domingo, 31 de julho de 2011

CIDADE DOS ETs

Responsável por museu, o historiador diz ter sido “recrutado” por entidade. Fotos de Jean Scharwz

Na dúvida, o réu é absolvido. Na incerteza, o extraterrestre existe. A frase de São Tomé não funciona na pequena Itaara, cidade localizada na região central do Estado, a 257 quilômetros da capital gaúcha. A sentença é inversa: acredita-se enquanto não se enxerga.

O lema é duvidar para crer.

– Olha, nunca vi, mas existe – expõe Rodrigo Cauduro, 35 anos.

Os 5 mil moradores não menosprezam as galáxias distantes. Tampouco o assunto provoca pavor.

– Os terráqueos têm o egoísmo de achar que são os únicos seres – explica a estudante Joice Abreu, 27 anos.

– Se eu estivesse sentado na varanda e viesse um óvni no pátio, desde que não estragasse minha grama, ofereceria um chimarrão ao alienígena – antecipa o aposentado Nelson de Oliveira Rosa, 60 anos.

Itaara tornou-se a cidade dos ETs após virar sede do primeiro e único Museu Internacional de Ufologia na América Latina, que completou 10 anos em junho e já contabiliza 180 mil visitantes.

A fortificação azul se assemelha a um disco voador pousado numa área rural, em meio a estradas tortas de barro e terrenos baldios. A dificuldade em chegar ao local aumenta a curiosidade. O museu é dirigido pelo historiador Hernan Mostajo, 44 anos, e sua mulher Roberta Ávila, 40, juntos há duas décadas, e foi batizado curiosamente de Victor Mostajo. O filho adolescente do casal, que estuda e mora em Santa Maria, empresta o nome ao lugar.

– Homenageamos os vivos e o futuro, não os mortos e o passado.

Hernan estufa o peito como um tenor para guiar a visita. Seus olhos negros nervosos criam suspense na hora de falar. Suas pálpebras tremem sem querer e ajudam a adrenalina da oratória. Ele não esclarece dúvidas, dá palestra em toda resposta. Foge de questões objetivas e pessoais devolvendo novas questões. Diz ter sido recrutado por uma entidade em Ibirubá, em 1993. Na época, recebeu de presente fragmento de um satélite da Nasa.

– Que entidade?
– Para quê?

O máximo que retiro dele é o seu apelido: Neco. Na entrada do prédio, ele já começa desculpando a simplicidade da amostra:

– Conhecimento não ocupa espaço.


A força do acervo está em sua performance emocional. Ele dança, sapateia, grita. Não afirma nada, faz intrigas. Não para um minuto de contar histórias. Questiona ações governamentais no Caso Roswell, de 1947, onde um óvni teria caído no Novo México (EUA), e desenvolve criativas teorias de conspiração sobre o lado oculto da Lua e súbita interrupção das viagens espaciais americanas. Reedita o apresentador Jack Palance, do programa Acredite se Quiser. Roberta Ávila fica na retaguarda, colocando ao fundo canções de Frank Sinatra e Elvis Presley em momentos precisos da exposição.

A dupla escolheu Itaara pelo teto perfeito para observação astronômica. Em outubro, pretende inaugurar o Observatório Cosmos. Cerca de 15 escolas visitam mensalmente o museu, que concilia material de cosmologia e ufologia com paleontologia e arqueologia. As crianças se divertem com a explicação do Big Bang e da reconstituição do cenário pré-histórico. Podem tocar em cocô de dinossauro e manusear ossos de animais extintos.

– Para entender a vida extraterrestre, é necessário entender a evolução do homem – pontua Hernan.

Da origem do universo a casos clássicos de abdução, o professor vai assumindo um tom animado de Revolução Farroupilha. No final, ele se transforma em Jack Palance mais Bento Gonçalves. O Centro Victor Mostajo surge como o museu internacional mais bairrista do mundo.

– Os mais antigos dinossauros da Terra são gaúchos. E temos Artur Berlet, um tratorista de Sarandi que foi abduzido em 1958 por um disco voador, viveu nove dias no planeta Acart e antecipou experiências tecnológicas fora de série para a época, como comunicação via Skype em tela plana de plasma.

Acredite se quiser, tchê!







Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 30, 30/7/2011
Porto Alegre, Edição N° 16777
Veja vídeos sobre nossa passagem pelo Museu de Ufologia

quinta-feira, 28 de julho de 2011

COM TODO GOSTO


03/08 (quarta-feira) – Bento Gonçalves (RS), 17h
Casa Brasil, estante da Criare Móveis
Bate-papo
Local: Parque de Eventos de Bento Gonçalves (Alameda Fenavinho, 481)

04/08 (quinta-feira) – Porto Alegre (RS), 11h
IV Ciclo de Decisões - Fórum de Marketing e Vendas Amcham (Câmara Americana de Comércio)
Palestra “A Arte de Sedução nas Vendas - Fácil seduzir com mentiras, o conquistador mesmo seduz com a verdade”
Local: Teatro do CIEE (Rua Dom Pedro II)

08/08 (segunda-feira) – São Leopoldo (RS), 10h30
Colégio São Luís
Palestra
Local: Rua Bento Gonçalves, 1378, B. Centro

11/08 (quinta-feira) – Lajeado (RS), 8h e 10h
6ª Feira do Livro de Lajeado
Palestras
Local: Parque do Imigrante

17/08 (quarta-feira) – Araricá (RS), 9h
Feira do Livro
Palestra

17/08 (quarta-feira) – São Paulo (SP), 15h30
Youpix Festival
Duelo de repentes com Tati Bernardes
Local: Bienal (Parque do Ibirapuera)

23/08 (terça-feira) – Porto Alegre (RS), 9h
Fronteiras do Pensamento - Geração Z
Local: Salão de Atos da UFRGS
(Av. Paulo Gama, 110)

25/08 (quinta-feira) – Viçosa (MG), 20h
Projeto Grandes EscritoresPalestra
Local: Colégio ANGLO(Rua Dr. Milton Bandeira, 380 - 4º Andar - Centro)

27/08 (sábado) – Santos (SP), 19h
3ª Tarrafa Literária – Festival Internacional de Literatura de Santos
Palestra com Ian Samson: Escrevo para crescer - pais maduros e imaturos.
Mediadora: Mona Dorf
Local: Teatro Guarany (Praça dos Andradas, 10, Centro)

quarta-feira, 27 de julho de 2011

FURTO QUALIFICADO

Arte de Cínthya Verri

— Você é poeta?

