sábado, 31 de julho de 2010

GLOBO NEWS

Acompanhe minha entrevista no programa Espaço Aberto, da Globo News, exibida na noite de sexta (30/7). Converso com Edney Silvestre sobre meu novo livro "Mulher Perdigueira".

sexta-feira, 30 de julho de 2010

TESTE CÂMARA CASCUDO PARA CASAIS

Foto de Fabrício Carpinejar


Não tive sequer o direito de torcer o nariz, ele já nasceu torto.

Sou complicado para comer. Quando convidado a jantar, minha missão é descobrir antes o que será servido. Depois é que confirmo presença. Há mais opções no cardápio do que não gosto do que gosto. Vivo cheio de restrições e não é por problema de saúde, por uma justificativa séria, nada de intolerância à lactose e diabetes, não irei morrer por alergia; é chatice mesmo. Não aguento strogonoff, pizza então com strogonoff é um pesadelo, mais infernal se coberto de batata palha. É uma espécie de anorexia literária.

Meu paladar é incurável, enjoa com rapidez, recuso lasanha de frango, empada de frango, pastel de frango desde que encontrei um osso no meio do recheio. Nas festas e encontros sociais, o garçom passará reto com a bandeja.

Não admito comida fria. Partilho da turma do 'pode vir quente que estou fervendo'. Não cisco tábua e aperitivos, esnobo pãezinhos com caviar. Meu olhar é um micro-ondas girando.

Para ser meu amigo, o sujeito não deve mastigar vagem - é um princípio. Amigo que engole vagem vai me trair, mostra-se influenciável e disposto a qualquer negócio.

A namorada sofre comigo. Espia o bufê para conferir se uma panela irá me agradar. Volta, aliviada, com o sinal de ok, e me chama em direção à mesa. “Está livre, venha!”. É uma espiã dos pratos prediletos. Chega a traduzir as caretas e os engasgos.

Mas Cínthya me assusta. No fundo, ela me apavora. É o oposto. Depois de dois anos juntos, nunca vi recusar uma especialidade, desdenhar uma opção, insinuar nojo. Nunca confessa que odeia algo. E já viajamos pelo norte, nordeste, sudeste, sul do país. Enfrentamos tacacá, arrumadinho, buchada, macaxeira, sarapatel. Não testemunhei uma negativa, não exprimiu um "argh" ao longo do convívio.

Eu me enxerguei diminuído, sem nenhuma exigência maior. Suava frio com os pressentimentos; seria também vítima de sua caridade? Não admitia a hipótese de que ela comia qualquer coisa. Era uma verdade degradante, insuportável. Necessitava localizar um respaldo, uma esperança, o mínimo de seleção para me sentir eleito.

A sensação é que ela tinha servido no exército, que foi treinada na selva. Se acampássemos, faria uma fritada de insetos, um ensopado de larvas de moscas, um macaco ao molho pardo, e mastigaria fixando o alto das árvores para antecipar a caça do dia seguinte.

No desespero da madrugada, criei um diálogo sem pé nem cabeça. Nossa DR atingia à complicada e delicada fase "Luis da Câmara Cascudo":

- Amor, você comeria bago de bode?
- Já comi.
- Mas não aceitaria moela, né?
- Não sou contra.
- Língua, bochecha, rabo e tutano, não desce?
- Dá sim, deliciosos, é a base da alta culinária francesa.
- Mas tem oposição à galinha cabidela preparada no sangue?
- Que isso? É típica de Portugal. E aprovo pescoço, fígado, coração, asas e patas da ave.
- Rã não, jacaré não?
- Adoro.
- Amorzinho, me diz que não tolera dobradinha, me diz, por favor?
- Essa sim, odeio!

Dormi feliz. Sou, pelo menos, melhor do que o mocotó.

VIP



Publicado na Revista VIP
Agosto de 2008, p. 150
Edição 305, Ano 29, Nº 8

quinta-feira, 29 de julho de 2010

METAMORFOSE


Rolo Compressor tira a flauta do estojo e analisa a vitória do Inter em cima do São Paulo, na primeira partida da semifinal da Libertadores.

"Quanto ao Celso Roth, o que mais queremos é perder a língua no Alcorão do gramado. Ele é um assombro de humor e carisma, sua transformação só é comparável a de Lula de 1989 a 2002. Achamos que não deve ter sido mais uma obra de marketing do Duda Mendonça, mas aprendizado com os próprios erros. Não deixa de ser prazeroso supor que o Grêmio serviu de rascunho ao seu amadurecimento."

Entre em campo.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

A CLARIDADE É UM CAIXÃO

Arte de Cínthya Verri

A festa está acabando quando o pessoal não dança mais, somente pula. Não há mais como sincronizar o ritmo, habilitar coreografias, os braços dão socos imprecisos no ar. A cama elástica é a primeira fase do raiar do dia.

Após o pulo, bate a culpa pelos passos desengonçados, a vergonha diante do clarão das nuvens. Vem a segunda fase: o abraço coletivo, a formação de bolhas humanas.

