terça-feira, 31 de janeiro de 2012

EU JÁ SABIA

Arte de Wilfredo Lam

Teremos sempre gente nos julgando.

Os vizinhos, os parentes, os colegas de trabalho, da academia e do inglês, quem nos tirou no amigo-secreto, quem nos viu no cinema.

Chamados para opinar, vão demonstrar uma intimidade surpreendente.

Não é paranoia, todos só estão esperando que eu faça algo realmente grande para confessar que me conheciam.

E pode ser agradável e pode ser nocivo, não importa, as maçãs podres partilham a cesta com as frutas sadias, o joio e o trigo são irmãos gêmeos, a maldade e a bondade são mais parecidas entre si do que o amor e a amizade.

Diante de uma atitude boa, dirão que já sabiam que eu era sinônimo de retidão.

Diante de um fato ruim, também dirão que já sabiam que eu não prestava.

O sonho da maioria é desfraldar a faixa: “Eu já sabia, Galvão”.

O fofoqueiro deseja ser profeta, pretende dar a notícia em primeira mão seja lá qual for e como for.

Os conhecidos guardam meus antecedentes negativos e positivos numa pastinha na área de trabalho do Windows, prontos para a impressão.

Ao me tornar santo, não será complicado encontrar testemunhas dos meus milagres. Citarão coisas inacreditáveis. Quando pulei o muro de três metros da Escola Imperatriz Leopoldina aos 11 anos e fui suspenso, avisarão que nada me aconteceu porque meu corpo é protegido pelo Nosso Senhor Jesus e que a direção me castigava injustamente e não compreendia meu dom.

Ao me tornar louco, comentarão que o mesmo pulo já dava provas da possessão do demônio, que meu apelido Chuck indicava a liderança negativa na turma, que merecia expulsão da diretora.

De um lado da moeda, a santidade. De outro, a ausência de sanidade. Em ambos, a mesma efígie.

Somos influenciáveis. Há a ânsia em definir o próximo para nos poupar da encrenca de assumir as próprias ambiguidades.

Em caso de me converter num herói salvando criança de atropelamento, a opinião pública tecerá elogios de minha conduta familiar. Lembrará do amor incondicional aos filhos.

Na hipótese de atropelar alguém, o público me enxergará como uma máquina mortífera desde a infância. Desde quando andava de triciclo e amassava formigas. Puxarão os pontos da carteira de habilitação, e o zelador do meu prédio, Carlos, descreverá minhas dificuldades para tirar o carro de ré.

Teremos sempre gente nos condenando. Viver é uma execução sumária.

Certo que, um dia, termino no paredão.

Pelo menos, vou pintando os muros de meu fim. Verdes de esperança.

Mas não faltará amigo supondo que isso é ironia.



 



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 31/1/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 16964

RETRATO FALADO DO MENTIROSO


Arte de Jim Dine

Como sabemos que o homem está mentindo?

- O mentiroso é detalhista, responde aquilo que não foi perguntado, está tentando se convencer da história, perde-se em pormenores e curvas desnecessárias.

- O mentiroso fica romântico fora de hora, generoso de repente.

- O mentiroso baixa os olhos de vergonha e fala para os lados.

- O mentiroso somente desmente uma história quando há uma mentira maior para esconder.

- O mentiroso pede desculpa fácil (não se importa mesmo com aquilo que diz).

- O mentiroso ri de nervoso, ri antes da piada.

- O mentiroso é ambicioso: deseja uma mentira maior do que a anterior. Ele tropeça em seu próprio sucesso.

- O mentiroso nunca é evasivo, sempre tem certezas.

- O mentiroso se julga melhor do que os outros. Pensa que sairá impune, que ninguém é capaz de descobrir suas artimanhas.

- O mentiroso inventa tudo (que é um erro, o certo é contar algo falso a partir de algo verdadeiro).

- O mentiroso, tão preocupado consigo, não conversa. É um monólogo.

- O mentiroso sempre está se favorecendo com a trama, ou é a vítima ou é o azarado. Não há mentira que prejudique seu autor.

- O mentiroso acredita que escutar é acreditar e vai falando sem questionar nada.

- O mentiroso põe a culpa pelos atrasos nos amigos. Mas esquece de avisar os amigos.

E a mulher? O que ela faz?

Quando a mulher mente, conta a verdade. Como se fosse uma brincadeira.

Escute meu comentário na Rádio Gaúcha de terça (31/1), no Programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola:

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

SUPERANDO OBSTÁCULOS

Com a ajuda dos pais, crianças podem reverter distúrbios de desenvolvimento ou aprendizagem
Lívia Meimes
livia.meimes@zerohora.com.br


Em sua coluna de 17 de janeiro em Zero Hora, o escritor Fabrício Carpinejar conta como enfrentou sérias rejeições quando pequeno, que não conseguia ler e escrever, que a professora recomendou que desistissem de alfabetizá-lo e que o colocassem numa escola especial. O laudo de um neurologista recomendava tratamento, remédios e isolamento, já que ele não acompanharia colegas da faixa etária.

Apesar dos diagnósticos, Carpinejar relata como, com o amor e a insistência de sua mãe, venceu os obstáculos e se tornou um escritor de sucesso.


A coluna Retardado aos oito anos emocionou muitos pais e avós no Estado. Carpinejar recebeu cerca de cem mensagens de leitores com felicitações pelo texto, às vezes acompanhadas de depoimentos de gente que enfrentou ou está enfrentando as mesmas dificuldades (leia alguns relatos ilustrando a matéria).

Qualquer criança em idade escolar está sujeita a não processar as informações que recebe da maneira esperada, podendo apresentar problemas de leitura, escrita e pronúncia das palavras, ou ao prestar atenção em sala de aula. Isso não significa, porém, que ela precise conviver negativamente com o rótulo de portadora de distúrbios de desenvolvimento ou de aprendizagem.

Especialistas na área da educação atualizados com os parâmetros teóricos mais modernos concordam, contudo, que receber uma informação como essa de forma prematura, e, muitas vezes, de maneira equivocada, pode causar estragos para o resto da vida. Novos paradigmas apontam para a ideia de que ninguém é menos inteligente por tirar nota baixa em matemática, ou por não conseguir decorar a tabela periódica: o próprio conceito de inteligência está em mutação. Por isso, diante de uma situação em que um filho se encontra vulnerável, em vez de entrarem em pânico, perguntando-se o que fizeram de errado ou se ele é diferente dos outros, os pais devem entender que a solução pode passar por eles mesmos.