O professor Guilhermino César colocou meu pai numa sinuca de bico. Ele estranhou a provocação, se devia dizer que sim e ostentar orgulho ou responder que não e insinuar covardia. Optou por abandonar a gaveta e assumir os versos.

— Sim, sou.
— Tenho uma pergunta para ver se realmente é poeta. Uma só pergunta.

O pai, então com 21 anos e aluno de Guilhermino, entrou em pânico. Duas ou três perguntas não são perigosas, uma única pergunta é assustadora, parece que é caso de vida ou morte.

— Quantos guarda-chuvas você perdeu na vida?
— Você está de sacanagem comigo, professor.
— Não, querido, me responde, é o grande teste da poesia, não existe outro melhor.
— Acho que perdi mais de vinte.
— Boa média. Mostra que é poeta. A poesia é arte da distração, esquecer as coisas para dar valor às pessoas.

Ouvia essa história de meu pai quando lamentava por mais um guarda-chuva deixado na escola. A mãe me recriminava pela falta de atenção, e ele se envaidecia da minha vocação perdulária. Cochichava alegre em meus ouvidos:

— Você vai longe assim, meu filho.

Era para eu ter virado Goethe na adolescência. Extraviei mais de cinqüenta guarda-chuvas antes da maioridade. Às vezes tentava ser uma mãe comigo e me controlar, mas não havia jeito, bastava fechar o cabo que o objeto desaparecia de mim. A existência do guarda-chuva é inviável: seco, não pode ser aberto dentro de casa que dá azar; molhado, é posto de lado para não sujar o chão.

Hoje pode cair o mundo, desabar o oceano na cabeça, que vou para rua desligado do toldo preto. Ando encostado nas paredes. 1, 2, 3, 4 e fui. Pulo as poças a cada contagem e me protejo nas marquises. O curioso é que saio sem nada e volto sempre com um guarda-chuva. Acho que pego daquelas cestas de entrada de restaurante, de recepção de consultório, onde estiver. Não é de propósito, juro, difícil acreditar. Um sociólogo diria que é um ato ideológico: guarda-chuva não tem proprietário. Um neurologista confiaria na tese de que guarda-chuva não tem memória. O terapeuta avisaria que é um ato falho, para me vingar de todos que desperdicei na vida.

A verdade é que não penso, tomo, sou um cleptomaníaco dos bairros Bela Vista e Moinhos de Vento.

Fui ver o cabide, possuo vinte exemplares. Nenhum foi comprado. E não há como devolver. O sol do dia seguinte cancela a reabilitação.

Já imagino o que Guilhermino César diria de mim: coisa de prosador roubar guarda-chuva.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 26 de julho de 2011

ANTES DAS FOTOGRAFIAS

Arte de Rufino Tamayo

Sofri com a separação dos pais. Carregava a sensação de que tinha sido difícil, percebo agora que foi um desastre. Ao mexer no baú da família para catar flagrantes da infância, encontrei o álbum de casamento dos dois. Capa dura, nomes dos noivos em relevo dourado, livro grosso para eternidade mesmo, resistente às traças e porões.

Fiquei intrigado no momento de folheá-lo. Tive que sentar e interromper a pressa.

Voltei no tempo. No papel vegetal entre as páginas, havia desenhado o contorno das fotografias. Copiei à mão cada imagem, colorindo depois. São mais de 50 folhas transparentes preenchidas, duplicando pai e mãe no altar, reproduzindo convidados e bastidores da festa.

Na época (mentalidade de criança ferida), fiz uma cópia reserva das cenas. Raciocinei que os dois não seriam mais amigos, jogariam duas décadas de casados no lixo e providenciei um backup primitivo com o lápis Faber Castell HB2. Ansiei preservar a história usando as armas do estojo de 1ª série. Aproveitei meu conhecimento de copista do Pernalonga.

Lembro que não dei mole na separação: briguei com os irmãos, esperneei no sofá, chantageei no carro, planejei greve de fome, renunciei futebol, peguei recuperação, chorei no mercado, passei recreio no SOE, ia de um lado para outro da sala ao quarto para diminuir a distância das palavras. Olha, coitados de Carlos Nejar e Maria Carpi, criei um inferno para reconciliá-los, demorei a constatar que o paraíso deles também não era o meu.

Diante do flashback, eu me pus a comparar o que fui com o que sou. Todos, quando pequenos, sofrem com o divórcio dos pais, indicativo de trauma, término da idealização e receio de parar num orfanato. E todos, quando maduros, consideram a separação necessária e natural.

É impressionante o quanto nos esforçamos para manter os pais juntos, e não realizamos quase nada pelo nosso casamento na vida adulta.

E se lutássemos para entender nossa esposa como defendemos nossa mãe? Se realizássemos metade da birra feita com o pai durante a despedida de nossa mulher? Se trocássemos o orgulho da cobrança pela cumplicidade emocionada do erro? Se desejássemos falar menos e ouvir a voz dela mais um pouco?

Se fôssemos meninos para sempre, nenhuma separação seria fácil. O amor não morreria fácil. O papel vegetal protegeria as fotos.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 26/07/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16773

sábado, 23 de julho de 2011

COM LICENÇA

Há quatro décadas, o médico Irineo Mariotto, que visita até 30 famílias por mês, costuma tirar o chapéu à porta da casa de seus pacientes. Fotos de Jean Scharwz

Na minha infância porto-alegrense, sofria crises fortíssimas de asma, que sempre me obrigavam a retornar ao consultório do pediatra. Cansado de acompanhar o vaivém, Sérgio Pilla Grossi decidiu:

– Vamos até sua casa.