Para disfarçar o desequilíbrio, os amigos passam a saltar enlaçados em rodinhas como nas formaturas. Inicia com um trenzinho, logo descarrila, transforma-se em autochoque, parte do grupo despenca e não volta.

Não é mais tempo de exibições, mas de sobrevivência. O desfecho surge com vogais gritadas. Na madrugada, a house music termina em Ilarilarilariê ó, ó, ó — é o que parece. Não sei se é um problema de geração, talvez hipnose coletiva, talvez neurônios queimados.

O que me desagrada numa rave é que ela põe fim à ilusão. Não poderia ser permitido ver de manhã com quem você ficou de noite. Provoca embaraços. A mulher pensa ter seduzido São Jorge e quem resta ao seu lado é o dragão. Como se manter abraçadinho? Como preservar as palavras de amor e devassidão? A jura apenas funciona no escuro quando a pálpebra é a boca.

De repente, a luz descortina os traços e desvendamos a companhia. Não se terá advogado perto, muito menos preparação psicológica. Alguns não disfarçam o espanto e soltam um “oh” de pântano.

Invadir a hora do café cria o impasse, além de expor o tamanho do estrago no corpo, simbolizado pela montanha de latinhas de energéticos, garrafas de vodka vazias e guimbas de cigarro pelo chão. Não veio o sono para se perdoar — a civilização começa com a reposição das oito horas de descanso.

Deveria ser proibido ultrapassar as seis horas da matina. No sexto badalo, é o momento de cortar o som, antes que a claridade revele a identidade secreta.

O sol não cega, tira a cegueira. Toda festa é um baile de fantasia porque você está bêbado e a sombra melhora o rosto. É necessário respeitar o transe. As filas no banheiro de manhã são metade de gente tentando fugir dos constrangimentos com seus parceiros.

Um turno ininterrupto de farra aniquila o mistério do dia seguinte. O suspense afetivo. Aquela sensação boa de desconhecido, de descobrir com quem se envolveu, armar a investigação no Google e no Orkut, definir se telefonará ou não.

As raves eliminam a chance de se despedir romanticamente, ou de se arrepender devagar e manter a educação.

Não vejo tristeza em acordar indeciso com os acontecimentos. Trauma é não dormir e enxergar o que ocorreu no ato, sem nenhum tempo para formar as lembranças.



Crônica publicada no site Vida Breve

sábado, 24 de julho de 2010

CHARGE

Por Elias


Diário de Santa Maria, Nº 2561
Santa Maria (RS), 24/07/10

sexta-feira, 23 de julho de 2010

O AMOR É FALSO QUANDO VERDADEIRO

Arte de Paul Klee

Minha preocupação é primeiro fazer Vicente comer, já que é o menor. Depois é que posso saborear a comida. Tenho que cumprir a paternidade para me atender. Sempre chego atrasado aos talheres, a sorte é quando a comida não esfria.

Nunca reparei direito em mim - ninguém procura o espelho em movimento. Cínthya é que me alertou que em todo momento descrevo a mastigação do filho. Descrevo não, narro, sou um comentarista esportivo de sua refeição. A cada cinco minutos, espio seu prato e teço um julgamento de seu desempenho.

- Olha o ovo.
- Não esquece a carne.
- Mais um pouco de purê.
- Come mais!

A namorada pretendia dizer que eu era chato, encontrou uma maneira para que suportasse a crítica. Ela é meu espelho em movimento. Falou de lado, contida, como se limpasse o canto dos lábios com o guardanapo:

- Deixe que as coisas sejam naturais.

Eu vi que ela acertou, eu incomodava, repreendia, comentava, educava sem parar. Quase doentio. Serei franco: absolutamente doentio!

Ao experimentar um momento alegre, estou confessando que é alegre na largada. Defino antes de concluir. Se o filho é gentil, escrevo carta de recomendação. Se surge nervoso, atravesso a madrugada criando teses. Não há descanso. O certo e o errado estão no sangue.

Sou um pai insistente e cansativo. Necessário, porém desagradável. Acho que nunca mais serei espontâneo.

Descobri junto dessa observação que o amor dos pais não é mesmo natural. É teatral. Histriônico. Parece falso quando autêntico. Por isso, irrita na infância, enjoa na adolescência, ocupa metade das análises nos consultórios durante a fase adulta.

Pai não tem rosto, mãe não tem rosto, são caricaturas. Traços rápidos para apressar a identificação.

Não conseguimos nos controlar. É reiterar um cuidado até ultrapassar a redundância, é não abolir nenhuma prevenção. Nasce o filho e mergulhamos num estado de pânico completo, numa carência interminável, numa provação incurável. Viramos bulas, cartilhas, manuais, guias, catálogos, explicando de novo o que foi entendido.

Só é natural quem não ama. Somos despojados quando não temos interesse. Atuamos por comandos: sim, não, e deu. Nenhum desespero, nenhuma miséria no abraço, nenhuma insistência.

O que me põe a afirmar que um casal enamorado é formado de péssimos atores. Vai trocar juras ridículas, alternar diminutivos e apelidos, escandalizar restaurantes com exclamações e adjetivos.

Quando a gente se emociona é artificial, uma afronta ao bom gosto.

