terça-feira, 31 de maio de 2011

SALINHA

Arte de Van Gogh

O cheiro é meu alfabeto.

Esqueço nomes, não apago cheiros. Esqueço rostos, não abandono cheiros.

O cheiro é minha memória.

Não há como repetir certas fragrâncias: a da merendeira, por exemplo. Precisaria alternar maçãs e bananas, reeditar a porção certa de queijo, de manteiga e de mortadela dos sanduíches preparados pela mãe, refazer a umidade precisa do guardanapo que envolvia o pão e derramar o Nescau na hora de desenroscar a pequena térmica, durante cinco anos seguidos, para alcançar algo parecido.

O cheiro me explica, o cheiro é que me puxa. Revisei os principais cheiros de minha vida – o do cabelo de minha mulher após o banho, o do estojo de lápis de cor, o do balcão do armazém do Seu Zé, o do lençol novo de hotel, o de estofado de carro zero, o do forro das gavetas – depois de visitar a Escola Estadual Leopoldo Tietbohl, em Porto Alegre.

Entrei na biblioteca para uma palestra, e respirei fundo o ambiente das prateleiras de metal, das cartolinas e do universo retangular das mesas e cadeiras creme.

Levei um soco do vento, um solavanco.

Foi uma nebulização mais do que um acesso nostálgico.

Eu tenho uma biblioteca imensa, tenho amigos com bibliotecas imensas, pais com bibliotecas imensas, mas nenhuma delas tem um cheiro semelhante ao da biblioteca da escola.

As residências exalam um olor de visita, de horário marcado. Uma lufada impessoal de escritório, lustra-móveis, ar-condicionado. Apesar das estantes forradas e do convívio familiar, não é o cheiro da salinha de livros do colégio.

Não identifico o que existe de diferente. Mas vejo, sinto, confirmo a diferença.

Será que a passagem de milhares de alunos muda a textura das paredes? Que cheiro é aquele? Uma mistura de ventilador, de mimeógrafo, de papel secando, de bala azedinha... Um cheiro inexplicável, doce e salgado ao mesmo tempo, como alguém que mastiga bolacha de sal e bebe refrigerante.

Todas as bibliotecas de todas as escolas do mundo têm o mesmo cheiro. Pode ser a pressa das vozes ou as mãos suadas dos alunos nas páginas ou a combinação entre avental e uniforme ou a caneta bic falhada na ficha catalográfica ao final dos volumes ou a manta da bibliotecária ou seus suspiros por um amor platônico.

Ou pode ser que não entreguei algum livro emprestado e agora pago multa com as palavras.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 1º/06/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16716

sábado, 28 de maio de 2011

SERAFINS DO RIO URUGUAI

Atual campeão do Festival do Idoso, Zuze busca inspiração em pássaros ao cantar, para deleite da mulher, Natalina. Fotos de Adriana Franciosi

O idoso não apenas tem direito a voz, mas a cantar em Alecrim, cidade gaúcha a 533 quilômetros de Porto Alegre, banhada pelo Rio Uruguai e fronteira com Argentina. O município de 8 mil habitantes criou o festival do idoso, conhecido como Canção Alecrinense.

Em sua terceira edição, é um programa de calouros reservado aos avós, um American Idol dos sexagenários, realizado a cada dois anos, sempre no final de maio, quando a neblina embrulha para presente as residências no inverno. Depois de seletivas nos 14 grupos da terceira idade da cidade, oito finalistas disputam o troféu diante de um ginásio lotado, que ultrapassa 600 espectadores.

– Mostramos que é bonito e divertido envelhecer, há um contingente forte de idosos, a maior parte da população – explica a psicóloga Liane Maria Stein, 28 anos.

O competição mobiliza as 44 comunidades rurais do charmoso lugarejo na fronteira noroeste do Estado. Concorrentes fazem duplas ou treinam interpretações individuais em festas mensais, ansiando pela consagração vocal na aposentadoria.