Mesmo? Nunca havia recebido um médico. E ainda a caráter: de jaleco, estetoscópio e maleta preta. Ele tomou chimarrão na cozinha, brincou com os manos, pediu que mostrasse o quarto, até que apontou para as cortinas pesadas e recomendou à mãe:

– Põe para lavar, e deixa a janela sem nada durante algum período.

Dito e feito: eu me despedi da asma. Sem sua passagem pela minha residência, não teria descoberto o problema.

Quase desaparecido da Capital, o médico de família é uma figura central e dominante no interior do Estado. É ele que manda na saúde pública e desafoga o hospital na italiana Ivorá, município de 2,4 mil habitantes, a 283 quilômetros de Porto Alegre. Na cidadezinha emoldurada pelo Monte Grappa, chá de banco não existe, mas cafezinho no sofá.

Desde 1972, Irineo Mariotto, 66 anos, vai de porta em porta todo dia para conferir o ânimo de seus pacientes. Visita 20 a 30 famílias por mês, chegando a tratar quatro gerações num endereço, do avô ao bisneto.

– Enxergo a realidade muito além de simplesmente escutá-la. Gastei muitas solas de sapato branco nos cascalhos, bem mais do que qualquer sambista – brinca.

Ele aperta a campainha e sai dizendo:

– Com licença...

Seu chapéu preto é uma tática cavalheiresca.

– Coloco o chapéu somente para tirá-lo, é uma homenagem às mulheres.

A fisionomia cabotina e simpática é completada pelo contraste entre o farto bigode e os óculos minúsculos.

– Conheço 99,9% dos ivorenses. A convivência alimenta meu bom humor – afirma.

Pelo trabalho de formiguinha ao longo de quatro décadas, Mariotto foi eleito prefeito por duas gestões (1989/1992 e 1997/2000).

– Os idosos não medem esforços para me agradar, interessados na situação de seus contemporâneos. Servem suco, biscoitos, doces, ansiosos por notícias dos outros – confessa.

Maria Joaquina de Paula, 88 anos, a filha Maria Dejanira, 59, e as netas Gabriela, 19, e Daniela, 26, são pacientes de Irineo.

– Visita é melhor do que consulta, né? – pergunta Dejanira.

A aparição do médico ajuda a rotina feminina, já que Joaquina é paraplégica.

– Não temos necessidade de subir escada com cadeira de rodas, achar um táxi grande, aquela trabalheira para levá-la ao hospital. O médico cuida da nona no próprio quarto e orienta dieta e exercícios – conta Gabriela, técnica em administração.

Em suas andanças, Mariotto aprendeu que não deve demonstrar pressa. O ideal é conversar amenidades que a verdade surge ao natural.

– Quando doentes, as pessoas odeiam ser pressionadas, elas se sentem culpadas, têm medo de falar, acreditam que são vítimas de algo que fizeram de errado. Alivio a cobrança.

Extremamente observador, examina cada corredor e hábito.

– Ele é mais cricri do que faxineira. Olha os cantinhos para ver se mantemos o lar limpinho – entrega Dejanira.

Suas vistorias domésticas não são traços de mania obsessiva, e sim bases da medicina preventiva.

– Havia reincidência de verminose no posto de atendimento. Verificamos que o saneamento básico era zero em algumas comunidades. A população bebia da fonte dos animais.

Para Mariotto, tudo é claro e lógico, cartesiano e sensato. Incompreensível apenas é a prole expressiva com a mulher, Neiva. São cinco filhos, número alto para quem se vangloria do planejamento familiar:

– Eu queria 10 filhos, reduzi pela metade!







Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 28, 23/7/2011
Porto Alegre, Edição N° 16770
Veja vídeos de Ivorá.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

CONTOS DISFARÇADOS DE CRÔNICAS


Moacyr Scliar (1937 – 2011) foi um atleta de triatlo da literatura brasileira. Nadava, pedalava, corria. Escreveu mais de 80 livros em praticamente todos os gêneros. Só não publicou em poesia para não humilhar seus colegas.

Romancista que renovou o imaginário judaico, autor de clássicos como O Centauro no Jardim, quatro vezes premiado com Jabuti, Scliar mantinha seu condicionamento literário pelas crônicas, publicadas quase que diariamente nos jornais Zero Hora e Folha de S. Paulo.

Os relatos afetivos e coloquiais formavam uma espécie de diário de seu conhecimento enciclopédico, em que ele comentava sobre qualquer assunto e nome, desde medicina até sociologia, de Antonio Vieira a J. K. Rowling. O escritor gaúcho, falecido em fevereiro, não era um generalista, mas um sábio à moda antiga, com cultura geral sólida, pronto para qualquer discussão e cafezinho.

Não se intimidava diante da complexidade das questões. Ao contrário de intelectuais que se tornaram referência, tal Paulo Francis na década de 1980, jamais escorregou em perfil conservador, mantendo-se sempre curioso e ávido pelas mudanças tecnológicas e de comportamento e aberto a diferentes pontos de vista.

A coletânea de 1984 A Massagista Japonesa (128 ps., R$ 13), relançada agora pela L&PM, por vias tortas acena para o lado contista de Scliar, possibilitando o reencontro com sua capacidade de mimetizar dilemas do cotidiano e propor um suspense de pensamento. São 35 textos de natureza híbrida entre a narrativa curta e o ensaio. Poderiam constar facilmente em seus livros de contos as tramas de Muitos e Muitos Graus Abaixo de Zero, A Massagista Japonesa, O Ocaso da Delação e O Homem que Corria. O núcleo contístico traduz o ponto alto da obra, pelas histórias visível e invisível, concisão da ação e exagero da caracterização, além do final imprevisível.

Scliar maneja a arte de criar lógica da incoerência. Ele nos convence do absurdo a ponto de parecer normal. Como a trama do advogado que se apaixona pela maratona a ponto de transformar o casamento, o escritório e os filhos em meras linhas de chegada de uma corrida interminável pelo melhor tempo. E não é uma metáfora, o sujeito pretende fazer tudo mesmo correndo por Porto Alegre.