Enxergar uma família feliz consiste num espetáculo bisonho. Os pais apertam, beijam, afofam, cutucam, gargalham, reclamam e soluçam mais alto do que é aconselhável.

A passionalidade é uma imitação. O afeto é uma dublagem. Queremos tanto provar o que sentimos que passamos da conta.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

O CONTROLE REMOTO É MEU!

Arte de Cínthya Verri


A mulher assumiu a maior parte das direções da vida masculina: a filial, a amorosa, a da casa e a da empresa. Não reclamamos: o mundo está finalmente em ordem e bem mais justo. Mas não aceitamos que a mulher deseje mandar na direção de nosso mijo. É demais, é autoritarismo, é extrapolar o poder. É entrar num dos últimos redutos da masculinidade, ao lado de matar baratas. É promover a extinção da espécie.

Ela vem com um moralismo de faxineira, uma censura de governanta, explicando que é fácil mirar no vaso, que não entende o descontrole, como despejamos a mangueira para o piso, professa o desleixo e a ausência de vontade.

Claro que não entende, faz xixi sentada. Desconsidera uma experiência inacreditavelmente diferente.

Conclui que é prender firme e centrar o ângulo, que é pouca a distância, elementar como bater um pênalti, e esquece a alta taxa de desperdício dos cobradores nos campeonatos.

Muitas mães tentam evitar a sujeira e ensinam os meninos a sentar na patente. É um travestimento perigoso. Não percebem o mal que estão cometendo, gerando problemas na sexualidade dos filhos devido a uma mania de limpeza. Afetará as posições sexuais no futuro e aumentará a preguiça na busca pelo prazer.

A mulher confunde o mijo do seu parceiro com um esporte: dardo ou arco em flecha. Confia na preparação existencial, na força psicológica do exercício e do condicionamento. Falta apenas aconselhar a contratação de um personal trainer e treinador, e incitar a desenvolver o talento e competir nas olimpíadas domésticas. Ficaria estranho entrar no banheiro acompanhado, logo seu varão sairia com camisa cavada e piercing no umbigo.

Receio que instale câmera na descarga para acompanhar as investidas ou, quem sabe, crie uma autoescola de mijo, com um mínimo de 20 aulas práticas e aprovação em psicotécnico a partir de desenhos, placas e passo a passo.

Ela vive dando orientações que desse jeito não dá para continuar. Reclama da tortura de sentar na tampa úmida, do cheiro de rodoviária e recorre a uma filosofia preventiva de infecção hospitalar. Usa, inclusive, o golpe baixo de alardear que não se pensa na bunda da criança que ocupa o trono em seguida.

Por que ela não defende a limpeza depois da bagunça, em vez de insistir para que não aconteça o irremediável?

Não é que o homem distorce a pontaria quando está bêbado. Ele é naturalmente bêbado. Nasceu embriagado, amaldiçoado a segurar um misto de rojão e peteca. De repente, está mole e no meio endurece e muda a frequência da velocidade. Não há monotonia nos movimentos. Não há freio nas veias. É uma guinada abrupta no planejamento do ritmo. Os pilotos mais experientes aguentam a alternância; de qualquer forma, o balanço do final atinge a todos. A balançadinha estraga a operação até então impecável, limpa, escorreita. A saída desmoraliza o andamento higiênico da mijada. O suspiro desordenado do jato acaba impulsionando a venda dos desinfetantes. E sofre muito mais quem tem fimose ou o contrário, aquele que foi circuncidado, sem pele para conter a pressão.

Se a esposa e namorada está magoada com o caos, peça que coloque mictório no toalete. Nas situações extremas, uma banheira para não penar mais com o assunto.

Caso não funcionar, sugiro que segure um dia para descobrir o que significa. Daí acho que vai virar outra coisa e tudo continuará como está.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 20 de julho de 2010

O AMOR NÃO É CLICHÊ



Curso Inédito na Perestroika

- Porto Alegre (RS) -

Escrever sobre amor é o maior desafio da literatura. São grandes as possibilidades de cair no clichê e esbarrar na auto-ajuda. Depois de passar por esse teste, qualquer criação fica mais fácil.

O curso inédito pretende trabalhar a confissão e os relacionamentos na articulação de experiências de estilo. A cada aula, haverá exercícios inusitados e desafios para despertar a criatividade.

A inspiração surgirá da contação de histórias e da combinação gradual da autocrítica e do humor. O aluno receberá ajuda para selecionar o que tem importância literária daquilo que foi vivido, incentivado a despertar evocações e lembranças secundárias, comparações e relações imprevisíveis do cotidiano.

O objetivo é compreender a própria vida como uma invenção, a partir de célebres cartas de amor e de passagens de clássicos. E, com base na tradição, investigar as tendências do comportamento diante dos dilemas amorosos.

É um misto de escrita criativa, terapia, curso de sedução e consultório sentimental aplicado na formulação de tramas e poemas e que busca identificar pontos de vista originais.

No total, são 10 encontros. São 9 encontros às segundas-feiras e 1 numa quarta. Sempre das 20h às 22h30.