– Melhor ser descoberto tarde do que nunca. E cantar na velhice é estar próximo dos anjos – raciocina o motorista Telmo Bárbaro, 59 anos, que ainda não tomou coragem de se inscrever no certame e arrisca serenatas em segredo.

O ex-funcionário da Corsan José Filipowictz, 64 anos, apelidado de Zuze, é o atual campeão, o Serafim de Alecrim. Em parceria com Hélio Wilers, venceu o concurso com a canção Água é a Fonte da Vida. Naquele momento, atingiu o ápice de sua trajetória de artista e de assíduo colaborador das rádios da região.

– Meu marido é um passarinho, só que nosso casamento de 42 anos não é uma gaiola – diz Natalina, 64 anos.

E é ouvindo as aves que Zuze aprendeu a voar com a voz, mantendo-se fiel à música sertaneja de raiz, que tematiza os dramas amorosos:

– Ganhar dos colegas foi complicado, mas brabeza é superar a afinação do canarinho, do sabiá e da gralha azul que povoam meu quintal de árvores, às margens do Rio Santo Cristo. A floresta é o principal palco do mundo, um coro de extremo rigor, não aceita qualquer um.

– O pássaro junta inspirações como quem faz um ninho ao peito – poetiza o Pavarotti da viola caipira, que não abre mão das sandálias de pescador e da boina de missioneiro.

Zuze e Natalina moram numa solitária casa encravada no topo de uma mata de eucaliptos, mais próxima do território argentino (seis quilômetros) do que do centro de Alecrim (nove quilômetros). Ele montou um pequeno estúdio no galpão para receber seus amigos. Desde 5h, alterna a potência de seu timbre com a viola e com a gaita. Já ela gira ao seu redor, servindo chimarrão, comentando notícias do radinho de pilha, falando coisas de amor.

– Acordo bochechando melodia – confidencia Zuze.

– Ele interpreta suas composições 10 vezes ao dia, tenho música de sobra para não esquecer tudo o que vivemos juntos – descreve Natalina.

– A canção estica a vida – suspira Zuze.

Alecrim é uma procissão de anjos. Todos da terceira idade. Lá as pessoas não morrem, ficam cantando.









Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 35, 28/05/2011
Porto Alegre, Edição N° 16713
Veja o campeão do Festival da Canção Alecrinense, José Filipowictz, interpretando uma de suas letras, Pedido de Socorro.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

BELEZA INTERIOR PELO RS


RBS TV SANTA ROSA
Matéria exibida em 26/5/2011

OS DONOS DE CASA





Revista Época
23 de maio de 2011 Nº 679
P. 128, Mente Aberta

quarta-feira, 25 de maio de 2011

INJUSTIÇA

Arte de Cínthya Verri


— Não confie na frase de sua avó, de sua mãe, de sua irmã de que um dia encontrará um homem que você merece.

Não existe justiça no amor.

O amor não é censo, não é matemática, não é senso de medida, não é socialismo.

É o mais completo desequilíbrio. Ama-se logo quem a gente odiava, quem a gente provocava, quem a gente debochava. Exatamente o nosso avesso, o nosso contrário, a nossa negação.

O amor não é democrático, não é optar e gostar, não é promoção, não é prêmio de bom comportamento.

O melhor para você é o pior. Aquele que você escolhe infelizmente não tem química, não dura nem uma hora. O pior para você é o melhor. Aquele de quem você procura distância é que se aproxima e não larga sua boca.

Amor é engolir de volta os conselhos dados às amigas.

É viver em crise: ou por não merecer a companhia ou por não se merecer.

Amor é ironia. Largará tudo — profissão, cidade, família — e não será suficiente. Aceitará tudo — filhos problemáticos, horários quebrados, ex histérica — e não será suficiente.

Não se apaixonará pela pessoa ideal, mas por aquela que não conseguirá se separar. A convivência é apenas o fracasso da despedida. O beijo é apenas a incompetência do aceno.