– A maneira como os pais vão lidar com um diagnóstico desse tipo está ligada à forma como eles representam seus filhos dentro de si, tornando-se decisivo na forma como a criança vai superar os problemas – define o psiquiatra Celso Gutfreind, ressaltando que, quando um pai acredita no filho acima de tudo e tem uma imagem positiva dele, transmite confiança, diminuindo o poder do diagnóstico, da “etiqueta” que colocaram na criança.

Um exemplo é a passagem da pré-escola para a primeira série. Nessa fase, algumas crianças estão mais preparadas do que outras para aprender a ler e a escrever. Ao se constatar dificuldades no aprendizado, deve-se prestar atenção para as mais simples alterações emocionais (como ansiedade e medo). A personalidade do aluno e situações mais complexas, como estar enfrentando problemas em casa – pais se separando, irmão nascendo ou bullying na escola – também devem ser considerados.


– Só porque uma pessoa não se encaixa em um padrão pré-determinado ou alguém é incapaz de compreendê-la não quer dizer que ela seja totalmente incapaz – justifica a psicóloga Lisiane Machado de Oliveira Menegotto, doutora em Psicologia do Desenvolvimento e coordenadora do curso de Psicologia da Universidade Feevale.

DIAGNÓSTICOS NÃO SÃO SENTENÇAS

Décadas atrás, diagnósticos dados pelo setor pedagógico do colégio tornavam-se sentenças definitivas sobre a capacidade cognitiva do aluno, o que marcava para sempre a vida da criança.

– Isso ainda ocorre hoje, mas há um esforço cada vez maior em cuidar para não se rotular prematuramente uma criança – aponta a psicóloga Lisiane Machado de Oliveira Menegotto.

A psicóloga Andrea Rapoport, doutora em Psicologia do Desenvolvimento, explica que o caminho da educação é apostar em um olhar mais apurado sobre o que cada pessoa faz de melhor. Ela cita como exemplo a Teoria das Inteligências Múltiplas, criada por de Howard Gardner (1985), com uma visão de inteligência que aprecia os processos mentais e o potencial humano a partir do desempenho das pessoas em diferentes campos do saber. A teoria se opõe aos tradicionais testes de QI, que avaliam todos pelos mesmos parâmetros.

– Inteligência é a capacidade que nós temos de solucionar problemas, de criarmos dentro da sociedade. Se o sujeito não é bom em matemática, ele pode ser incrivelmente criativo para contar histórias, por exemplo – afirma Andrea.

COMO AGIR

- Para que escola e família não confundam uma dificuldade de aprendizagem passageira com um distúrbio mais sério de desenvolvimento, observe as atitudes da criança. Muitas vezes, o problema é emocional.

- Consulte profissionais com especialização em clínica infantil, para realizar uma avaliação e tratar da criança. O trabalho deve ser em conjunto com a escola e a família.

- Professores e pais devem cuidar ao máximo para não passar a imagem de que a criança é incapaz, inferior aos outros. Deve-se explicar que, sim, ela tem uma dificuldade, e trocar experiência com ela, ver o que que ela acha disso, mostrar que ela tem outras qualidades e que não é definida pela nota do colégio.

- Aposte no seu filho e confie nele. Afeto e otimismo em relação ao seu futuro farão com que ele ganhe confiança para superar os obstáculos.

Publicado no caderno Meu Filho
Jornal Zero Hora
30/01/2012
Edição N° 16963, Página Central

sábado, 28 de janeiro de 2012

CAINDO NA REAL

A cineasta Liliana Sulzbach registrou o percurso de meninos que tentam a sorte no futebol. O documentário foi exibido pela RBSTV no sábado (28/1/2012), às 12h30. Apareço como um dos entrevistados, defendendo o valor da teimosia. Confira outros episódios da série.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

FUI OBRIGADO A SER HOMEM

No meu caso, não adianta cirurgia plástica, teria que desmanchar a face inteira e começar do zero. Ouça meu comentário na manhã de sexta (27/1) na Rádio Gaúcha, durante o programa "Gaúcha Hoje", apresentado por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola:

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A MALDIÇÃO DA GAROUPA

Arte de Thomas Gainsborough

Eu ria do meu amigo Manoel. Avarento que só vendo. Sua tática era carregar uma nota de cem reais como desculpa para não pagar nada pela frente.

Não é que ele não tivesse dinheiro, o coitadinho não contava na hora com notas menores.

Diante do estacionamento, ele me dizia: “Paga para mim que não tenho troco”. Na banca de revistas, “paga para mim que não tenho troco”. Depois de uma cerveja, “paga para mim que não tenho troco”.

A garoupa salvava seu zoológico. Eu gastava tudo.

Salafrário! Sua companhia me multava como um Ibama. Sua companhia me convertia num traficante de animais. Meu Pantanal financeiro morria a seu lado, à míngua de água. Dos meus bolsos, ouvia os últimos suspiros da tartaruga-de-pente, da garça, da arara, do mico-leão-dourado e da onça-pintada. Não restava uma pena, uma escama, para reconstituir a história de minha generosidade.

Ele terminava o dia sem gastar um vintém. Lustrava o porquinho comigo, preservava a poupança. E ainda dissimulava a mesquinhez com simpatia filantrópica. Em sua concepção, facilitava a vida dos comerciantes ao não tirar o dinheiro miúdo da caixa registradora. Apelidei Manoel ironicamente de Lei do Troco, aquela do ônibus.

Apesar da minha raiva justificada, havia uma verdade sutil por detrás de sua atitude.

Manoel compreendeu a maldição da nota de cem reais. O fardo da nota de cem reais.

Todas as vezes em que levo a mais alta efígie da República, não posso usar.

É trocar a nota que a grana se vai num minuto. Some. Desaparece. Escorre para o ralo.

É magia negra. Algo inexplicável. Mais demorado gastar uma nota de R$ 20 do que uma de R$ 100. Os filhos farejam quando acabamos de desmembrar a quantia, as dívidas são informadas, as contas nos acham na rua.