Uma das virtudes da trajetória do ficcionista, demonstrada com astúcia em A Orelha de Van Gogh e O Carnaval dos Animais, é justamente exumar metáforas: converter parábolas em situações literais, objetivar o figurado. Na contramão bíblica, transforma o vinho em água, leva a sério a chuva de rãs, traz à tona os efeitos colaterais dos milagres.

Magistral contador de causos, flaubertiano assumido, não deixa nenhum ponto sem nó, nunca desperdiça migalha jogada ao chão (é caminho de volta), não despreza informação abordada antes. Se uma personagem tricota um pulôver é que a roupa vai fazer a maior diferença no desfecho. Nada é avulso. Sua competência é desviar atenção a um contexto de maior movimentação, para que outra zona exploda secretamente e surpreenda o leitor.

Exemplo é a antipatia que ajuda a alimentar pelo delator da escola. Afinal, não existe motivo para admirar o guri que dedura por prazer. Toda hora alerta o professor para colegas colando na prova, trocando bilhetes de amor, conversando no fundo. Nem o professor suporta tamanha alcaguetagem e pede que ele procure se concentrar no conteúdo. Ao cabo, o fofoqueiro é pego fumando no banheiro e sumariamente expulso da instituição. O alívio dá lugar a um mal-estar, já que se descobre que o próprio delator se denunciou por bilhete anônimo e tudo aquilo que o movia era uma absoluta carência.

Scliar é cruel sendo emotivo. Um engano supor que A Massagista Japonesa servirá para matar saudade do seu trabalho. De modo nenhum: apenas aumenta sua falta.

Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, p. 5, Edição Nº. 16767
Porto Alegre (RS), 20/07/2011

quarta-feira, 20 de julho de 2011

DIA DO AMIGO

Veja minha participação ao vivo no Jornal do Almoço, da RBS TV na quarta (20/7). Respondo dúvidas sobre amizade e complicações afetivas.

NENHUMA MULHER SE ACHA BONITA

Arte de Cínthya Verri

Toda mulher bonita não se acha bonita. Mesmo a mais bonita.

É alguma coisa que não agrada: a orelha, o pé, a mão. São detalhes imperceptíveis para a tripulação barbuda. Ou as veias estão muito saltadas ou as unhas quebram rápido.

Uma coisinha que somente ela nota.

E ela sofre duas vezes: quando alguém descobre e quando ninguém enxerga.

A segunda opção é a mais triste. Caso o problema passar despercebido, partirá do princípio de que é tão insignificante que não merece a atenção dos outros.

Toda mulher se vê filha única do defeito. E não é um defeito, mas uma cisma. A maior parte dos defeitos é superstição.

Talvez o martírio feminino venha do excesso de controle: ela se olha demais, e tudo ganha o dobro de importância. O homem se olha de menos, e nunca teve estrias e celulite.

Para a mulher, espelho é lupa. Para o homem, espelho é janela.

Uma espinha, por exemplo, quando descoberta por uma mulher torna-se o próprio rosto. O rosto não existe mais, somente a espinha, que é alisada a cada preocupação.

Mulher não se acha realmente bonita. Nem Brigitte Bardot antes. Nem Gisele Bündchen agora.

Mulher nenhuma no mundo é vaidosa; vaidade é a confirmação de um atributo e ela desconhece suas qualidades.

Mulher nenhuma acredita que é bonita, apenas disfarça que é bonita.

O elogio que recebe soa como ironia. A ausência de elogio soa como reclamação.

Arrumar-se de manhã para a mulher não é um prazer, e sim um pânico.

No fundo, ela se considera um encalhe. Jura que qualquer novo amor é resultado de compaixão ou cegueira masculina.

Mulher não nasce bonita, torna-se provisoriamente bonita (em sua concepção, a beleza dura apenas um dia).

Ela se monta por 24h, mais do que isso não consegue: carrega o medo de se desmanchar com a luz e desiludir a expectativa do próximo.

Seus cuidados são vinganças: à infância, ao deboche da família, ao bullying na escola.

Dentro dela, ela continua uma nerd. Guardará para sempre a imagem de menina inteligente e problemática, de gorda balofa, de desengonçada e fora do time, de alta girafa, de sardenta enferrujada, de vesga fundo de garrafa.

Não adianta convencê-la de que ela é linda, ela se acorda despenteada e nasce de novo, como se não tivesse vivido antes.

Não é falsa modéstia, sequer é modéstia, ela se percebe feia. Toda mulher bonita acredita que, no máximo, pode se ajeitar.

Em seus olhos, corre uma insatisfação permanente que não permite descanso e luto.

Se seus cabelos são lisos, ela gostaria que fossem cacheados; se são cacheados gostaria que fossem ondulados, se são ondulados gostaria que fossem crespos.

A beleza é uma conclusão. E toda mulher vive de dúvidas, toda mulher é uma pergunta. Uma insaciável pergunta.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 19 de julho de 2011

Q'BOA

Arte de Raoul Dufy


Após infidelidade, Fernanda jogou as roupas de meu amigo Felipe pela janela do prédio. Apareceram todas espalhadas no jardim, na piscina, no telhado do estacionamento.

Aquilo não foi vingança. Ele nem se vestia bem – nunca deu valor para o próprio figurino, capaz de sair com um tênis laranja da Nike e outro azul da Adidas.

Felipe não mexeu o traseiro, não se desesperou para recolher suas coisas. Fez de conta que era uma chuva de mantimentos da ONU no bairro.

Não compreendo por que as mulheres insistem em rasgar nossas roupas ou despejá-las andares abaixo. Não há sentido na atitude. Elas é que sofreriam com isso, não a gente. Cometem a imprudência de nos castigar com dor alheia.

Felipe ficaria fulo e possesso se Fernanda queimasse seu álbum completo da Copa de 82. Seria imperdoável. As figurinhas vinham dentro dos chicletes, ele estragou os dentes, sacrificou bolas de gude no recreio, roubou moedas da bolsa da mãe para finalizar as imagens das seleções.

