domingo, 17 de abril de 2011

EU SOU VOCÊ

Arte de Wayne Thiebaud


Você não aguenta reprisar o corredor dos perfumes do mercado. “Vamos?”, o marido não se mexe, demora todas as vidas de Chico Xavier para escolher um produto. Investiga preço, lê os componentes, pega dois xampus e três condicionadores para testar qual é melhor.

- Tem certeza que você precisa de tudo isso? - você pergunta.

Ele despreza sua curiosidade e liga para o amigo disposto a confirmar a dica. Recapitula, pelo telefone, os ingredientes das costas da embalagem: glicerina, geramol...

* * *

Você está com a mão na maçaneta aguardando sair e não suporta a sensação de arbusto de hospital. “Vamos?”, mas o marido demora para pentear os cabelos. Acabou de testar os xampus e os condicionadores e depende de uma opinião sincera do espelho.

- Arrumado assim só para almoçar? - você pergunta.

* * *

Você assiste seu seriado predileto no sábado e seu marido inventou de arrumar o apartamento. Além de lavar a louça e desinfetar os banheiros, ele liga o aspirador de pó.

O aspirador de pó é o único herdeiro do cortador de grama. Pelo barulho infernal logo cedo, descobre que seu companheiro é pior do que a própria mãe. Quando começa uma faxina, põe a família a se sentir culpada.

- Tinha que ligar o aspirador justo agora que estou vendo “House?” - você pergunta.

* * *

Você é carregada pelo marido. Hipnotizado pelas vitrines, ele nem nota que puxa sua mão com força. Entra na quinta loja para espiar a promoção de sapatos. Não suporta mais caminhar, nem é pelo salto que nunca usa, é que sonhava sestear no sofá e terminar o “House” interrompido pelo aspirador de pó. Enxerga, ao fundo da loja um banquinho alto. Senta e respira aliviada: o banquinho é bebedouro no deserto dos consumistas.

Ele recebe cinco caixas da vendedora e experimenta os pares com meticulosidade cênica. Dobra o pé imitando uma bailarina na barra.

- Gostou?

Você somente pensa em dizer:
- Vamos embora desse shopping?

Engole a seco as palavras para não ser cobrada pela indisposição.

* * *

Você marcou uma partida de vôlei com as amigas, volta para casa de madrugada depois de uma carne e rodadas de chope. Seu marido questiona o motivo da demora. Você não fez nada de errado, mas não está a fim de dar satisfação, toma banho e vai dormir.

* * *

No café da manhã, ele lhe espera com o rosto murcho, de pão do dia anterior. Já entendeu o recado: ele quer discutir o relacionamento pela enésima vez na semana, quer corrigir alguma coisa de sua atitude.

- Porra! - desabafa. - Casamento não é aula de caligrafia.
- Para de gritar comigo!

Não tem escolha, é conversar ou o fim, seu marido confessa que não vem sendo valorizado, que permanece sozinho a maior parte do tempo, que você não elogia a janta que ele prepara, que precisa oferecer um mínimo de atenção aos filhos, que ainda não reservaram uma noite para assistir a caixa de filmes da Julia Roberts. Ele chora, você tenta consolar e não consegue, o sujeito sai correndo de chinelo com meia e bate a porta do quarto:

- Me deixa em paz!

* * *

Você atende ao pedido e segue ao escritório. Mal entra em sua sala, toca o celular e seu marido começa outra discussão reclamando de sua frieza, por tê-lo abandonado aos prantos. Ele mia inconveniências de seu comportamento enquanto finge que escuta e gesticula aos colegas as atividades que devem ser feitas.

* * *

Não sei o que passou pela cabeça da mulher quando desejou mudar o homem.

Publicado no jornal O Globo
Revista O Globo, P. 35
Crônica especial sobre Borralheiro, personagem de meu novo livro
Colunista convidado
Rio de Janeiro (RJ), 17/4/11

18 comentários:

  1. Adorei a crônica... mas isso é o apocalipse!

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  2. Excelente crônica, deixei algumas risadas perdidas pelo meio. Parabéns.

    Abraço

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  3. Fabrício, só você mesma para escrever para alegrar o meu domingo! rs
    Abraço.

    http://raquellribeiro.blogspot.com/

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  4. Maldita hora! Primeiro pq quero meus direitos de mulherzinha e segundo que homem desnudado cansa!
    Volta aos papéis já!!!!!!

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  5. EU vI NO JORNAL E QUASE SURTEI E EU ADOREI.

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  6. ótima crônica, Carpinejar! Excelente.
    Quando volta pra Londrina?
    abraço, querido.
    Boa semana

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  7. concordo com a expressão "apocalipse". achei engraçado, mas ao mesmo tempo me senti super mal imaginando as cenas: -"Meu Deus, isso ñ pode acontecer!!"
    rsrsrsrsss... mas meu marido ajuda na limpeza da casa, arruma minhas roupas, até lava minhas calcinhas, isso é sinal de perigo???
    super bjcas, adoro suas cronicas!!!

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  8. Como sempre, um arraso!

    Não vejo a hora de comprar o novo livro.

    Tati.

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  9. Pois é meu caro... as coisas andam diferentes.
    Não sei se as mudanças já chegaram a este ponto. Talvez tu estejas sendo um profeta do futuro.

    abraço

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  10. incrível sensibilidade para o deleite feminino..
    Beth vespoli
    abraço,bjs

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  11. Olá!
    Gostei tanto dessa crônica que a transcrevi no meu blog ( com os devidos créditos, claro!). Minhas amigas precisam ler isto!
    Amei!
    Um abraço.

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  12. CARAMBA, somos nós que fazemos tudo isso com os homens? É inevitável não refletir sobre o nosso próprio comportamento com os papéis invertidos.

    PARABÉNS!!!

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  13. Mais um pouco e começo a me sentir culpada! Adorei!!

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