Existem gnomos credores dentro da carteira, que devoram o cardume filhote da garoupa, deve ser isso.

Como um valor pode desaparecer momentaneamente? Vejo-me como vítima de um truque de prestidigitação, de um golpe de ilusionismo do Banco Central.

Você evita torrar os cem reais, faz solenidade, economiza a folhinha durante sete dias.

É comprar com ela uma cartela de aspirina que perde o controle da situação. Sobram R$ 98, quase a mesma coisa, quase. Mas o montante evapora em menos de duas horas.

Há uma imunidade parlamentar na cédula azul, que permite que ela resista mais. Quando vira outro bicho, desaparece.

Tanto que Eike Batista se recusa a carregar notas de cem reais. O homem mais rico do Brasil não é bobo de arriscar sua fortuna numa superstição.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 24/1/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 16957

A CHAVE E O CHAVEIRINHO

Arte de Otto Dix

Não há maior solidão do que a da mulher alta.
É uma dificuldade secreta, que ninguém fala.
Mas o homem prefere uma mulher gorda a uma mulher alta.
Prefere uma mulher nanica a uma mulher alta.
Não diz, mas prefere.
É um machismo. O mais vergonhoso: o machismo silencioso.
O machismo de se sentir menor do que a mulher e rejeitá-la antes de qualquer contato.
Como se a altura fosse determinar se ele é macho ou não.
Homem teme mulher alta. Se a mulher tem mais de 1 metro e 80, ele desaparece.
Só quer mulheres menores do que ele. Para dominar.
Vergonha de andar de mãos dadas com mulher maior do que ele.
Vergonha de abraçar uma mulher maior do que ele.
Vergonha de dançar com uma mulher maior do que ele.
Homem pensa que ele é baixo porque ela é alta. E afasta todas as mulheres altas de sua vida, para fingir que não é baixo.
Não há maior sofrimento do que da mulher alta.
Porque ela não é feia e é tratada como se fosse um monstro.
Não há maior tristeza do que da mulher alta.
Sempre chamada de girafa, sempre convocada para ser jogadora de basquete, sempre solicitada para pegar alguma coisa lá da última prateleira. Confundem a mulher alta com uma escada simpática.
Mulher alta sofre o pior bullying amoroso. Precisa de homem de coragem, não de homem egoísta, homem que somente pensa em si e na aparência.
Não importa que seja um pequeno homem, desde que não seja um homem pequeno.

Ouça meu comentário na Rádio Gaúcha na manhã de terça (24/1), no Programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola:

domingo, 22 de janeiro de 2012

MULHER TRANSFORMOU O CARRO NUMA BOLSA


Dificilmente o homem entenderá, mas carro para mulher é bolsa, é camarim, é quarto de solteira. Não entre sem bater. Ouça meu comentário na Rádio Gaúcha de sábado (21/1):
 

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

DICAS DE VIDA A DOIS

Participei do Jornal do Almoço na sexta (20/1), ao meio-dia, programa da RBSTV. Interagi com atores e atrizes do Porto Verão Alegre. Muitas risadas e pitadas de ironia. Veja:

DEPOIS DA SEPARAÇÃO

O que fazer no primeiro dia de separação, após brigar com a mulher? Respondo a dúvida em meu comentário na Rádio Gaúcha na manhã dessa sexta (20/1). Acompanhe:



Você se separou da namorada, não se mexa, não faça nada no dia seguinte, não converse com ninguém, apague o celular. Se possível, não vá ao serviço, arrume um atestado, não atenda o interfone, não ligue o computador.
Procure o silêncio, o isolamento, o mosteiro de Três Coroas. Não caía na tentação da fofoca, não conte para ninguém o que aconteceu, as coisas podem mudar, tudo é muito recente, calma. Durma. Durma muito. 
Conviver aumenta o risco de ferrar a relação de uma vez por todas. 
Estamos magoados, feridos e loucos para nos vingar.
Somos terroristas explodindo o passado. Temos grandes chances de fazer bobagem. De falar mal dela para os amigos e romper os laços de confiança.
Com cabeça quente, vamos apagar as fotos no orkut e ela se sentirá um lixo.
Com cabeça quente, vamos mudar nosso status no Facebook e ela achará que temos outra.
Com cabeça quente, vamos reunir e entregar as coisas dela numa caixinha como se ela fosse uma leprosa.
Com cabeça quente, mandaremos torpedos e mensagens com as piores ofensas - palavrões que nem o dicionário  do mundo.
Com cabeça quente, daremos finalmente motivos para que ela se separe para sempre.
O amor precisa de dois dias de luto, no mínimo. Demoramos tanto para conquistar alguém, não podemos desistir tão facilmente.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

RETARDADO AOS OITO ANOS


Mãe é exagerada. Sempre romantiza a infância do filho. A minha, Maria Carpi, dizia que eu fui um milagre, que enfrentei sérias rejeições, que não conseguia ler e escrever, que a professora recomendou que desistisse de me alfabetizar e que me colocasse numa escola especial.

Eu permitia que contasse essa triste novela, dava os devidos descontos melodramáticos, entendia como licença poética.

Até que mexi na estante do escritório materno em busca do meu histórico escolar.

E achei um laudo, de 10 de julho de 1980, assinado por famoso neurologista e endereçado para a fonoaudióloga Zulmira.

“O Fabrício tem tido progressos sensíveis, embora seja com retardo psicomotor, conforme o exame em anexo. A fala, melhorando, não atingiu ainda a maturidade de cinco anos. Existe ainda hipotonia importante. Os reflexos são simétricos. Todo o quadro neurológico deriva de disfunção cerebral.”

Caí para trás. O médico informou que eu era retardado, deficiente, não fazia jus à mentalidade de oito anos. Recomendou tratamento, remédios e isolamento, já que não acompanharia colegas da faixa etária.

Fico reconstituindo a dor dela ao abrir a carta e tentar decifrar aquela letra ilegível, espinhosa, fria do diagnóstico. Aquela sentença de que seu menino loiro, de cabeça grande, olhos baixos e orelhas viradas não teria futuro, talvez nem presente.