Homem não tolera perder a infância de novo. É mexer na sua infância que ele esperneia – pode ser na forma de uma coleção de selos, de camisetas de futebol, de bolachas de chope, de LPs. Não há um único macho no mundo que não guarde um acervo emocional. Quer matar seu marido de susto? Põe fora sua nostalgia de guri.

Já a mulher teme agressões contra seu closet (homem não tem closet, mas guarda-volumes). O coração feminino é uma delegacia contendo abusos como desfiamentos, rasgões e puxões. A meia-calça é a vítima mais recorrente da força e falta de jeito dos parceiros.

Portanto, uma das represálias mais diabólicas consistiria em derramar partículas de Q’boa nas calças, camisas e saias da esposa. Pequenas gotas de água sanitária, o suficiente para estragar um tecido pelo resto da vida e transformar qualquer Ocimar Versolato em lembrança de Fátima.

E, de modo nenhum, alardear a maldade. Executar o ato em silêncio, a sangue-frio, deixar que ela encontre uma por uma das máculas ao longo dos dias. Haverá gemidos de pânico quando alguém apontar a descoloração nas peças. No ranking de horror da mulher, a Q’boa surge em segundo lugar, atrás apenas das baratas e seguida das traças.

Mas, sinceramente, eu não teria coragem. Não gostaria de ser um inseto esmagado por um salto 15.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 19/07/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16766

sábado, 16 de julho de 2011

PEQUENAS VERGONHAS, GRANDES MENTIRAS


Entrevista ao jornal O TEMPO, de Belo Horizonte (MG), 16/07/2011

SEM PRESSA DE VIVER

O menino Paulinho, “agitado por dentro”, registra seu dia a dia sem pressa em um diário ilustrado. Fotos de Jean Scharwz

Iberê Camargo (1914-1994), um dos maiores pintores brasileiros, nasceu e viveu os seis primeiros anos em Restinga Seca, cidade de 15 mil habitantes, localizada na região central do Estado, a 257 quilômetros de Porto Alegre.

Foi o período de gestação de suas pinturas, determinante para formar os principais símbolos de suas pinceladas.

De Restinga Seca, ele retirou os clarões do amanhecer, os carretéis, as rodas melancólicas, os postes de ferro, a solidão do cerro.

“As figuras que povoam minhas telas envolvem-se na tristeza dos crepúsculos dos dias da minha infância”, escreveu.

Restinga Seca é um quadro de Iberê Camargo que não foi pendurado. Ele viveu com seu pai Adelino e sua mãe Doralice na Estação da Viação Férrea até 1920. Aprendeu a rabiscar, sentado nas lajes frias da varanda, retratando a rotina do maquinista.

A paisagem é exatamente a mesma de Paulo Henrique Penteado Fernandes, cinco anos, criança que ocupa hoje o quintal de Iberê, em pleno recinto ferroviário.

Pela janela, Paulo Henrique tem a chance de reprisar os olhos do artista: a caixa d’água, a sanga afoita pela chuva, o rancho e as vacas magras, os trilhos e os ninhos de neblina na grama. A semelhança se estende até na companhia de uma caturrita, a Nicota (“a única que pode falar palavrão em casa”, confessa o pequeno Paulo).

É uma generosa segunda encarnação da pintura.


O que Paulinho – como é chamado pelos pais Diose, 24 anos, oleiro, e Tanhyana Rodrigues, 26 anos, dona do lar – prefere fazer é desenhar. Mais do que assistir televisão. E sozinho. Sem parente controlando o traço por cima das páginas.

– Quando alguém espia o desenho, o desenho muda – explica.

Ainda na pré-escola, sem saber ler e escrever, criou um diário ilustrado de sua vida. Tudo o que acontece lá fora também acontece em sua imaginação.

Cada folha é dedicada a um personagem. Ou é a saudade de arame farpado das irmãs Daniele, oito ano, e Maria Paula, três anos, que residem com a avó, ou é uma boneca abraçando uma árvore, ou é um patinho bebendo o céu, ou é um mato caminhando de costas, ou é o próprio Paulo se equilibrando na chaminé da locomotiva com a boca inchada.

– Por que a bochecha enorme?
– É o feijão, o arroz e o bife feitos por minha mãe. A bochecha é uma panela.

Nenhum movimento da rua escapa de suas sobrancelhas exclamadas. Além do “bicho-papão escondido na casa ao lado onde não mora ninguém”, sua predileção está concentrada nos pés das galinhas. Tem uma série inteira dedicada a elas.

Qualquer coisa é passível de comparação. A pipa é seu cachorro Maguila com coleira. O fogão a lenha é um vagão perdido dentro da cozinha. A caixa d’água (que Iberê não cansava de olhar) é um passarinho grande de castigo.

O menino tenta nomear o que enxerga, às vezes fala errado, às vezes fala estranho e não é compreendido.

– Ele é agitado por dentro. Conversa sozinho, conversa dormindo, conversa com os próprios dedos – esclarece Tanhyana.

Como todo menino, não tem noção do tempo. Acredita que a vida dura um final de semana. Mas sequer sua mãe tem uma ideia precisa do calendário.

– É a magia do lugar. O relógio era o trem, mas atualmente é de carga e não aparece em horários certos. Não temos pressa de viver.

Paulinho concorda com o riso. Diz que é fácil não morrer, basta grudar um dia no outro com cola Tenaz.

– Será pintor quando crescer? – pergunto.
– Não, ele responde. – Vou ser príncipe.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 28, 16/7/2011
Porto Alegre, Edição N° 16763
Veja vídeos de Restinga Seca.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

MUITO IRRITANTE

Arte de Cínthya Verri

Os homens são irritantes. Mas involuntários. Nem tem consciência de quando incomodam e como incomodam, e ainda se sentem vítimas de ciladas femininas.

É precisamente não saber o que fizemos de errado o que irrita as mulheres. E elas pensam que estamos fingindo, o que agrava o nervosismo.

