terça-feira, 20 de setembro de 2011

A UM FILHO QUE SE FOI

Arte de Edgar Degas

Minha amiga Dora perdeu seu filho.

Ela disse que o momento mais difícil do luto foi quando ela riu de uma piada durante jantar entre amigas. Já havia completado dois anos do acidente e um ano que limpara o quarto do adolescente e oferecera suas roupas e pertences para campanha do agasalho.

Não conteve o riso, ele veio, cristalino, por uma história boba. Ela se penalizou pela alegria, acreditou que traía seu filho com a gargalhada, que não poderia mais ser feliz depois da tragédia familiar, que deveria seguir com a feição contraída e casmurra para homenagear a tristeza e avisar aos outros da longevidade e importância de sua ferida.

A lealdade tinha que ser séria, ornada de renúncias. Para indicar que a viuvez de ventre é definitiva, com o berço dos olhos petrificado em jazigo.

Ela se sentiu culpada por rir, envergonhada perante os céus, pediu desculpa ao filho, prometeu que estaria mais concentrada dali por diante e que o descontrole não se repetiria.

Mas ela quebrou a palavra, e riu novamente, como é próprio da vida superar o pesar de repente. Seu rosto agora participava da conversa com todas as rugas e covas. Bateu vontade de cobrir os lábios de batom para brilhar inteira.

Dora me segredou uma frase pura, que guardei na caixinha de sapatos de minha infância:

– Foi uma injustiça meu filho morrer, mas não poderia deixar a morte de meu filho me matar.

Doralice sempre me surpreendeu pela sua lucidez. Foi minha professora de matemática na Escola Estadual Imperatriz Leopoldina. Na última semana, passei pela frente de sua casa no bairro Petrópolis e arrisquei apertar sua campainha. Ela me recebeu com um longo abraço e me convidou a entrar. Reparei que pintava na varanda.

– Começou a pintar, Dora?
– Eu? Não...
– O que é essa tela? (eu me aproximei da moldura que reproduzia uma praia no inverno)
– Ah, é minha dor que estava pintando, coloquei minha dor a se mexer, a aprender algo de útil, e parar de me incomodar.

E concordei com seu raciocínio. Quantas vezes abandonamos nossa dor no sofá, vadia, assistindo TV? Quantas vezes permitimos que ela fique o dia inteiro dormindo, lembrando bobagens? Nossa dor sozinha, sem emprego, sem fazer nada, desejando morrer no escuro. Nossa dor comendo às nossas custas, terminando com os nervos, o casamento, as amizades.

Dor é feita para trabalhar, senão adoecemos no lugar dela.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 20/09/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16831

25 comentários:

  1. Perder um filho deve ser a pior dor para uma mãe ou pai, mas concordo contigo e com a Profª Dora, a dor não pode ficar ociosa ao nosso lado, dentro de nós, "ela é feita para trabalhar",
    Excelente artigo, bjsss
    @LilianPool
    http//lilianney.blogspot.com

    ResponderExcluir
  2. Gostei muito do texto. Usar a dor para produzirmos é uma boa saída.

    Abraço!

    ResponderExcluir
  3. Quanto mais tenho a oportunidade de conhecer o seu trabalho, mais me sinto encantada e aconselhada por belas e profundas palavras! Parabéns!! Sem exceção, todos os seus textos que já li, são excelentes!
    @NicolyKuster

    ResponderExcluir
  4. Coloco minha dor pra trabalhar exaustivamente há 1 ano, desde que me despedi para sempre de uma irmã. Fiquei órfã, pois tínhamos relação de mãe e filha, mas ainda não posso deixar meu filho órfão. Portanto, ao trabalho dona Dor!

    ResponderExcluir
  5. Este texto é de uma lucidez! Também penso que a dor deve ter um propósito na sua existência, que doer só por doer não tem lógica. A dor da perda de um filho deve ser algo muito violento, eu que sou mãe, sofro só de imaginar tal coisa, por isso mesmo que essa dor deve ser canalizada, ensinada a trabalhar, a ser útil. Lindo texto.
    Abraços

    ResponderExcluir
  6. Simples e muito maravilhoso. De uma humanidade aguda. Parabéns.