Deve ter amassado o texto no bolso, relido sem parar num cantinho do quintal, longe da curiosidade dos irmãos.

Mas não sentiu pena de mim, ou de si, foi tomada de coragem que é a confiança, da rapidez que é o aperto do coração. Rejeitou qualquer medicamento que consumasse a deficiência, qualquer internação que confirmasse o veredito.

Poderia ter sido considerada negligente na época, mas preferiu minha caligrafia imperfeita aos riscos definitivos do eletroencefalograma. Enfrentou a opinião de especialistas, não vendeu a alma a prazo.

Ela me manteve no convívio escolar, criou jogos para me divertir com as palavras e dedicou suas tardes a aperfeiçoar minha dicção (lembro que me fazia ler Dom Quixote, e minha boca andava apoiada no corrimão dos desenhos).

Em vez de culpar o destino, me amou mais.

Na vida, a gente somente depende de alguém que confie na gente, que não desista da gente. Uma âncora, um apoio, um ferrolho, um colo. Se hoje sou escritor e escrevo aqui, existe uma única responsável: Maria Carpi, a Mariazinha de Guaporé, que transformou sua teimosia em esperança. E juro que não estou exagerando.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 17/1/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 16950

FELIZ DE OUTRO JEITO

Ouça meu comentário de terça (17/1/2012) na Rádio Gaúcha, sobre a diferença entre diagnóstico e destino e citando a experiência de Léa Chagas, protagonista de Feliz de outro jeito, livro de autoria do seu marido Carmo Chagas.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O QUE É INSUPORTÁVEL NA MULHER?

Arte de Jean Fautrier

O que o homem não aguenta enxergar ou ouvir de sua companhia? O que arrebenta a paciência masculina? O que nos tira do sério?

1) Sovaco cabeludo (só fazia sucesso entre as atrizes comunistas da Alemanha Oriental);
2) Pernas lixas de parede (você vai dançar sertanejo universitário com ela e, no momento de coxear, acaba esfolado);
3) Calcinha cor de pele (o mesmo que encontrar a avó nas pernas de sua mulher);
4) Calcinha no box (a tendência é a torneira virar um cabide);
5) Puxar a calcinha do rego (o equivalente a coçar o saco para o homem);
6) A tradicional pergunta terrorista: O que está diferente em mim?;
7) Inventar que a gente está precisando de roupa para nos arrastar ao shopping e aproveitar a liquidação de sapatos femininos;
8) Não acreditar no nosso elogio. Nem no verdadeiro nem no falso.
9) Perguntar se ela está em TPM ofende, não perceber que ela está em TPM ofende;
10) Chorar no meio de uma briga (ela ganha a discussão porque chorou primeiro);
11) Mania de dizer que esqueceu algo quando acabou de sair de casa;
12) “Só um minutinho”, aquela enrolação na hora de se vestir;
13) Unha descascada;
14) Buço (não dá para engolir mulher com sobrancelha na boca).

Acompanhe como foi meu comentário na Rádio Gaúcha na manhã desse sábado (14/1):

sábado, 14 de janeiro de 2012

SONHO DE GURI

Dirigido por Liliana Sulzbach, Sonho de Guri acompanhou durante um ano a vida de meninos que sonham com o estrelato do futebol. O documentário foi exibido pela RBSTV no sábado (14/1/2012), às 12h30. Dou um depoimento ao final sobre minha experiência na peneira do Inter. Confira outros episódios da série.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

COMPOSITOR DA SAÚDE MENTAL

Fotos de Cínthya Verri

Paulo Sérgio Rosa Guedes era extremamente ligado ao seu avô, que contava histórias saborosas e brincava de cartas. Otelo morreu de infarto fulminante numa terça chuvosa de 1956. Durante décadas, Paulo Sérgio, na época com 15 anos, reprisou a cena e pensou ter condições de socorrer e salvar o familiar. Carregou a culpa pela morte. Raciocinava por condicionais: "Se eu tivesse dormido na casa dele, não teria morrido"...

Foi seu trabalho de psicoanálise que o possibilitou a se desfazer da onipotência e ajudar centenas de gaúchos a perceberem que a culpa, na maior parte das vezes, é inventada.

"A culpa em si é a única causa de doença mental, é um delírio de grandeza, que faz com que a pessoa acredite que é causadora de tudo", explica.

Autor de livros como O "Sentimento de Culpa" e "A paixão, caminhos & descaminhos", poeta e ensaísta, Paulo Sérgio, 70 anos, mostra o quanto é possível ter mais prazer e menos decepção, o quanto a culpa indica uma vontade insustentável de ter controle sobre qualquer coisa. É hábito dizer que algo deu errado porque não se agiu de determinada maneira, mas - na verdade - o sucesso ou o fracasso de um negócio ou relacionamento não depende somente de nossas ações.

"Não somos o centro do mundo, talvez tenhamos que descobrir qual é o nosso mundo para aprender a ser livre".

Em sua residência-escritório no alto da avenida Carlos Gomes, em Porto Alegre, Paulo Sérgio tem o despojamento da alegria. Sabe que o "riso é a coisa mais séria que existe". Gargalha entre frases de efeito. Articula pequenas teses em aforismos: "O que leva o jovem à insônia é o que faz o velho dormir" ou "É insuportável sermos tão diferentes uns dos outros".

Não se veste de modo pomposo, está sempre esportivo e tem a mania curiosa de calçar sapatos brancos. Na hora de comprar, não usa cartão de crédito ou cheque especial. Não sofre com aquilo que não é, muito menos pretende gastar o que não tem. Mantém o mesmo carro de 1994 na garagem, um Ford Taurus.

Paga à vista cada palavra. Não remói amargura.

"O que foi já me ensinou, o que virá não sei".

Poderia ser um xamã, um líder espiritual, mas é um dos psiquiatras mais conceituados do Rio Grande do Sul, com 42 anos de atuação, um exército de fãs e uma tropa de imitadores. Identifica a psiquiatria como música, converte conceitos em fala simples e comunicativa, transforma o jargão em sinfonia: ouvir é entender, amar é cuidar.


"Como ajudaremos com termos técnicos?", pergunta.