Amar talvez seja surdez, um dos dois não foi embora, só isso; ele não ouviu o fora e ficou parado, besta, ouvindo seus olhos.

Amor é contravenção. Buscará um terrorista somente para você. Pedirá exclusividade, vida secreta, pacto de sangue, esconderijo no quarto. Apagará o mundo dele, terá inveja de suas velhas amizades, de suas novas amizades, cerceará o sujeito com perguntas, ameaçará o sujeito com gentilezas, reclamará por mais espaço quando ele já loteou o invisível.

Ninguém que ama percebe que exige demais; afirmará que ainda é pouco, afirmará que a cobrança é necessária. Deseja-se desculpa a qualquer momento, perdão a qualquer ruído.

Amar não tem igualdade, é populismo, é assistencialismo, é querer ser beneficiado acima de todos, é ser corrompido pela predileção, corroído pelo favoritismo. É não fazer outra coisa senão esperar algum mimo, algum abraço, algum sentido.

Amor não tem saída: reclama-se da rotina ou quando ele está diferente. É censura (Por que você falou aquilo?), é ditadura (Você não devia ter feito aquilo!). É discutir a noite inteira para corrigir uma palavra áspera, discutir metade da manhã até estacionar o silêncio.

Amor é uma injustiça, minha filha. Uma monstruosidade.

Você mentirá várias vezes que nunca amará ele de novo e sempre amará, absolutamente porque não tem nenhum controle sobre o amor.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 24 de maio de 2011

CÚMULO DO AZAR

Arte de Lucien Freud


Se nascer fosse por sorteio, não estaria aqui. Nunca venci nenhum. Nem rifa na escola. Muito menos de galeto de igreja.

Acho que me faltou traquejo popular, arruda, figa, reza braba, assistir ao Silvio Santos e seu baú da felicidade. Careci de treino. Quando pequeno, não jogava bingo com cinamomos. Quando adolescente, rompi corrente de cartas e e-mails, os remetentes não me perdoaram e amaldiçoaram minha caixa postal.

Não levei TV, geladeira, máquina de lavar das contribuições mensais para entidades carentes. Por mais que levante a carteira de sócio no estádio, a camiseta do time não pousará em meu armário.

O vizinho Geraldo arrebatou uma bicicleta de rede de lojas. Minha mãe arrecadou um liquidificador do Pão dos Pobres. O tio Otávio foi escolhido para uma viagem a Porto Seguro com acompanhante.

Há sempre alguém perto de mim que teve um tiquinho de bênção, um naco de fortuna, uma fatia de torta do destino.

Não desprezaria grampeador, caixa de lápis de cor, passeio no Cisne Branco. Qualquer prêmio para esnobar aos amigos e familiares. Qualquer oferta, para dizer que os dias não são iguais.

Mas sou um azarado. Vivo colocando cupons em arcas transparentes nos shoppings, guardando notas e números, conferindo extrações da Caixa Federal, mas carro zero não entrou em minha garagem. Sorteio de livros em lançamentos não vem para mim, sorteio de ingressos na rádio não encontra meu nome. Numa festa de aniversário, todos receberam brindes, menos eu. Sequer ganhei um final de semana num motelzinho de estrada.

A sorte não brinca comigo. Eu me vejo como resultado da insistência. Não espero facilidades e recompensas do acaso. Trabalho desde cedo para me aposentar tarde.

O que não merecia é ser traído pelas promoções de restaurantes e locadoras.

Minha ambição era completar 10 locações para merecer um filme grátis. No momento em que partia para o último X, a locadora fechou. Aquilo me magoou. Quase depredei o local. Fui contido pelos amigos imaginários.

No restaurante Parrila del Sur, repeti o feito. Talvez demore meses para preencher os quadradinhos, sei lá; quando fui descontar a dezena, não existia mais a oferta. Arre, é muito olho-gordo, coincidência lazarenta.