Aula 1: 23/08
Aula 2: 01/09(quarta)
Aula 3: 06/09
Aula 4: 13/09
Aula 5: 27/09
Aula 6: 04/10
Aula 7: 11/10
Aula 8: 18/10
Aula 9: 25/10
Aula 10: 01/11


Local
Sede da Perestroika
(Rua Furriel Luiz Antônio de Vargas, 250/1302, Porto Alegre/RS)

Inscrição aqui.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

OS OUVIDOS DA PAREDE

Arte de Pisanello

Não compreendo a educação, o pudor, o medo de incomodar, o receio de colocar quem a gente ama na parede. Eu emparedo desde o princípio e fuzilo: ficará comigo?

É o modo mais sadio para não se enredar no jogo dos amantes e na duplicidade da infidelidade.

Consultório Poético descarrega sua munição. Meu conselho aqui.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A PIOR INVENÇÃO DA HUMANIDADE

Arte de Magritte

Eu tenho pouca compaixão, vejo que é uma emoção ruim, mesquinha, em que a gente sempre se sente melhor do que o outro. Não que me falte mesquinharias, mas não é o caso. Eu sou superior a raríssimas coisas. Uma delas é capinha de guarda-chuva.

Enxerguei a capa no estacionamento da universidade. Assemelhava-se a um estojo, o que mobilizou o arpão dos dedos.

Para agachar na minha idade, a curiosidade deve pagar o sacrifício. Não sobreviveria aos tempos da monarquia, onde toda vez em que o rei passava havia a obrigação de beijar o chão. Eu seria guilhotinado devido às câimbras.

Voltando a capa. O objeto atiçou a gula. Poderia conter lápis, canetas coloridas, apontador, borracha, uma escola inteira no pano. Já dividiria com os meus filhos e levaria uma lembrança para rechear as gavetas do escritório. Mas fui levantar, notei o que se tratava e repeli de volta, sinceramente frustrado. Disse que nojo, acentuando a agressividade da decepção, como se encontrasse um preservativo usado. Fui enganado, uma capinha! Ninguém no mundo irá levantar aquela capinha, a não ser que confunda como eu.

Não duvido que esteja repousando entre as vagas dos carros há um mês. Sequer um arqueólogo, daqui a dois mil anos, achará valor neste pertence. Largará os pincéis, concluindo que não recompensa o trabalho de escovação.

Depois da cerveja sem álcool, a pior invenção da humanidade é a capinha do guarda-chuva. Aposto que o energúmeno autor da façanha nem patenteou sua criação. É a mais ridícula. Uma embalagem canhestra. De natureza descartável para cobrir algo que já é descartável. Por que proteger justo aquilo que mais se perde na vida? Será que é para fingir que não esqueceremos o guarda-chuva no ônibus quando para de chover? Ficaremos mais nobres? Ou será que confiamos que a classe média e baixa está separada pelo adereço? Será um brasão de camelô?

Não é prática tampouco. Assim que se usa a primeira vez, some sua serventia. Não há como enfiar o volume do pano e as varetas de volta para a escuridão do útero. É mais uma esperança do que uma realização. Não conheço um vivente que tenha conseguido. A cabeleira estará espetada, o cabo torto, pior do que enrolar headphone num bolo coeso e diminuto como o que saiu da loja. Não experimente, será um esforço em vão. Tão complicado quanto restaurar o hímen, o cabaço.

Mas a capinha é manhosa, não resistiria se não contasse com poderes especiais. Não representa um produto de fácil eliminação. Desperta a compaixão: não gostamos dela, porém não gostamos de nos desfazer dela. Traz um egoísmo, uma culpa educada. É como chiclete, acabou o sabor, não pretendemos sujar a rua e soar como porco e forjamos sua queda involuntária. Talvez manter a capinha seja preservar a ilusão de que o guarda-chuva é novo.

É a mesma angústia daquele que não se desvencilha do papel-presente porque acha bonito. No fim do ano, vai acumular uma papelaria no armário, faltando aniversário e amigos que atendam ao farto mostruário de estampas. Não tem sentido: quem guarda os papéis de embrulho é avarento e não costuma dar presentes com regularidade.

A capinha é a prova de que somos viciados na inutilidade, o que aumenta consideravelmente minha chance de ser feliz.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

FONTANA DI TREVI

Arte de Cínthya Verri


É achar uma fonte e pretendo viciá-la em desejos. Intoxicá-la de promessas. Chantageá-la com meus pedidos absurdos. Eu me transformei num traficante de milagres, num aliciador de degraus e lajes.

Não tenho pudor. Às vezes cometo gafes e despejo a niqueleira em santuários de Nossa Senhora ou em piscinas de plástico. Qualquer água parada é motivo para depositar os centavos. Persigo os tanques como um Aedes aegypti da superstição.

Assim como crianças gostam de lançar farelos de pão aos patos, jogo moedas aos meus sonhos.

Todo lugar é Roma, todo aquário de pedra é Fontana di Trevi.

