Arte de Serge Poliakoff
Se eu tivesse seis meses de vida, não voltaria a fumar.
Se eu tivesse seis meses de vida, não empreenderia nenhuma viagem pelo mundo.
Se eu tivesse pouco tempo de vida, não enlouqueceria a resistência com farras e bebedeiras.
Não entraria em casas noturnas para mergulhar em rodadas insanas de sexo.
Não iria surtar dobrando o colesterol e engordando nas mesas das churrascarias.
Absolutamente não me vingaria dos vícios abandonados ao longo dos anos.
Não depredaria a casa bradando justiça.
Não sairia atropelando os amigos com as vontades reprimidas.
Não realizaria catarse, libertação, desforra dos recalques.
Manteria a musculação quatro vezes por semana, continuaria não bebendo refrigerante, preservaria as caminhadas, insistiria em dormir e acordar cedo. Minha Porto Alegre me veria em seus mercados, parques, restaurantes.
Um aviso fúnebre não impactaria meus cuidados físicos.
Não lamentaria que não adiantou em nada a preocupação com o bem-estar, que fui burro me controlando.
O fim não elimina o valor das dietas que experimentei, das fisioterapias que acumulei, das restrições alimentares que adotei.
Temos a sensação de que paramos o que nos prejudica para viver mais.
Eu parei para viver melhor. Mesmo que seja por mais alguns dias.
Viver melhor para mim é viver mais.
Minha mãe de 73 anos soltou uma de suas frases sábias quando passeávamos pelo bairro Petrópolis.
– Quero morrer com saúde.
– Como assim? – repliquei. – O que é morrer com saúde?
– Quero morrer com forças para enfrentar a morte de igual para igual. Morrer mexendo na horta, lendo na varanda, pensando em qual filme ainda não vi. Tão triste morrer e não ter nem força para cumprimentar os anjos.
Eu também quero, mãe. Morrer bonito. Morrer com o rosto descansado e satisfeito. Morrer com um pouco de preguiça. Morrer sobrando. Morrer com a vontade de amar a mulher de noite. Morrer espiando as ofertas dos classificados, completando as palavras cruzadas do jornal. Morrer com as articulações das pernas firmes e os braços levantando o peso das frutas. Morrer sabendo o resultado de meu time e sua posição no campeonato. Morrer com confiança. Morrer respirando largamente. Morrer com a memória das datas prediletas.
Não morrer pessimista. Não morrer desesperançado. Não morrer longe de mim.
Morrer feliz com o que eu tive e fui capaz de fazer.
Morrer acenando com força na janela dos olhos de Deus.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N° 17404
Quando eu era crianca ouvia meus tios dizerem que o mundo era dos jovens. Hoje eu entendo porque.
ResponderExcluirSó acrescentaria : o mundo é dos jovens e dos poetas.
lindo texto.
ResponderExcluirlindo demais....quero morrer assim também...você e sua mãe conseguiram expressar o que sinto....te amo pra sempre....mesmo nunca não te vendo te conheço...por suas palavras ...por sua alma...beijo gostoso....pra você e pra sua doce mãe...Verinha
ResponderExcluirvocê me fez chorar!!
ResponderExcluirLindo texto. Fez-me lembrar do meu bisavô. Com 92 anos, viajou de carro com meus tios do norte do Paraná até Brasília, para entrar com as alianças no meu casamento. Dois anos depois, descobriu câncer com metástase. Ainda assim, foi sereno até o fim da vida. Minha mãe esteve com ele pouco antes da morte e disse que ele continuava sorridente. Não se amargurou, não se entregou. Apenas aceitou que a vida tão vivida estava chegando ao fim...
ResponderExcluirMas aposto que vai comer mais pastéis.
ResponderExcluirGrande Maria Elisa!!! bjs Denise Silveira
ResponderExcluirÉ impressionate como o Carpinejar mand abem em td que escreve.. e pensa !! Sou muito fã !!!
ResponderExcluirComo leitor,foi um dos texto com um final mais surpreendentes que já li carpinejar,mais um vez parabéns,é incansavel te elogiar!!!
ResponderExcluirAgora sei pq de tanto talento? DNA! rsrsrs
ResponderExcluirLindo texto! Um dos melhores.
Beijos