Triste mesmo é ver que fui sorteado apenas pelo Imposto de Renda para a malha fina.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 24/05/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16709

sábado, 21 de maio de 2011

UMA JOIA DE FUSCA

Zenir Disott é tão apaixonado por Fusca que já teve dois, e de vez em quando pede emprestado o modelo verde 1971, do vizinho. Fotos de Adriana Franciosi

(  ) Fusca não é um veículo, mas um familiar.
(  ) Troca-se de carro, não de Fusca, ele permanece como herdeiro para os filhos.
(  ) Fusca é o único automóvel que recebe apelido.
(  ) Fusca nunca será passado em Joia.
(X) Todas as alternativas acima estão corretas.

O município de 8 mil habitantes, a 424 quilômetros de Porto Alegre, demonstra ter a maior frota do carro no RS, proporcionalmente à população. Dez minutos no centro e cinco Fuscas passam, rugindo de vaidade a cada seta e curva.

– O Fuca, como o gaúcho diz, sem o s, é a nossa adoração – afirma a advogada Lígia Bernardes.

Agricultores usam o Fusca para o vaivém da lavoura, jovens empregam o Fusca para conquistar gurias. Em Joia, ele sequer saiu de moda. A cidade é uma Cuba brasileira dos carros antigos, um museu a céu aberto, um túnel no tempo.

– Sempre tem um deles por semana para consertar. Ele forma minha aposentadoria – comenta o mecânico Sani Jorge Goulart, 50 anos.

O carro zero mais vendido no mundo em 1972 e atualmente o usado mais revendido no país é a paixão de Zenir Disott. O gaudério já teve dois deles, e não cansa de sua praticidade. Para andar um pouquinho no modelo verde de 1971 do vizinho, até se oferece para uma boa ação, como levar a filha do compadre, Aline Facin, 25 anos, à rodoviária.

– Não há necessidade de pedir licença, é o carro mais próximo do cavalo em termos de confiança.

Sua vida foi influenciada pelo Fuca.

– Aprendi a dirigir nele, tive a primeira namorada nele, às vezes tinha que abrir o vidro para dar espaço ao amor.

– Fusca vale para quem trabalha e para quem coleciona. É disputado como relíquia. Investe-se mais aparelhando o Fusca do que se gasta comprando um veículo novo – conceitua o comerciante Marion Alves, 48 anos.


Existe toda uma história de cobiça secreta para garantir a sonhada máquina na garagem. Marion surpreendeu o filho Glauber, 26 anos, no Natal de 2010. Ofereceu um Fuscão preto de presente. O rapaz viajou a trabalho para Panambi, onde é funcionário público concursado. Seu irmão Glauco, 23 anos, ficou o responsável por cuidar do Negrinho. Feito o golpe de estado.

– Vá que um dia Glauber veja meu capricho (lavo a carroceria semanalmente), e me libere o auto para sempre – chantageia.

– Se acontecer, juro que canto na praça a canção de Almir Rogério: Fuscão preto você é feito de aço/ Fez o meu peito em pedaços.

Apesar dos 1m86cm, Glauco entra facilmente no carro:

– Fuca tem um fundo falso.

Sua teoria é de que o Fusca sensibiliza o dono pela humildade e pela aparência terna de besouro, de capô redondo e faróis graúdos parecidos com olhos de órfão.

– É simples e confortável, a manutenção é fácil, não precisa entender de mecânica, ele entrega seu coração sem mistério.

Acostumado a viajar para Ijuí, a 40 quilômetros de Joia, o Fuscão preto não o deixa na mão. Um arame e uma caixinha de fósforos são seu pronto-socorro.