É uma fixação messiânica. Os guardadores de carro que me perdoem, mas não nutro simpatia pela superfície, deixo as economias para as profundezas e os ralos; os santos têm que mergulhar, abrir os mariscos de metais, lustrar efígies.

Minhas orações pedem hidromassagem. Não me atraem velas e candelabros, cera e fumaça, mas espuma, cheiro de cloro, limo.

Não controlo a compulsão. É meu bingo aquático. Meu porquinho flutuante.

Não sou nem um pouco exigente. Já ataquei fontes de hotel, de praça pública, de loja de móveis, cascatas de motel. Pode ser um poço artesiano, não faço cerimônia para rezar.

A água é o único mendigo em que confio. Não penso muito. Não reparo se é uma escultura de artista reconhecido ou se é um dormitório de tartarugas quase extintas, escolho a maior moeda, viro, fecho os olhos e arremesso. Ao escutar um baque seco, percebo que errei a pontaria. Não recolho a mesma moeda, o pedido sairá ao contrário, azar na certa, preciso usar outra e outra até acertar o alvo. E me acalmo com o splash na espuma. Dou três meses para a realização da prece, costuma ser mais rápido que o Procon.

Decidi partilhar o segredo com a minha namorada. Jurei que Cínthya ficaria sensibilizada. Estávamos numa pousada em Gramado, era domingo, friozinho, a luz com a boina da neblina, uma atmosfera absolutamente romântica; enxerguei uma fonte entre as pedras, ri daquele anjo condenado a uma eterna cusparada, mas me concentrei na confissão.

Aproximei-me de seus ouvidos:

— Vamos jogar uma moeda na fonte.
— O quê?
— Fazer um pedido de amor?
— Isso não é uma fonte de desejos.
— É que ninguém ainda descobriu o poder religioso desse ponto.
— Para de fiasco.
— Quando a gente iniciar a prática, outros verão a moeda no fundo e seguirão jogando, e logo teremos uma romaria de fiéis. O destino da fé é virar ponto turístico.
— Mas há peixes ali?
— Não vamos machucar, eles fogem dos objetos, são espertos.
— Não, não é justo.
— Tenta, por favor, por mim…

Diante da implicância, Cínthya se posiciona e joga de costas uma moeda de R$ 1. Apostou bem alto em nossa longevidade amorosa. Numa casa espaçosa, com quintal e varandas. Numa lua-de-mel nas Ilhas Gregas.

Corro para ver onde caiu. Não digo para ela. Um peixinho dourado engoliu o nosso casamento.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 12 de julho de 2010

SONHO MATERNO

Arte de Klimt


O sonho de toda mãe mais velha é segurar a mão de seu filho adulto na rua.

Que seu rebento partilhe um pouco de sua pele durante cem metros.

Casado, separado, divorciado, tanto faz o estado civil, se está com cavanhaque ou penacho, se é emo ou cowboy, ela tenta reaver os preciosos momentos da infância em que o buscava na escola e não havia vergonha para entrelaçar as palmas em público.

A adolescência criou uma barreira invisível e intransponível que não permite se aproximar do filho com naturalidade. Não é fácil puxar seus cotovelos para perto. Abraço acontece em data comemorativa, e mão é somente em caso de doença.

Desde que ele arrumou mulheres e passou a voltar tarde, ele não dá mais a mão fora de casa. É um tabu, um medo de ser contagiado pela emoção, um atentado ao pudor.

Seu menino crescido pede distância nas caminhadas. No máximo, oferece a argola dos braços, como se fosse uma muleta amparando a lentidão dos passos.

O mais alto desejo é receber os dedos do filho como um anel de brilhante, que os vizinhos reconheçam os cuidados de uma vida dedicada à maternidade, que ela sirva de exemplo às próximas gerações, provoque ciúme nas escadarias das igrejas. É uma recompensa social, é retirar finalmente o Fundo de Garantia doméstico.

E não vale em faixa de segurança, onde a mãe se sentirá inválida; a aspiração depende do espaço largo das calçadas e da curiosidade indiscreta dos passantes.

Toda mãe madura tem esse sonho, que é o pesadelo do filho.

Já observei a mãe Maria Elisa de 70 anos me enganchar com suas unhas pintadas de rosa antigo. São décadas insistindo, teimando, chega a irritar sua obsessão, que mania!, ela sabe que não gosto. Aproveita alguma distração, um riso à toa e espicha o braço. Talvez cogite que é o momento, que finalmente me abrirei de novo ao convívio. Eu recuso, fecho metade do punho, digo que esqueci o celular em casa e preciso voltar. Simulo desinteresse e que não prestei atenção. Entre eu e ela, fingimos que nunca existiu a atitude, apesar de sempre existir.

Andar de mãos dadas com ela é aceitar a pecha de filhinho da mamãe, é acolher o estigma eternamente. Não serei levado a sério. O que minha namorada vai pensar?

Não posso arriscar, é o equivalente a trocar a gravata pelo babador. Perderei a reputação no banco e o respeito das lotéricas. Alguns dirão que sofro de Complexo de Édipo, outros a chamarão de sem-vergonha abusando de jovenzinhos.