Quando recebeu de presente o piano de sua mãe Zuleika, na adolescência, teve vontade de recitar o texto “Gradiva” de Freud. É um compositor da saúde mental. Seu pendor acústico - toca igualmente violão e cavaquinho – emana de uma casa tomada pela arte, em que seu pai, também psiquiatra, professor da UFRGS, recebia amigos para longas e acaloradas discussões.

"Meu pai Paulo Luís Vianna Guedes morreu jovem, aos 52 anos, mas escondeu o riso no meu para continuar nossa serenata".

Seu pensamento é um antídoto numa época de festas de Natal e virada, de receio pelas férias, de excessivos gastos, de encontros familiares e ressentimentos.

"Final do ano é uma continuação do ano anterior. Sem pânico diante da página em branco, é apenas prosseguir escrevendo."

Hoje existe uma descarga desproporcional de cobrança: é cuidar do corpo, é atender as metas no trabalho, é sofrer por não acompanhar os filhos ou por não se dedicar ao namoro.

"Para que enlouquecer?", questiona. "Paga-se caro por preocupações irrelevantes".

Um de seus achados de percepção é desenvolver as diferenças entre culpa e responsabilidade. Por mais que soem parecidos, não são sinônimos.

Culpa é se isentar da ação, como se não tivesse envolvimento com as escolhas da própria vida. Responsabilidade é aceitar a vida como aconteceu - ainda que não tenha sido perfeita.

Quem é culpado vai adiar um prazer inúmeras vezes, é capaz de reclamar do trabalho e não mexer uma vírgula para mudar de emprego, criticar seu marido ou mulher e manter a rotina do jeito que não gosta para permanecer praguejando.

"É mais confortável se portar como culpado do que assumir os próprios desejos. Há gente que desabafa que não tem tempo para os filhos, mas não reivindica seu tempo, não abre seu tempo e procura encontrar desculpas externas para não ser criticado".

Então, a culpa traz uma dupla fantasia: de controle, em que a pessoa se vê geradora do que de ruim acontece em sua volta, e de fatalidade, em que não se sente apta a modificar o comportamento.

De acordo com Paulo Sérgio, o cotidiano depende de sorte e azar, daquilo que chamamos de acaso. Nada mais do que isso. E grande parte dos aborrecimentos surge da ilusão de ser importante em todo momento.

O culpado não faz por mal, ele mente para si e para os outros, é um enganado e um enganador. Sua atitude garante benefícios, senão não seria largamente adotada: preserva a idealização, cria amizades pela dependência do sofrimento e anula a autoridade de suas opções.

No período em que fumava, Paulo fingia que consumia um maço por dia, porém já destrinchava três carteiras. Prolongou a mentira para não arcar com as consequências de seu vício.

"Imaginamos que mentindo para si os demais não descobrirão. O que me faltava era opinião própria, reconhecer que não deveria ser melhor do que eu era, mas melhor no que eu realmente era".

É uma espécie de transe, de glorificação da vítima, de coitadismo insaciável; o problema passa a ser eternamente alheio, do governo, dos pais, do casamento, do mercado de trabalho, do trânsito.

"Na terapia, o culpado não procura ajuda, e sim um fiador, quer que concordemos com seus motivos para continuar sofrendo em vão. Chega com a alma vendida. A psicoanálise é o oposto: a arte de restituir a uma pessoa a alma que ela tem.”

A devolução da alma se desenrola pelo caminho da simplicidade: admitir o tamanho da experiência, acolher os defeitos e as falhas, permitir-se essencialmente errar e seguir adiante. Não ser superior ao passado, mas se contentar com o possível, o deliciosamente possível.

Paulo Sérgio é tão comum, que talvez ninguém repare na rua a desenvoltura de seu olhar. O brilho malandro de alguém que desvendou a verdade, recusando atalhos e assumindo suas vivências. Ele é um homem que trocou o poder pela confiança. Um negócio sábio.

June Schuck, 64, esposa há cinco décadas, é testemunha de sua enxurrada de idéias. Assim como seus filhos Luciana, Paulo Roberto, Ana Luísa e o neto Pedro. A família ri quando revela que o marido-pai-avô só poderia ter nascido em 1941, na maior enchente de Porto Alegre.

Não há dique que o contenha.


DECÁLOGO DA CULPA

1. O sentimento de culpa nunca é conseqüência, e sim causa.
2. Evite lista de intenções. Intenção não existe. Caso pretende fazer algo, faça agora. A ação é terapêutica.
3. Superfaturamos os dissabores. Tudo é muito dramático, inesquecível, incontornável. A vida é bem mais simples do que se imagina.
4. Ao invés de dizer o que se deseja, existe a fantasia de que o outro nos conhece e pode nos antecipar. É uma cilada: cobrará por não ser adivinhado.
5. Desconfie de sua importância: aquele inimigo mortal nem sequer sabe que você existe.
6. Reconheça que o outro não é igual: a diferença entre duas pessoas é maior do que entre dois animais de espécies distintas (Montaigne).
7. Em vez de interpretar, escute com atenção. Interpretar é se defender mais do que receber.
8. Não procure justificar o que fez, apenas diga que fez.
9. Se mantém a mesma opinião sempre, algo está errado. Coerência é mudar de opinião.
10. Inverta o mandamento “ame o próximo como a si mesmo” para “ame a si mesmo para amar o próximo”.

Publicado na Revista Contigo!
5 de janeiro de 2011

O QUE É INSUPORTÁVEL NO HOMEM?

Arte de George Grosz

O que é mais abominável no macho? O que é mais nojento? O que as mulheres detestam no homem? O que forma nosso índice de rejeição na corrida eleitoral pelo coração feminino?

1) Palitar dentes usando o interlocutor em espelho;
2) Cuspir na rua, e ainda olhar onde caiu;
3) Assoar com as mãos;
4) Bafo de cerveja;
5) Arrotar com orgulho, como Pavarotti do arroto ;
6) Unha do pé quebrada e suja;
7) Bago para fora do calção esportivo;
8) Cofrinho de mecânico;
9) Braguilha aberta;
10) Pêlo na orelha;
11) Tirar sujeira do nariz dentro do carro;
12) Chiclete em voz alta, de boca aberta;
13) Soltar gases na cama;
14) Coçar o saco;

Se não tem nenhuma dessas atitudes, parabéns, você é um anjo, um querubim, certamente você não é homem.