(X) É o carro que mais ressuscita quando morre.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 30, 21/05/2011
Porto Alegre, Edição N° 16706
Veja vídeo de Glauco Alves, 23 anos, dá uma volta por Joia no Fuscão preto.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

PELO BRASIL (MAIO E JUNHO)


24/5 (terça-feira) – Porto Alegre (RS), 20h
Sarau Elétrico
REI DO LAR: com Luís Augusto Fischer, Cláudio Moreno, Claudia Tajes e Kátia Suman
Sessão de autógrafos do Borralheiro (Bertrand Brasil)
Local: Bar Ocidente
(Av Osvaldo Aranha, 960, Bom Fim)

25/5 (quarta-feira) – São Paulo (SP), 19h
13ª Feira do Livro da USP
Palestra
Local: Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP
(v. Arlindo Béttio, 1000 - Ermelino Matarazzo)

28/5 (sábado) –Porto Alegre (RS), 10h
7ª Feira do Livro do Clube do Professor Gaúcho
Patrono
Local: Sede CPG Ipanema, Salão Thereza Noronha
(Av. Guaíba, 12.060)

1º/6 (quarta-feira) – Guaíba (RS), 10h30 e 19h
22ª Feira do Livro de Guaíba
Palestra
Local: Praça da Bandeira

3/06 (sexta-feira) – Ribeirão Preto (SP), 10h
11ª Feira do Livro de Ribeirão Preto
Palestra
Local: Praça Carlos Gomes

8/06 (quarta-feira) – Canoas (RS), 19h30
27ª Feira do Livro de Canoas
Palestra Encontros com o Autor
Local: Praça da Bandeira
(51) 35922129

10/06 (sexta-feira) – Porto Alegre (RS), 8h30
Núcleo Regional do Rio Grande do Sul (IEL RS)
Palestra
Local: Centro de Convenções da FIERGS
(Av Assis Brasil, 8787)
Tel.: (51) 3347.8961

13/06 (segunda-feira) – Caxias do Sul (RS), 20h
Palestra para pais e alunos
Escola Mutirão Objetivo
Local: Auditório da Faculdade da Serra Gaúcha
(Rua Os Dezoito do Forte, 2366)

14 e 15/06 (terça e quarta-feira) – Brasília (DF), 20h
Programa Escritores Brasileiros no CCBB ano II
Zélia Duncan lê Carpinejar
Local: Teatro I do CCBB Brasília (SCES Trecho 2, conjunto 22)
Telefones da produção: (31)38915318/ (31)38925993

quarta-feira, 18 de maio de 2011

O SOLUÇO

Arte de Cínthya Verri


A paixão é descoberta, tudo no outro é novo e nos agrada. Vive-se uma tolerância exacerbada, perguntamos mais vezes, aceitamos o que é estranho, mergulhamos numa fase didática do corpo e da personalidade.

Não existe nenhuma solenidade para explicar, não nos enervamos, toda questão é pertinente, atravessamos madrugadas repetindo recordações.

O que odiamos não é tão grave assim para ser defendido. O que adoramos não é tão imutável assim para não ser contrariado. Atrasos são creditados ao engarrafamento. Ofensas são perdoadas com afagos no rosto. A separação é impossível, acreditamos até depois que se provou o contrário.

Quando conheci Cínthya, no segundo dia juntos, ela soluçou. Aquilo foi inacreditável. Parei em sua frente, incapaz de buscar um copo d’água. Vidrado em seu soluço, admirado, embasbacado. O soluço era a gargalhada do medo, não podia permiti-lo escapar. Esperava um por um dos saltos de sua voz. Vontade de apanhar os sons pela casa como bolhas de sabão.

Seu soluço brilhava para mim. Já cronometrava o intervalo das ocorrências. Agia como um cientista, um sábio de soluços, sua boca caminhava sobrenatural pelos meus olhos, anotava as constelações dos traços e as estrelas das pintas, procurava a mínima casualidade para fundamentar a predestinação do nosso encontro, e confirmar a suspeita de que éramos para a vida inteira.

Naquela época, multiplicávamos os milagres. Não tinha somente confiança nela, tinha fé.

Depois, quando veio o amor, parece que a relação extraviou o encanto. Tudo é conhecido e nos irrita. Surgem reclamações, a pressa, os incômodos dos hábitos em comum. Pertencemos a uma legião inumerável dentro do casamento dos saudosos da paixão, que não entendem o que aconteceu de errado.