Acho que conseguiria adiar a crise diplomática para mais alguns anos, mas o maldito irmão Miguel quebrou o protocolo. Traiu a família, o acordo silencioso, o inventário dos gestos.

Além de levá-la ao cinema, percorreu o shopping inteiro apertando sua mão, inclusive na frente das lojas do Grêmio e do Inter. Eu me tornei insensível, extraviei sua herança, com nenhuma chance de retomar a posição de dileto. Vou procurar o perdão beijando meu pai no calçadão da Rua da Praia.

Publicado no jornal Zero Hora
Editoria Geral, p.2, 12/07/2010 Edição N° 16394

sábado, 10 de julho de 2010

INSÔNIA

Veja a entrevista completa concedida a Jô Soares no programa da Rede Globo na madrugada de sábado (10/7).


Parte I


Parte II


Parte III



Parte IV

sexta-feira, 9 de julho de 2010

GUARDE-ME EM SEU COLAR

Arte de Marie Laurencin


Ela põe os brincos na cômoda para não me machucar, assim como aparo a barba para não esfolar seu rosto.

Estamos desarmados.

Já sabemos o que vai acontecer, não sabemos como, nunca sabemos como. Ela pode estar mais pura ou mais sarcástica. Pode raspar os dentes antes de beijar ou me contornar com a língua e deixar que meu gemido indique o lugar de sua boca. Posso receber sua precipitação ou sua paz.

Quando transo com minha mulher, temo perder a memória. É para esquecer datas, lugares, nomes. Somos desmemoriados pelo excesso de desejo.

A memória é covarde, não entra em algumas cidades, a imaginação segue sozinha, como sempre.

O que mais me excita é que ela não tira o colar. Nua, branca, sinuosa, resiste com o colar. Já largou a calcinha e o sutiã, e não o colar. Ela é impetuosa, pisa em suas roupas quando vem em minha direção, mas não se afasta do colar. Não se esconde nas cobertas, pede que eu a olhe, que eu a admire, que eu tenha consciência com quem estou lidando. Não há timidez mais, não há timidez na fome. Ela me encara com suas contas no pescoço. Já nos conhecemos demais e isso aumenta o mistério. A intimidade é perigosa porque é capaz de ferir para aumentar a fragilidade. A surpresa somente existe na intimidade. Intimidade é a confiança dentro do medo.

Ela não sobe e desce. Subir e descer não requer arrebatamento - é angústia dos apaixonados. O que ela faz é diferente: ela anda pelos lados. Ela ladeia em mim. Monta em círculos. Como se a cama não tivesse fim ou borda. Como se minha nudez fosse a sua e ela se devolvesse.

Não aumenta os movimentos, desobedece ao vento, diminui, desacelera. Brinca em se despedir. Como se alguém fosse entrar naquele momento pela porta. Como se ouvisse um barulho estranho e parasse. E não chega ninguém, e rebola, os lençóis perto são sua saia, ela me desafia a ver o que está vendo - nos assistimos por um tempo para criar saudade antes da lembrança.

O colar balança, seus seios seguram minhas mãos. Não é aturdida de pressa, não pretende se livrar do meu cheiro, ele me agride com as palavras e me acalma com seu movimento. São duas mulheres conversando com o meu corpo, brigando pelo meu corpo, indecisas, a que liberta pela fala e a que me prende pelas pernas. Eu não entendo para onde vou, e me seguro na confusão.

Não pergunto quando vai gozar. Ela morderá o colar. Morderá com força. Nada mais deslumbrante do que uma mulher mordendo o colar para não gritar. Um dia ainda verei as pedras partindo de seus olhos.

Seu colar é minha coleira.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

OUVINDO CONCHAS

Para Cínthya Verri
Arte de Miró


Uma amiga acabou de ser mãe. Frase engraçada. Mãe é nunca acabar de ser.

Mirian mudou completamente o rosto. Está mansa, ela que é conhecida pela rondas entre nomes e novidades. Permanece no mesmo assunto sem nenhuma indisposição. Aguarda que eu termine a pontuação para comentar algo. Fico até intrigado, logo ela afeiçoada à sobreposição de temas e gula insaciável por fofocas.

Achou em si uma serenidade que poucos conhecem. A maternidade é a mais rigorosa espera que há na vida. Depois dela, a gente percebe que o amor platônico da adolescência era superficial. A distância entre as gerações era superficial. Qualquer frustração era superficial.

Uma ilha deserta torna-se insignificante diante do oceano ilhado.

Não estou me referindo à gestação, aos nove meses, à laboriosa arquitetura do quarto, das roupas, da véspera.

A paciência começa agora quando Artur nasceu. É conviver com alguém que não expõe diretamente o que procura e exige nossos rompantes de adivinhação. O bebê se expressa pelo choro. E o choro não é sempre igual. Ele se comove pelo riso, pode ser cócegas. Existem tantas nuances em seus lábios como o leque para o teatro Nô ou as castanholas para a dança flamenca.