Mas não, não sabemos mesmo. Não é encenação.

É que repetimos as mesmas falhas e não aprendemos e elas não entendem como não assimilamos a lição na primeira ou segunda tentativa; daí concluem que simulamos bobeira para passar bem, que a dúvida é uma fachada sonsa, uma falsidade ingênua, acobertando um poço de maldade viva e faminta.

Acompanhe meu raciocínio: não há sentido em pedir desculpa por aquilo que não registramos. Somos esquecidos, apenas isso. Totalmente amnésicos.

As mulheres deveriam nos agradecer pelos lapsos de memória. Imagina se tivéssemos consciência de nossas irritações para irritar as mulheres ainda mais. Seríamos pais de Maquiavel, avôs de Cardeal Mazarino, bisavôs de Barba Negra.

Olha só o que acontece comigo:

Apresso a minha mulher para sairmos, digo que ela depende de uma hora e apenas faltam 40 minutos para o trabalho. Ela corre alucinada com o estojo de pintura, o secador, os cabides, eu permaneço lendo jornal. Ela atravessa os corredores com um monte de roupas, equilibrando o iogurte numa mão e a agenda noutra, eu permaneço lendo jornal. Vou gritando “Está pronta?” a cada mudança de editoria, como um cronômetro afetivo, para recordá-la que estou atento e demonstrar interesse. “Pronta?” a cada dez minutos, quatro vezes no total.

A voz chicoteia o tempo, o propósito é criar uma alucinação militar, afobada, estressante para ajudá-la a se superar e merecer elogios ao final. Por evitar o atraso, o homem jura que receberá um emocionado agradecimento.

Quando ela se apronta, finalmente linda, maquiada, cabelos secos, cheirosa, após cumprir o impossível de 40 minutos, exatos quarenta minutos!, fecho o jornal e aviso que vou tomar banho.

— Mas um banho rápido, tá? Para não nos atrasar?

Acelero minha esposa quando não estou vestido porque deduzo que sou rápido e ela lenta, sobrecarregada de miudezas e detalhes.

Cínthya bufa de raiva, bate o pé para não me enforcar com o próprio cinto de lantejoulas.

É que o homem sempre tem uma defesa mirabolante quando a vida pede uma resposta simples. Além de nossa esquisita mania de não acreditar no inconsciente.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 12 de julho de 2011

VINTE RAZÕES PARA AMAR UM CARECA


1. Não é que o careca é careca, ele tem mais rosto. É somente rosto. Sua mulher nunca erra um beijo em sua face. Atrás da cabeça ainda é bochecha. Não há aquele risco desagradável de engolir cabelo.

2. O careca é um ponto de referência em qualquer lugar público. No supermercado, por exemplo:
- Onde é o corredor do arroz?
- Depois daquele careca, à esquerda.

3. O homem larga a pose alfa, tem um maior contato com a natureza, arrepia-se com as gotas da chuva ou as lufadas geladas do vento.

4. A careca é uma zona erógena e pode ser aplicada como instrumento preciso para massagens eróticas nas costas da mulher. Trata-se de uma plataforma vibratória, com funções aeróbica, anaeróbica e terapêutica.

5. Fim dos furtos dentro de casa. O xampu e o condicionador da esposa duram o dobro de tempo.

6. O macho deixa de ser hipócrita, não perguntará para a mulher de quem são os cabelos no ralo ou na pia. Com o fim da concorrência, agora tem certeza que são dela.

7. Não corre o risco de se afeminar com o uso excessivo do secador.

8. Na pressa, não precisa tomar banho, apenas completar o polimento.

9. O careca não passará pelos vexames sociais da caspa ou do piolho.

10. Nunca envergonhará sua companhia pintando os cabelos de acaju ou recorrendo às luzes.

11. Reduz as possibilidades de câncer de pele. Começa a pôr protetor solar para sair ao trabalho, não se restringindo a se prevenir da radiação ultravioleta nas férias.

12. Não é bobo de gastar R$ 50 mil como Eike Batista para comprar uma peruca italiana. Não é bobo de virar sósia de Silvio Santos com peruca de R$ 50.

13. O careca é maduro, confiável, único homem que realmente abandonou a adolescência.

14. Ninguém reclamará que ele é vaidoso e que vive se olhando no espelho para ajeitar o topete.

15. Se cometer algum crime, pode mudar de personalidade colocando um chapéu, uma boina ou um boné.

16. O careca não enrola, assume o romance. É tudo ou nada. Não admite meio-termo: implante, aplique, calendário pilomax. Prefere uma cabeça raspada a falsas esperanças.

17. Rejuvenesce no ato. Aparenta cinco anos menos do que os seus colegas grisalhos ou de mechas tingidas.

18. Não existe mais nenhum problema que possa fazer o careca perder cabelo.

19. Elas gostam dos carecas porque os carecas se gostam.

20. Todo careca sabe quem foi Yul Brynner.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 12/07/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16757

sábado, 9 de julho de 2011

AEROMOÇA DO CINEMA

Carine explica o filme, mas promete não entregar nenhuma pista sobre o final. Fotos de Nauro Júnior.

Não existe espectador desavisado em Rio Grande, município de 195 mil habitantes, no extremo sul do Estado, a 311 quilômetros de Porto Alegre. Todos conhecem o filme que vão assistir. Ou ficam conhecendo às vésperas da projeção.

Talvez seja o único lugar do mundo que tem horóscopo cinematográfico.

Você entra na sala e não acompanhará, como de costume, o trailer dos lançamentos. Haverá uma mulher uniformizada de vermelho, que explicará a história a ser exibida.

Na frente da tela, Carine Duarte de Cantes, 32 anos, realiza uma sinopse falada da obra. Antecipa o enredo em três linhas.

– Boa tarde, bem-vindo ao Cine Dunas e a Kung Fu Panda 2. Neste filme, Panda terá que lutar junto aos seus amigos contra um vilão que deseja destruir a China...

Carine conta com um microfone natural no pulmão. Desafia o silêncio com sua voz jazzística, alcançando notas de coro gospel.