    ResponderExcluir
  7. Dar um sentido e um ofício para a dor desempenhar e tentar extrair dela seu lado bom, que é a experiência de a ter tido.
    Um grande bj querido amigo

    ResponderExcluir
  8. A incrível a capacidade que você tem de fazer sentir. Trazer o pensamento lá do fundo e transformá-lo em palavras que me arrancam sentidos. Incrível como esse texto mexeu comigo. Uma coincidência maravilhosa ler isso aqui em um momento que coloquei minha dor para trabalhar. Maravilhoso.

    ResponderExcluir
  9. “(…) não poderia deixar a morte de meu filho me matar.”
    “(…) coloquei minha dor a se mexer, a aprender algo de útil, e parar de me incomodar.”

    Fabro, que sabedoria tem a Dora! Conheci famílias em que a morte de um filho chegou ao luto… dos netos!!!!!

    Então à Dora…

    GALOS VERDES
    by Ramiro Conceição

    Sobre os galhos
    da imaginação
    nas castanheiras,
    vejo galos verdes
    a encantar o dia.

    Depois de tudo… e de tanto tempo,
    meu êxito se parece ao do girassol
    que nasce, cresce… e que semeia
    uma esperança transitória sob o sol.

    Sonhar com olhos abertos
    é ser, não importa a idade,
    um moço mais bonito que
    um morto da efemeridade.

    Melhor ser desajustado
    que um mero prostrado.
    Diante do caos: ser assinatura,
    pois a sepultura não tem cura.

    ResponderExcluir
  10. Um filho que fica na mãe

    A dor da perda de um filho pode ser
    um relicário pesado se carregado nas costas.

    É melhor trazê-lo para nossa frente,
    fica mais leve se usar os braços para
    suportar, repreender ou afagar.

    Encarar de frente o passado,
    deixa-o mais presente e
    perto do coração.

    ResponderExcluir
  11. Perfeito!
    A dor tem que ser trabalhada, exorcizada.

    ResponderExcluir
  12. Olá, leio seus textos indicada por uma amiga.. Márcia...
    muito bom!!!

    ResponderExcluir
  13. Temos que converter nossas dores em energia produtiva, criativa, artística, ou humanitária. Ajudar e servir ao próximo é o maior analgésico já inventado. Parabéns pelo lindo texto. Um abraço!

    ResponderExcluir
  14. Fantastico!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

    ResponderExcluir
  15. Fabro, pensei muito na Dora...
    Por ser hoje a Primavera... Então a ela:
    http://www.youtube.com/watch?v=tbMCjuHsT7A

    ResponderExcluir
  16. Perdi meu filho em 2002 e isso também aconteceu comigo,as vezes eu me sentia culpada por sorrir,por viver,por querer ser feliz.

    Aos poucos fui me entendendo,aceitando e trabalhando a minha dor e fiz a mesma descoberta que a DORA .......“(…) não poderia deixar a morte de meu filho me matar.”
    “(…) coloquei minha dor a se mexer, a aprender algo de útil, e parar de me incomodar.”

    de repente me vi renascendo e sem medo de ser feliz.
    Descobri que meu filho continuava ainda mais vivo e presente nos momentos em que eu sorria.
    Ao invés de ofertar dor ao meu filho que partiu,comecei a ofertar alegria e vida.

    Renascimento e o recomeço é a mais linda forma de homenagear-mos os entes queridos que partiram......

    ResponderExcluir
  17. Perfeito!

    A dor e a doença escrevem, pintam e tornam a vida mais leve!

    Belíssimo

    Beijos

    Mirze

    ResponderExcluir
  18. Simplesmente MARAVILHOSO. Parabéns!!!!!!

    ResponderExcluir
  19. Um texto maravilhoso... Quanto mais leio mais me encanto!!! Parabêns

    ResponderExcluir
  20. Perfeito ensinamento esse passado pela Dora! Adorei!

    ResponderExcluir
  21. Perder um filho,foi a pior coisa que aconteceu em minha vida!é uma dor sempre presente!!que saudade que tenho de minha linda filha,sinto saudade do cheiro de sua respiração,eu dormia com a mão em cima de seu peito e sempre...sempre com o rosto proximo ao dela pra cheirar sua respiração... nunca mais eu serei a mesma.

    ResponderExcluir
  22. Não sei ainda o que fazer com minhas dores. Que Deus me ensine por sua misericórdia! Nunca passei nada tão dolorido como deve ser perder um filho. Só de pensar, já me angustio. Mas não sei lidar com as minhas feridas inflamadas, abertas e dolorosas

    ResponderExcluir