Toda mãe gostaria que o filho já falasse. Mas não adianta: ele não fala. Não irá pedir leite, não irá comentar que dormiu mal, não recomendará que se desligue a televisão ou que os pais parem de drama. Não dá para saber se está doendo, se está confortável, se está aquecido, se está com fome, se está incomodado. Deve-se tentar uma coisa e outra, as coisas ao mesmo tempo. Pega-se no colo para conferir a reação, deita-se no berço para controlar o movimento.

É possível montar um histórico dos sinais. Debruçar-se em seus braços indefesos, prevendo uma sequência, um ritmo, uma melodia. Formular uma continuidade dentro das necessidades. É possível criar horários, colher hábitos e condicionamentos, porém nunca ter certeza absoluta do que ele sente. É dormir com a incompreensão do cuidado: Será que ele vive feliz? Trata-se de uma solidão curiosa, uma espécie de incomunicabilidade comunicativa: oferecer tranquilidade ao não desfrutar da própria tranquilidade.

O desejo é ouvir um par de vocábulos para se acalmar. Um aviso de que corremos no caminho certo, de que somos vocacionados; um pouco desajeitados, mas vocacionados.

A vontade é que a criança declare publicamente que é amada.

Não acontece, não vai acontecer.

Pela primeira vez, somos absolutamente incompetentes. Tanto faz se a mãe é aeromoça ou diplomata e conversa em cinco idiomas. Temos que recuar aos gestos e inclinar o corpo para atender uma urgência. Recuar para a absoluta falta de palavras.

O bebê está encarando e pedindo uma solução. E agora? Não é adequado chamar a avó, minuto a minuto, para nos acudir. E agora? Experimenta-se um misto de precipitação e generosidade. Talvez a precipitação seja generosa. Talvez seja loucura de nossa parte, ansiedade, inventamos casualidades e o menino apenas se espreguiça na colcha fofa.

É fazer um gesto e ver que não é aquilo, armar um novo gesto e não ser aquilo. A mãe recente é uma mímica acenando com os cílios para aviões.

Mirian irá se acostumar com o silêncio. Cada vez mais. Descobrirá que ouvir não é entender. Entender depende do esforço da imaginação. Seu filho já tem o que precisa: uma boca para ler.




Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 127, Número 200
Julho de 2010

quarta-feira, 7 de julho de 2010

JÔ!


Sou o convidado do Programa do Jô na noite dessa sexta (9/7) para falar sobre Mulher Perdigueira. Foi o legítimo vodu da ironia, um alfinetando o outro sem parar. Mais não adianto. Não perca a guerra de risadas e provocações.

DUPLO SENTIDO

Arte de Cínthya Verri


A sensualidade é a infância da vida adulta. Ou alguém ainda duvida que sexo é brincadeira?

Uma palavra certa e a vontade não larga mais o pensamento. Quando a namorada sugere que é lasciva, eu não me contenho, junto imediatamente as pernas e fecho o tórax. Lasciva é uma palavra muito rápida, entra direto no sangue. Derrubo minhas defesas também diante de “assanhada” e “safada”. Um amigo não pode escutar lúbrica que abandona sua carreira.

A audição se desespera com a realidade paralela dos vocábulos. Sou da turma do sexo falado. Não me permito pecar quieto. Saio para pescar na conversa.

Gemer em silêncio somente na masturbação, tampouco partilho da crença da música ao fundo. Reivindico a gritaria, as frases doidas, o acinte animal. O ritmo vem unicamente da respiração e da falta dela.

É um efeito colateral da minha geração. O carro foi o primeiro quarto, o sofá foi o primeiro hotel. Não encontrava tanto conforto para transar, necessitava arretar semanas e convencer a menina que valeria a pena, que só seria um pouquinho, que deixasse entrar. Aproveitava a saída dos pais para explorar a solidão lisa do seu corpo. Era um suspense, uma vertigem. Qualquer ruído na porta modificava o embalo da cintura. Procurava me manter perto das almofadas. Desde a adolescência, fui preparado para o flagrante. Cresci sob a pressão da maçaneta.

Sexo não acontecia com tranquilidade, despir dependia do pôquer da dicção. Falava algo bonito para retirar o sutiã dela, falava algo perigoso para arrancar a calça, amor eterno somente com a calcinha, e ainda existiam frequentes recuos de pudor. Muitas vezes, ela terminava mais vestida do que quando a gente começava. Nem sempre dava certo. Uma frase oportunista e indiferente puxava o freio de mão. Ela deveria entender que eu amava, que não me aproveitava de sua ingenuidade, que permaneceríamos juntos. Sexo exigia convencimento, persuasão erótica, promessas de Lagoa Azul.

Brincar com o duplo sentido continua um jogo favorito. Enrijeço na disputa de insinuações. É dizer e não dizer, é despertar o lençol na toalha de mesa, é atiçar a curiosidade dos dentes com a língua, pesar a pálpebra para espiar o vão da voz.

Tenho uma elasticidade incomum para formar dimensões alternativas. Não me contento com nada direto, tipo uma mulher confessando que vai beber todo o chantilly do café. Isso é pornografia. Viajo além. Se ela comenta que procura um mouse retrátil, fico louco. Retrátil? Eu me ponho em movimento. Já quero ser retrátil.