Eu digo que não houve nada de errado. Não há nada de errado.

Não é que o outro deixou de dar, é que amamos mais. Não é que o outro está ausente e acomodado, é que exigimos mais. Ficamos insaciáveis, pois recebemos ternura de alguém como nunca antes.

O que indica desamor é nosso desejo infinito de completude.

As reivindicações aumentaram com a intimidade. O que antes era atenção hoje é rotina. Aguarda-se que o par conserve nossas características, necessidades e aspirações, que não se desligue um minuto, que não renuncie a gentileza sequer para ir ao banheiro.

Somos mais suscetíveis, frágeis. Temos mais a perder. Choramos com a mínima elevação do timbre numa conversa.

As expectativas estão dobradas, a carência triplicou, não admitimos qualquer coisa, queremos que nossa companhia contextualize a raiva, suporte o azedume, ajude no excesso de trabalho, ampare a educação dos filhos. Despejamos, numa única pessoa, a nossa raiva, a nossa esperança, a nossa ansiedade. Por enxergá-la sempre, é com ela que brigamos — não temos ninguém mais a recorrer.

Se a paixão é descoberta, o amor é invenção. Não abandone o futuro porque ele já é menor do que o passado.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 17 de maio de 2011

ANEL DE LATA SERVE DE ALIANÇA

Arte de Eduardo Paolozzi


Uma moeda antiga, uma almofada de alfinetes, uma pulseirinha colorida.

A gente se prende a uma coisa pequena, insignificante para o mundo, especial para nós. Não há como esclarecer o sentido da devoção.

É algo que combina com a alma mais do que com o corpo, que gira nas mãos como uma chave do pensamento.

*

Na infância, guardava uma pena de ganso dentro do estojo. Ai se algum colega tirasse do lugar. Minha irmã Carla usava uma correntinha de coração. A bijuteria barata seguiu pelo seu pulso vida afora. Nunca trocou por nenhum brilhante.

Eu senti o apego durante um voo de volta a Porto Alegre. Estava com um terno cinza, retrô, escrevendo no caderninho e, de repente, a caneta estourou. Demorei a perceber sua ação. A ponta transformou-se num soro, pingava cada vez mais grosso. Uma mancha de petróleo se espalhou pelo mar de linho. Eu me desesperei, peguei os guardanapos e comprimi as áreas atingidas pela tinta. Pedi ajuda para a aeromoça, que me alcançou um pano com água quente.

*

Redundei a poça ao esfregar o tecido, pichei sem querer as próprias roupas. A aeromoça me aconselhou:

– Por que não põe a caneta no lixo?

Apesar da sujeirada que causou, segurava a esferográfica o tempo todo. Protegia aquela peça suicida, de veias abertas.

– Por que não põe a caneta no lixo? – a aeromoça agora levantava a cesta, quase me ordenando.

– É verdade – disse, mas não a descartei. Bateu uma impotência. Fiquei com compaixão da caneta, do que ela havia anotado comigo, de sua fidelidade à minha letra.

*

Abandonaria o objeto quando ele mais precisava de mim. As roupas sujas não me doíam, mas a caneta gritava, era um osso de meu dedo. Porque ninguém iria se importar com ela, a não ser eu.

Sempre foi dessa forma: a caneta explodia em meu bolso e ia socorrê-la, alheio ao estrago que produzia em mim. Poderia ser uma Mont Blanc ou uma Bic. Não é pelo preço, e sim pelo misterioso valor emocional.

*

Se já temos uma relação obcecada e incompreensível com um simples pertence, imagine a loucura que é o nosso gosto amoroso. Desisti de justificar a um amigo o que sinto por uma mulher. Amor é muito pessoal. Não se explica. Não requer motivo. Talvez aquilo que seja o inferno para os outros seja o éden para mim. Nem procuro mais disfarçar as manchas.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 17/05/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16702

sábado, 14 de maio de 2011

FOFOQUEIRO DO BEM

Os 23 mil sepeenses sabem que o que chegar aos ouvidos de Mateus irá adiante. Talvez por isso mesmo ele seja um confidente tão requisitado. Foto de Jean Schwarz

Fofoca é melhor do que notícia: corre mais rápido e aumenta com o tempo.