– É que já fui telefonista de motel – ri.

Ela é a porta-voz das gentilezas do casarão antigo, que mantém os adornos portugueses do prédio original de 1933.

– Juro que não entrego o final, digo apenas o comecinho – brinca.

O Cine Dunas é a única rede na cidade, adepta do cinema de calçada, com uma filial no Centro (desde 2008) e a sede na praia de Cassino (2005).

Cada sala tem duas sessões por dia, de terça a sexta, às 19h e às 21h, e quatro no final de semana, também nos horários das 15h e das 17h. Com exceção de sábado e domingo, a média de frequência é de 80 pessoas ao dia, que pagam R$ 10 de ingresso.

– Para os saudosos da figura do lanterninha e do pianista, temos a explicadora, uma função antiga, que personaliza o nosso contato – afirma o proprietário Cleyton Martins Abreu, 51 anos.

Carine desfila entre as poltronas de couro com a elegância envaidecida de atriz. Transformou-se numa lenda do lugar, musa dos cinéfilos e tia predileta das crianças.

Interage como se fosse uma aeromoça. Usa os braços para mostrar as saídas de incêndio e as recomendações de respeito como não fumar e desligar o celular. Por pouco, não recebe aplausos.

– Estudo a tarefa em casa e me concentro. Uma palavra errada, um simples tropeço e estrago a expectativa do público.

Mas o sucesso não subiu à cabeça; trabalha duro, sem parar, até meia-noite: atende na bomboneria, apronta café, prepara a pipoca, retira o lixo das poltronas e recolhe os ingressos na entrada. É olhar para o lado e ela desaparece, para assumir uma nova atividade.

– Ainda não sou a projetista – esclarece.


Devido à mania de decorar argumentos, sua memória ganhou a velocidade de uma enciclopédia. Para o contentamento de sua filha Endyana, 15 anos, que vive tirando dúvidas do roteiro de alguma estreia.

– Amo os pequenos resumos, sei centenas de cor, são meus poemas – compara.

O que deseja fazer, e que não teve chance na adolescência, é namorar no cinema e dividir a pipoca, o grande teste de relacionamento.

– Se o homem pede um pote somente para ele não é romântico. Pipoca foi feita para ser dividida.

Solteira, de cílios grandes, a estrela do Cine Dunas aguarda seu galã surgir antes dos créditos finais.

– Queria ter alguém para curtir, abraçar e beijar no escuro da sessão. De repente, esquecer o filme em nome de uma história de amor.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 28, 9/7/2011
Porto Alegre, Edição N° 16754
Veja a descrição do filme na voz de Carine Duarte de Cantes.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

ABRAÇO DE JUDAS

Arte de Cínthya Verri


Todo presidiário tem dez minutinhos de sol, um recreio para banhar o rosto com a luminosidade da manhã.

Já quem é livre talvez passe 24h longe de um pátio, desprovido de um mísero contato com a luz do dia. Talvez não abra a janela, sequer levante as persianas, para espiar o azul do horizonte e criticar a temperatura dos relógios da rua.

Quem é livre age com culpa. Encarna-se na profissão como um condenado, debruçado a atender os múltiplos sinais do celular, laptop, iPad, televisão.

Sempre encontra um tempo para adiantar uma tarefa, mesmo que seja necessário abdicar do almoço, mas nunca abre frestas para se sentir no mundo.

Suas frases mais comuns são que não tem escolha; precisa se sustentar; há muito a fazer.

Aparentemente solto, está confinado na solitária do seu trabalho — e não percebe o valor de respirar a cerração, espirrar quando surge um vento mais gelado e descascar tangerinas no meio-fio solar, fugindo do lado das sombras.

Esquece que o centro tem praças, que as praças têm bancos, que nos bancos caem máscaras de oxigênio das árvores.

Esquece o livre-arbítrio, envolvido na onipotência de desdenhar da vida.

Se fossemos samambaias, estaríamos mortos. Secos. Murchos. Somos vasos e demoramos a rachar. A longevidade não é saúde.

Até abraçar desaprendemos. Ninguém mais abraça com vontade. Com sinceridade de velório.

Odeio abraço falso, como aquele beijo de frígida, no qual a face bate na face e os lábios se transformam em beiço.

Abraço tem que ter pegada, jeito, curva. Aperto suave, que pode virar colo. Alento tenso, que pode virar despedida.

É pelo abraço que testo o caráter do outro. Não confio em quem logo dá tapinhas nas costas. A rapidez dos toques indica a maldade da criatura.

Não sou porta para bater. Nem madeira para espantar azar.

Abraço com toquinho é hipócrita. É abraço de Judas. De traidor. O sujeito mal encosta a pele e quer se afastar. Pede espaço porque não suporta os pecados dos pensamentos.

Devemos fechar os olhos no abraço, respirar a roupa do abraçado, descobrir o perfume e a demora no banho.

Abraço não pode ser rápido senão é empurrão. Requer cruzamento dos braços e uma demora do rosto no linho.

Abraço é para atravessar o nosso corpo. Ir para a margem oposta. Nadar para ilha e subir ao topo da pedra pela gratidão de sopro.

Sou adepto a inventar abraços. Criar abraços. Inaugurar abraços. Realizar um dicionário de abraços. Um idioma de abraços.

O meu é o de cadeira de balanço. Giro nas pontas dos pés. Não largo, os primeiros minutos são para sufocar, os demais servem para o enlaçado se recuperar do susto.

Não entendo onde terminará o abraço. Se a pessoa vai chorar ou vai rir. Abraço é confissão.

Dez minutinhos de sol e de liberdade.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 5 de julho de 2011

NA HORA DO RECREIO

Arte de Oskar Kokoschka

Não é falta de educação perguntar a idade a um professor, e sim seu salário.

Questionar o vencimento a um educador municipal ou estadual é uma afronta, um constrangimento perante os outros. Melhor evitar; manter a amizade silenciosa, o respeito telepático, a pose compreensiva.