O Aurélio é meu Kama Sutra.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 6 de julho de 2010

CLÁUDIA


"Se uma mulher faz um barraco, pode ter certeza que foi o homem que trouxe a favela", afirma o escritor gaúcho Fabrício Carpinejar na introdução do divertido Mulher Perdigueira (Bertrand Brasil, 39 reais), sua nova coletânea de crônicas. Com humor ferino e esperto, Carpinejar, que ganhou o Prêmio Jabuti 2009 por suas histórias curtas, defende o compromisso até o fim, de preferência com a mulher amada sempre alerta, como um cão de caça. Garantia de boas risadas.

Publicado na revista Cláudia, julho de 2010 Nº.7 Ano 49
Seção "Os livros que a gente ama", por Carla Aranha, p. 76

sexta-feira, 2 de julho de 2010

O DRAGÃO DA MALDADE E O SANTO GUERREIRO

Arte de Chen Rong

A tatuagem é o horóscopo do corpo.

Não há cantada mais previsível do que exclamar que “linda sua tatuagem”. O passo seguinte é “posso ver?”. Se ela estiver escondida, o assanhamento cresce.

A vaidade anula a reação da vítima, nem percebe a cafonice do galanteio e mostra os traços. Cessa o que está fazendo para arregaçar as mangas no meio da rua e oferece o braço e os ombros para assegurar uma maior visibilidade ao espectador.

A alegria pelo reconhecimento do bom gosto apaga a consciência de que todos (todos!) fazem igual. Ocorre uma ingenuidade que entorpece o senso crítico. Uma adoração da marca que embaralha a inteligência.

Quem é tatuado se sente correspondido e fala para um estranho o que nunca ousou contar nem para si. Detalha onde realizou e o que pretende transmitir com a inscrição.

Toda tatuagem é uma tese acadêmica, com resumo pronto. Pode ser um ideograma, uma estrela, uma borboleta, um personagem infantil, linhas tribais, existe sempre uma filosofia de vida por detrás, uma explicação, uma predestinação biográfica. A tatuagem é catarse na certa. Terrível é que a intimidade forjada nunca é desmascarada. Não são identificadas as segundas intenções.

Converteu-se realmente no novo signo. Mais usado do que mapa astral, ascendente, lua e forças astrológicas no boteco e nas baladas. Qualquer um recorre a esse recurso na abordagem, não precisa conhecer a língua portuguesa para seguir em frente. Virou uma praga do vestiário e dos clubes sociais.

Na segunda piscadela, vem o diálogo pronto, o mingau da aproximação. A ordem segue o roteiro imutável de um vendedor de seguros, o deslumbramento inicial – uma tatuagem, olha só – que vira interesse comercial – me conte mais?.

A observação corre na estrada da insinuação, desembocando no convite ao strip-tease verbal. Uma tatuagem chama a outra que chama outra, e aquilo que começou com uma fotografia isolada termina em calendário de borracharia.

A cantada é genuinamente brega como “Sandra Rosa Madalena”, de Sidney Magal. Não difere coisa alguma do questionário dos Paulo Coelho da pegação: “Está machucada?”/ “Por quê?”/ “Pois você é um anjo que caiu do céu”.

Feliz era minha infância, em que a mulher tinha que possuir uma cicatriz para provocar curiosidade. Tinha que possuir uma pinta para gerar suspense. Não era simples seduzir. Os cafajestes não gozavam de facilidades como hoje.

Venho sofrendo com as tatuagens, não as minhas, da namorada. Estou me transformando em Bentinho vigiando Capitu. Só que os olhos de ressaca são meus.

Era fã de carteirinha dos desenhos na pele, a chance do mundo inteiro ser sardento – o sardento é um iluminado de nascença. Mas venho mudando de ideia. Ela já tem cinco tatuagens, atraindo o cerceamento de vigaristas. Em seu corpo, é possível encontrar um lagarto e uma inscrição “honrar la vida” de Mercedes Sosa cobrindo a lombar, uma ovelha negra homenageando Nietzsche na canela direita , um “Old School” com o lema em inglês “chegar lá é metade da diversão, manter-se lá é metade da batalha” e um Jack de Tim Burton na perna esquerda. E vou avisando ao leitor para que não pergunte a ela.

Eu apenas fico feliz no inverno. Quanto mais frio e casacos, menores a enxaqueca e a preocupação. Durante o verão, não vejo escapatória, devo aturar a nuvem de insetos em cima de sua brancura, uma linha sempre escapará das roupas, espécie de isca que denuncia o cardume silencioso da tinta.

O que me irrita é que o sujeito apaga a minha existência. Mesmo com os beijos, abraços e mãos dadas, é capaz ainda de me confundir com irmão ou amigo gay.

Na última vez, um jovem desmiolado destacou a tatuagem de Cínthya diante da plateia de meu ciúme.

Logo repliquei: – É minha namorada.

Ele encabulou. Não deixei por menos, levantei a barra da calça para que ele observasse meu Dragão cuspindo fogo.

– Não vai elogiar?


Publicado no jornal Zero Hora
Editoria Geral, p.2, 02/07/2010 Edição N° 16384