e confirmar a suspeita de que éramos para a vida inteira.

Naquela época, multiplicávamos os milagres. Não tinha somente confiança nela, tinha fé.

Depois, quando veio o amor, parece que a relação extraviou o encanto. Tudo é conhecido e nos irrita. Surgem reclamações, a pressa, os incômodos dos hábitos em comum. Pertencemos a uma legião inumerável dentro do casamento dos saudosos da paixão, que não entendem o que aconteceu de errado.

Eu digo que não houve nada de errado. Não há nada de errado.

Não é que o outro deixou de dar, é que amamos mais. Não é que o outro está ausente e acomodado, é que exigimos mais. Ficamos insaciáveis, pois recebemos ternura de alguém como nunca antes.

O que indica desamor é nosso desejo infinito de completude.

As reivindicações aumentaram com a intimidade. O que antes era atenção hoje é rotina. Aguarda-se que o par conserve nossas características, necessidades e aspirações, que não se desligue um minuto, que não renuncie a gentileza sequer para ir ao banheiro.

Somos mais suscetíveis, frágeis. Temos mais a perder. Choramos com a mínima elevação do timbre numa conversa.

As expectativas estão dobradas, a carência triplicou, não admitimos qualquer coisa, queremos que nossa companhia contextualize a raiva, suporte o azedume, ajude no excesso de trabalho, ampare a educação dos filhos. Despejamos, numa única pessoa, a nossa raiva, a nossa esperança, a nossa ansiedade. Por enxergá-la sempre, é com ela que brigamos — não temos ninguém mais a recorrer.

Se a paixão é descoberta, o amor é invenção. Não abandone o futuro porque ele já é menor do que o passado.



Crônica publicada no site Vida Breve

12 comentários:

  1. Muitas vezes é um erro
    inevitável colocar no outro
    todas as nossas expectativas.

    Descobrir o amor e
    reinventar a paixão
    talvez sejam os melhores caminhos.

    ResponderExcluir
  2. Belo texto, amar e receber geralmente são grandezas inversamente proporcionais...

    ResponderExcluir
  3. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  4. Há tempo leio teus textos mas nunca encontrei palavras para um comentário a altura. Me admiro com as coincidências que encontro. Hoje preciso dizer que o teu dom é encontrar o amor na vida das pessoas que já não se apaixonam mais (ou temem a paixão).

    ResponderExcluir
  5. Texto sensível e honesto, como sempre. O excesso de expectativa que depositamos no outro, sempre gera frustração e, via de regra, culpamos o outro. Auto-crítica é bom e demonstra maturidade.

    ResponderExcluir
  6. É muito ruim amar mais que o outro, queria que fosse diferente, que eu pudesse me concentrar nas coisas que faço. É impossível. Não posso, não quero mais nada fazer. Já não posso mais parar de pensar nesta tal indiferença que eu recebo do meu amor. Eu não deveria estar recebendo a mesma soma de amor que entrego a ele? "Esta indiferença esteve sempre aí, você não viu porque estava apaixonada" disse o meu diário. Pra que terapia se você escreve um diário? Texto maravilho, precisava de um tapinha hoje...rsrsrsrs

    ResponderExcluir
  7. Se o futuro já é menor que o passado... Pra que seguir em frente? Ás vezes é mais fácil buscar sempre a paixão mesmos que em outras pessoas... NÃO?! Complicado.

    ResponderExcluir
  8. Fabrício, em três anos de namoro, esta é a primeira vez que eu estava pensando em escrever ao Consultório Poético. Mas não foi preciso, você me deu todas as respostas com este texto. Parece até que conhecia o momento pelo qual estou passando e escreveu para mim. Obrigada por conseguir nos tocar tanto com suas palavras.

    ResponderExcluir
  9. Amado Fabro,
    eis meu soluço...


    DESFRUTA
    by Ramiro Conceição

    É, eu tive sorte…
    Por não perder o norte
    mesmo sem embarcação.
    Sim, eu tive sorte…
    Por inventar jogos, artifícios,
    ofícios - ao pó sedimentado
    no corredor, entre a sala-de-estar
    e o quarto dum insone sonhador.
    É, eu tive sorte…,
    pois, a tempo, aprendi
    que a vida é uma fruta
    que a morte… desfruta.

    ResponderExcluir