No sábado (14/1), às 7h20, na Rádio Gaúcha, a lista do que é insuportável numa mulher.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

LASIER AVIADOR

O apresentador Lasier Martins não é sisudo. É mais fama das gravatas do que verdade. Durante programa na TVCOM, ele experimentou meus óculos de aviador. O céu é o limite.

ALOPRANDO NA TV

Veja entrevista que concedi na noite de terça (10/1) para TVCOM Tudo Mais, do Grupo RBS, programa apresentado por Sara Bodowsky.

CONSULTÓRIO SENTIMENTAL NA RÁDIO GAÚCHA

O casal Fabrício Carpinejar, poeta e cronista, e Cínthya Verri, terapeuta, estará à frente de novo quadro da Rádio Gaúcha. O programa quinzenal Quase Perfeito é atração do Brasil na Madrugada, com estreia a partir da 0h01 de quinta (12/1). A apresentadora Sara Bodowsky faz a mediação das questões.

Com duração de duas horas, Quase Perfeito é um consultório sentimental que pretende atender as dificuldades de relacionamento dos ouvintes. A ideia é representar um casal no ar, com um posicionamento feminino e outro masculino sobre o amor e a família. O tema da primeira edição aborda o dilema entre independência e possessividade: "Como dar liberdade para o outro sem ser indiferente" ou "Como mostrar apego sem ser chato e possessivo".

O interesse é repassar um reservatório de histórias, casos, gafes, conselhos e exemplos que tornarão menores as crises e as brigas. Fabrício e Cínthya também citarão os desafios mais espinhosos que já enfrentaram, sempre interagindo com o público, perguntando despretensiosamente as causas das intrigas, num tom “atrevido afetuoso”. Consultório Poético procura despertar o desejo da confissão. Tudo com muito bom humor.

Para participar do programa, ligue (51) 3217-1610/ (51) 32176831/ (51) 32230600

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

ESTREIA NA RÁDIO GAÚCHA

Com emoção, assinalei minha estreia na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, sempre conduzido por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola. Pode acompanhar meus boletins líricos todas as terças, sextas e sábados, às 7h20. Ouça o meu primeiro pitaco.

FIASCO NA CASA DA SOGRA

Arte de David Hockney

A distração custa caro. E cobra juros de insônia.

Aurélio experimentou 20 dias na residência da sogra, Nanda, em Balneário Camboriú. Com a sogra dentro do apartamento, é óbvio.

É o momento em que sua mulher, Elis, vira filha e não faz mais nada. Realmente descansa. Come, dorme, assiste a filmes, vai para praia. No sol seguinte, repete a dose. O Dia da Marmota que as misses desejam, e não se enjoam.

A marmota era ele: gordo, barbudo, sonolento e pele tostada.

A preguiça da esposa contagiou sua vitalidade farroupilha. Não foi só uma manhã em que despertou ao meio-dia.

– O excesso de saúde me estraga. Assim como sono demais me deixa inchado e com olheiras – costumava resmungar.

Odiava Domenico de Masi e a baboseira do ócio criativo. Na prática, constatava o contrário: a aparência masculina piora com o lazer. Todo homem descansando perde o rosto e ganha retrato falado. Inicia a temporada saudável e termina as férias com cara de foragido da polícia catarinense.

Aurélio cometeu o maior vexame de sua vida no almoço de sexta. Sem Elis, que prometeu sair para compras, acordou desprotegido, com os socos da sogra na porta:

– Comida na mesa! Vem logo! Tá pensando que é a casa da sogra? – gritou, debochada.

Pelado debaixo dos lençóis, ele pegou a primeira sunga que encontrou na gaveta e correu afobado para a sala, consciente de que Nanda era pontual e não tolerava enrolações.

No litoral, é permitido comer com roupa de banho. Não é grosseria, atentado violento ao pudor, desprezo anarquista.

O problema é que – no torpor do sono – Aurélio apanhou uma cueca listrada no lugar da sunga. E sentou quase pelado com a sogra, o cunhado, um casal de tios e algumas pessoas a que não teve tempo de ser apresentado.

O grupo olhava o genro com censura. O cunhado perguntou se ele frequentava praia de nudismo. Aurélio não captou a ironia, mesmo com os risinhos coletivos e contidos de Muttley. Confessou que carecia de coragem para jogar frescobol com o troço balançando.

Os comensais foram se constrangendo e afastando o prato.

Aurélio levantou para buscar o suco, juntou faca que caiu no chão, desfilou intensamente pela cena do crime. Almoçava de cueca e ninguém falou nada.

Identificou a gravidade da atitude quando a esposa mandou que preparasse as malas.

– Já vamos?
– Você vai! Tá pensando que a casa da sogra é motel? Me viu almoçar de calcinha diante de sua família?

Não adiantou alegar que não fora intencional. Ainda mais a uma terapeuta. Qualquer erro pode ser um ato falho.

– Aurélio, não acredita em inconsciente? Sentiu ciúme da minha tranquilidade, do meu luxo de rainha, encontrou um jeito de arruinar a confiança da mãe e ir embora.

Ela estava coberta de razão. O inconsciente é o padrasto do pecado.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 10/1/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 16943

domingo, 8 de janeiro de 2012

SURREALISMO INFORMATIVO NA RÁDIO GAÚCHA

Foto de Nauro Júnior

Na terça-feira, dia 10, o escritor Fabrício Carpinejar, que encheu os olhos dos leitores de ZH com a coluna Beleza Interior ao longo de 2011, estreia oficialmente na Rádio Gaúcha em um bate-papo com os apresentadores Antônio Carlos Macedo e Daniel Scola, sempre às 7h20min de terças, sextas e sábados. O TV Show foi conferir o que Carpinejar pretende aprontar, agora nas ondas do rádio. Confira trechos da entrevista.

Como será a sua participação no programa?
Falarei por telefone, sempre às 7h20min. Minha voz já estará acordada do chimarrão. Levo o filho cedo para escola.