Mas não perguntar não significa que não sei quanto ele recebe. Acabo descobrindo. É impossível não saber.

Eu vejo cada centavo, cada real de seu contracheque. Toda vez que entro numa sala de professores testemunho um deles comercializando roupas, lingerie ou uma série inédita de produtos da Avon ou da Natura.

Varais preenchem as cadeiras de fórmica: uma festa junina de etiquetas, desafiando a procura pelas térmicas da água quente e do café.

As mesas estarão ocupadas de embalagens sendo abertas e reviradas pela ansiedade do recreio.

O salário aparece nítido no desespero da muamba.

A sala de convivência é casa de penhor, comércio ambulante, camelô.

O professor tornou-se uma formalidade cheia de informalidades. Coleciona rifas além do seu trabalho, senão não sustenta a família, não aguenta o tranco do final do mês, não tem como fazer rancho aos filhos.

É humilhante pensar que aquele que ensina não ganha o suficiente apenas para ensinar.

O magistério é total ausência de exclusividade. Não é uma carreira, é uma mesada do Estado. O professor vive eternamente como um estagiário, aguardando ser efetivado e abandonar a miragem salarial.

Professor usa o intervalo para completar seu orçamento. Acumula tarefas, sobrevive de reforços da receita, não respira à toa, não tem margem para incrementar seu currículo com cursos e especializações.

Professor não conhece férias, mas greve. Não conhece promoção, mas reajuste.

São extras e extras e extras sem fim. Bicos e bicos e bicos infinitos.

É uma comissão aqui, uma porcentagem acolá. Tudo é dinheiro contadinho para as passagens.

Escola é rodoviária. Nosso professor chega com uma malinha pesada. Não são livros, não são cadernos de estudo, são novidades imperdíveis e baratas para serem revendidas.

Ele espalha os pertences pelo sofá e não descansa um minuto tentando convencer seus colegas a levar um dos itens.

Pena que nenhum pode comprar. Porque também são professores.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 05/07/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16750

sábado, 2 de julho de 2011

PARA VER A BANDA PASSAR

Nas ruas da fria Bom Jesus, banda colegial ensaia para os desfiles de 7 de setembro com a aprovação dos moradores e aprende, naturalmente, lições de criatividade e de disciplina. No destaque, Kathleen, portadora de necessidades especiais auditivas. Foto de Renato Bairros
Se tiver de escolher entre ver a neve ou a banda, optará pela banda, sem dúvida. Franciane Borges, 10 anos, é a caçula do grupo marcial da Escola Estadual Conde de Afonso Celso. Toca caixa ao lado de 32 colegas, da 5ª a 8ª série. Tem um riso ladeado de covinhas, próprio de tímida recentemente confiada a uma missão especial.

– Acho que a neve poderia servir de instrumento – brinca, para logo se envergonhar mais um pouco.

Tem lógica: o céu branco se assemelha a um tambor. É início de julho, e Franciane já está treinando para o desfile de 7 de setembro. Com dois meses de antecedência. Gente prevenida? Capaz! Não há nada mais importante na pequena e gelada Bom Jesus, terra de 11,5 mil habitantes, a 238 km da capital gaúcha, nos Campos de Cima da Serra. A trupe marcha de noite pela Avenida Manuel Silveira de Azevedo, onde será o palco da apresentação das três escolas do município. Disposta em cinco filas, interrompe o trânsito reproduzindo a trilha do filme A Pantera Cor-de-Rosa.

A perda de tempo soa estranha para moradores de Porto Alegre como eu, mas absolutamente normal aos filhos do Interior. Os motoristas não reclamam, sequer buzinam, compreendem o benefício terapêutico do triângulo, do tarol, do bumbo e do surdo. O pessoal assiste à movimentação pela janela com reverência. Alguns não controlam a nostalgia ou a corujice, e aplaudem.

– Ai, me dá um aperto no coração, é uma maneira de amar de novo a menina que fui – desabafa Neusa Monteiro Costa, 57 anos, uma das que esperam a banda passar.

Os instrutores são ex-alunos. Não suportaram o exílio das cadências e pediram para voltar na condição de voluntários. Dionathan Silveira, 17 anos, é o que segura a baliza, sopra o apito e põe em ordem a rapaziada.

– Não preciso gritar, o respeito vem da emoção.

Kaiube da Silva, 14 anos, concorda com o professor. Finge coriza ao falar. No fundo masca chiclete para não ser contagiado pelo choro. Sua carência some com os golpes agudos da percussão.

– Aqui é o único momento que recebo elogio durante o dia.

A banda atravessa as principais ruas do Centro até desembocar nas escadarias da Paróquia Senhor Bom Jesus.

A diretora da escola Carli Varela de Oliveira, 46 anos, entusiasma as atividades fora do ginásio, das 17h30min às 19h30min.

– É bom que os pais vejam seus filhos empenhados, para tomar vergonha e não faltar no Dia D.

Ela diz que a música é a recuperação de conceito que realmente funciona. Desperta a criatividade dos estudantes com notas baixas.

– Quando alguém está mal, se entra na banda, melhora. Onde se assimila a força do grupo: se um desafina, todo mundo erra. Aprende-se a cuidar do outro.

Tento me aproximar de Kathleen Tais da Silva, 14 anos, menina tímida que toca caixa lá atrás no agrupamento. Faço perguntas, e ela não responde. Descubro que ela não escuta nada: é portadora de necessidades especiais auditivas. Sua voz é bonita, doce, ela lê os meus lábios.

– Sigo a vibração. Meus olhos tremem por dentro com as batidas – explica.

Tem lógica: as pálpebras são sensíveis ao som, assim como sensíveis aos flocos de gelo.


– A banda inicia no inverno e termina no fim da estação. Aparecemos uma vez por ano no desfile. Como a neve em Bom Jesus – compara o instrumentista Jemerson Camargo, 18 anos.









Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 28, 2/7/2011
Porto Alegre, Edição N° 16747
Acompanhe nossos vídeos da banda escolar de Bom Jesus.

sexta-feira, 1 de julho de 2011