O que você vai comentar?
Farei minicrônicas. Com toda a irreverência da sensibilidade. Abordarei assuntos polêmicos do dia ou trarei novos ângulos para observar a rotina. Posso comentar a nova campanha de redução de velocidade do Detran e o péssimo hábito dos motoristas de disputar com os amigos quem chega primeiro ao Litoral, ou confessar algumas dores e temores. Por exemplo, a cachorra de casa, Cora, ficou surda de repente nesta semana. E tentei enxergar o impasse pelos olhos dela: aposto que a cadela acha que não foi ela que deixou de ouvir, mas nós é que deixamos de falar com ela (pensa que está de castigo, coitadinha). Ainda quero brincar com o comportamento, propor autoescola para quem anda de guarda-chuva, esses surrealismos informativos.

A passagem para o rádio tem relação com este ano em que você se dedicou ao Beleza Interior?
Totalmente. Beleza Interior me conectou ao cenário gaúcho, ao espírito aconchegante das pequenas cidades. Falar é uma generosidade – não podemos desperdiçá-la. Nunca falar por falar, mas falar com gosto, falar dando importância a cada palavra. Quem não seduz o silêncio ficará incomodado de solidão na velhice.

Como tem sido para você esta aproximação com a rotina jornalística?
É o casamento da chuva e do sol, da literatura com o jornalismo. Na verdade, nunca deixei a rotina de jornalista. O jornalismo me conserva a humildade de ouvir – e de não querer ser maior do que a notícia.

Tem mais alguma surpresa sua para o ano de 2012?
Muitas. Conduzirei Miss Cultura (leitura de textos) no interior de São Paulo, em turnê por 10 cidades. Estou organizando um volume de crônicas para maio e devo finalizar um livro de poesia.

Publicado no jornal Zero Hora
Caderno TV Show
TELE TUDO | Anna Martha Silveira
Porto Alegre (RS), 08/01/2012 | N° 16940

O BIÓGRAFO CORAJOSO DE MACHADO


Todo escritor tem um gênero caixa-preta, que não abre em vida. A poesia foi o esconderijo estilístico de Guimarães Rosa, de Clarice Lispector, de Lúcio Cardoso. E de Daniel Piza, uma perda irreparável para literatura e jornalismo, falecido aos 41 anos, na virada de 2012.

Piza mostrou as garras afiadas de ensaísta, contista, ficcionista. No fundo, era um poeta bissexto. Secretamente devaneava versos. Há um livro de sonetos inéditos na gaveta - pode procurar em seu valioso espólio.
Sua alma fora armada para capturar voos extravagantes e raros. A acidez defendia a delicadeza. A ironia protegia a inocência.

Possuía a vocação ao verso curto, à máxima densa e acachapante. Flâneur do desespero, conde do humor, escrevia com agudeza insuportável.

- Quem fala ‘no meu tempo’ o tempo inteiro já não tem muito tempo - provocava.

Sua independência vinha em primeiro lugar, soberana. Não poupava colegas, não escapava dos debates frontais. A resposta não representava um direito, e sim um dever. Como um verdadeiro intelectual, contava com poucos amigos, mal enchia um café. Já seus inimigos renderiam procissões e comícios. Até porque a inveja é uma admiração platônica.

Piza foi tão amado quanto odiado. Não conheceu a indiferença.

Não gerava suspiros, mas arroubos. Combatia a falsa ingenuidade, prima do ressentimento. Cavava espaço para diferenças sutis. Advogava a moral (preceitos do caráter) contra moralismo (preconceito), por exemplo.

"Aforismos sem juízo", seção do Estado de São Paulo e reunida em livro pela Bertrand Brasil, é uma coleção impecável de ataques líricos. A graça que dói e garante a grande literatura, lastro de Paulo Francis, Mário Quintana, Otto Lara Resende.

A seleta apavora a etiqueta com inversões. Destrói argumentos com contrapontos. Dizima bocejos com torpedos.

Da mesma forma em que Nicanor Parra criou a antipoesia no Chile para conter a hemorragia palavrosa de Neruda, Piza cunhou o antiprovérbio para frear o proselitismo acadêmico. Salvou o jornalismo da tese universitária.

Seus lemas: muito do pouco, clareza agressiva e intensidade do exato. Caracteriza o aforismo como breve, definitivo, pessoal, surpreendente e filosófico.

A boa frase começaria de uma ideia comum e morreria com estremecimento de estrela, clarão desconcertante e imprevisível.

- Nada mais crédulo do que não acreditar em nada - advertia.

Piza foi nosso Karl Kraus, nosso Chamfort, nosso La Rochefoucauld. A chance de duvidar das aparências e também das certezas.

Desconfiava da meia-verdade, desejava encontrar a verdade e meia.

Não informava, deformava a notícia pronta para que enxergássemos o pensamento sem censura e amarras.

Transpirava coragem. Empreendeu a biografia de Machado de Assis (Imprensa Oficial) - rapel da língua portuguesa, tarefa para sepultar reputações. Nunca se alcovitou na preguiça, não recorreu a nenhum dos romances ou contos do Bruxo do Cosme Velho como molde narrativo.

Humildade é elegância. Não apareceu mais machadiano do que Machado. Derrubou a tese de que Machado mudou de repente ao escrever “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881). Ele não mudou, cresceu de modo coerente e progressivo. Piza revirou jornais, detalhes, miudezas, documentos para reconstituir os 69 anos da vida do maior escritor brasileiro. Furtou a casa de Machado enquanto ele vivia, revelando a evolução estilística do autor na intensa produção de crônicas em jornais e em peças de teatro, descrevendo com cuidado atento (nunca bajulação) a sobrevivência social em ambiente hostil.

Machado disse sobre sua mulher Carolina: “Não acharia ninguém que melhor me ajudasse a morrer”.

A literatura de Daniel Piza ajudará o leitor a viver sem ele. Mas será muito difícil. E completamente injusto.

Publicado em O Estado de São Paulo
Memória
"A polêmica como ofício: homenagem a Daniel Piza"
Caderno 2, ps. 8 e 9
São Paulo, 8/1/2011
Ano 133 N. 43181

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

PROVOCAÇÕES

Veja minha participação no programa Provocações, da TV Cultura, exibido na noite de terça (3/1). Foi uma guerra verbal com Antonio Abujamra, mestre da ironia e da quebra de assunto.




terça-feira, 3 de janeiro de 2012

MINHA CIDADE SÃO AS PESSOAS

Arte de Peter Blake

O que faz gostar de uma cidade são as pessoas. A amizade é o ponto turístico que resiste ao tempo.

Minha vontade de conhecer mais as praças, os bares e restaurantes depende de alguém emocionado com sua rotina.

Lugarejos ficam atraentes com o entusiasmo de seus moradores. Nem requer grandes monumentos de Antonio Caringi, façanhas arquitetônicas de Álvaro Siza, desenhos de Oscar Niemeyer, paisagens de Burle Marx, mas o cuidado com as singelezas maravilhosas de seu bairro.

O que me seduz é como o morador desenrola o mapa discreto do seu dia a dia. É quando valoriza as quadras de seu mundo, e tem interesse em mostrar onde é o minimercado em que compra suas urgências, a cafeteria que cura sua ressaca, a floricultura que devolve sua esperança no amor.

O arrebatamento surge mais pela ternura do embrulho do que pelo presente. Papel dobrado com fita reflete o dobro de confiança.

A generosidade torna qualquer local agradável, e repõe a gana de voltar. Carisma de garçons salva restaurantes. Simpatia de manicures salva salões. Paciência de atendentes salva lojas.

Não há maior educação do que a alegria.

Sou influenciável pelos personagens comuns que não se esgotam em acordar cedo e falar bem de seus percursos. Fogem do elogio da lamúria. Retiram milagres das repetições.

Os amigos formam minha cidade. As ruas que passo mereceriam nomes das pessoas que amo. Deveria mudar as placas dos logradouros: nada de políticos e celebridades, mas quem é famoso secretamente em meu silêncio.

Moraria na Rua Cínthya Verri, médica e terapeuta, paralela às ruas Mariana Carpinejar e Vicente Carpinejar, que eu não sei ainda o que eles serão, mas já são tudo como filhos. Os pais, Maria Carpi e Carlos Nejar, teriam direito a duas avenidas do tamanho da Assis Brasil e Ipiranga.

Batizaria o viaduto que me leva ao centro de Mário e Diana Corso, casal de confidentes. Seria Diana para quem chega e Mário para quem parte ao interior do Estado.

O mercado público ganharia a graça de Luiz Ruffato, irmão de prosa que cataloga frases de efeito. Chamaria o teatro de Cíntia Moscovich, a casa noturna de Renato Godá, o shopping de Eduardo Nasi, a Biblioteca Pública de Rosemary Alves, a orquestra de Francesca Romani, a Agência de Correios de Fernanda Seelig. Honraria o Jardim Botânico com um professor fundamental, Luís Augusto Fischer, que me alcançou uma lição preciosa: somos mais inteligentes criando novas dúvidas do que repetindo certezas. Convocaria um colorado, Paulo Scott, para assumir a posteridade do estádio.

Desejaria indicar o crítico Daniel Piza para ser minha rodoviária, espaço em que ocorrem as mais pungentes despedidas. Mas ele morreu na última sexta, aos 41 anos, de AVC. Não dá mais.

Amigo vivo é rua, amigo morto é estrela.

Daniel Piza vai piscar conselhos para mim toda noite.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 3/1/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 16935

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

COLHER DE SOPA

Foto de Cínthya Verri

Cora, a cachorrinha de casa, ficava assustada na virada do ano. Ela se escondia debaixo da mesa, da cama, das cortinas. Uivava para as janelas. Seus gemidos lembravam molas de antigos colchões. Dentes rangendo de insônia. Não se aquietava até que os rojões serenassem em fumaça.

Na troca de 2011 para 2012, ela estranhamente dormiu e não acordou com nenhum fogo de artifício. Suspirava no sofá. Uma colher de sopa perdida na almofada.

Aquilo me intrigou. O animalzinho traduzia tranquilidade de coma: anestesiada, desaparecida em si. Respirava fundo, avessa aos tormentos dos fachos.

Logo o animal que fugia dos trovões e das descargas elétricas nos morros.

A família se preocupou com a súbita quietude e fotografou seus movimentos nos dias seguintes. Quando ela caminhava de costas, invocávamos seu nome e ela não recuava. Batíamos palmas e ela sequer mexia o pescoço.

Reprisei que Cora não atendia nossa voz como antes, não obedecia pedidos para sentar ou deitar, não vinha na cozinha quando gritávamos "hora da comida", não abanava o rabo com a trilha sonora que Cínthya criou para ela.

Também latia menos e dormia o dobro.

Uma vitória-régia boiando na sala. Uma sanfona se coçando de vento.

Entrávamos de madrugada na residência e ela não respondia. Tínhamos que tocar em seu pelo para despertar uma reação. O tato era o seu último alerta.

As cenas foram esclarecendo os sintomas. Descobrimos que nossa cachorrinha está surda. Não escuta nada.

Despertou uma dor avulsa. Uma dor de azulejo de pares quebrados.

Cora não entende que foi ela que deixou de ouvir, mas acredita que nós deixamos de falar com ela.

Na cabeça da cachorrinha, sem explicação, todo mundo parou de procurá-la.

De repente, ninguém mais a chama, ninguém mais canta para ela, ninguém descreve as paisagens.

No seu universo preto e branco, a surdez é concebida como um castigo. Ela não sabe o que fez de errado para desaparecer o som de nossas bocas.

E treme de frio quando nos observa. Um frio de medo, não de vento. Um frio de quem precisa entender o que aconteceu. Olha longamente as vogais de sabão saindo dos nossos lábios e subindo aos céus. Palavras áereas, mudas, velozes.

Conto tudo assim porque amor é mudar, sempre mudar, sempre se adaptar. E nunca cansar de criar idiomas.

É agora pegar Cora mais no colo, é falar com as mãos, é se aconchegar ao seu corpo para que não mais estranhe o silêncio e reconheça os timbres pelo olfato.

UM ANO SEM CIGARRO


No Teledomingo, programa da RBSTV, exibido na noite de 1º/1, comento nossa dificuldade de fazer mudanças e admitir troca de hábitos (e a consequente criatividade para desculpas e adiamentos). Comemoro também um ano sem cigarro. Assista aqui.