Sem um grande boateiro, a cidade do Interior não sobrevive. Ele é uma figura central para preservar a cadeia emocional dos acontecimentos e proteger a verdade dos interesses pessoais.

São Sepé, município a 259 quilômetros da Capital, tem um surpreendente porta-voz dos cochichos no portão e dos sussurros na janela. E não é uma mulher e ainda é jovem.

Sua frase preferida é:

ADIVINHA O QUE ACONTECEU?

A população de 23 mil habitantes não resiste à sua lábia.

Mateus Friedrich Barreto, 20 anos, estudante de jornalismo e estagiário da Câmara Municipal de Vereadores jura que não conta para ninguém o que escuta. Mas não acredite. Ocupa o dia inteiro espalhando as últimas pelas redes sociais, praças e restaurantes.

É o maior fofoqueiro da paróquia. Até os taxistas invejam seus mexericos.

É por ele que o morador sabe quem está grávida, quem traiu quem, quem brigou, quem foi demitido, quem chorou.

A simpatia e a aparência ingênua desarmam qualquer crítica e alimentam a reincidência das confissões.

– Por mais que a gente tenha noção de que sua natureza é passar adiante, voltamos a nos confidenciar com ele porque é um amigo que tem prazer de nos ouvir – afirma a jornalista Camila Gonçalves, 25 anos.

Mateus se tornou um especialista dos bastidores, araponga emocional. Tem uma legislação própria. Não inventa em cima dos fatos, recusa ironia e sarcasmo que distorcem o comentário e descarta maledicências (intriga e picuinha) de gente que pretende se beneficiar da destruição de reputações.

– Meu papel é ajudar os tímidos a se expor, jamais ferrar alguém – graceja.

Ele aliou o sistema presencial (participar de rodas de chimarrão, sentar na varanda, conversar em supermercado e ter fofoqueiros filiais em cada bairro) com instrumentos virtuais de mensagens (Twitter, Facebook, Orkut e Foursquare).

Sua vocação reivindica exclusividade. Ele frequenta as festas de aniversário, bate o cartão em coquetéis e cerimônias oficiais, espia a movimentação de bares e cafés. Sua língua ferina não poupa ninguém, das autoridades aos colegas:

– Só o morto tem vida privada.

A receita de sucesso é largar uma novidade e não tocar mais no assunto. Uma pedrada certeira para o círculo de voz crescer até o infinito. O bom fofoqueiro planta a semente e some, não fica se vangloriando da descoberta.

A recompensa do trabalho é ouvir de volta, como se fosse novo, algo que ele mesmo espalhou:

– Alegria mesmo quando uma fofoca retorna e quem me conta não tem ideia de que fui eu a origem de tudo.

O apego pelo ti-ti-ti veio desde a infância, ao perceber que os familiares somente prestavam atenção nele quando abusava do suspense.

Mateus é um falso gago. Demora a falar de propósito, mostrando dúvida e hesitação. Finge que é um segredo para aumentar a curiosidade da vítima e fisgá-la para dentro da correnteza das histórias.

– Não sou mentiroso, sou exagerado, dramático, ansioso – explica.

Está convencido de que todo fofoqueiro é filho da cozinha.

A fome nunca mente. Os escândalos podem ser feitos no quarto, mas é na mesa que eles aparecem.









Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 30, 14/05/2011
Porto Alegre, Edição N° 16700
Veja confissão de Mateus, assumindo sua condição de fofoqueiro

quinta-feira, 12 de maio de 2011

FOLGADO


Consultório Poético não economiza lenço de papel e sinceridade. Homem se separou mas não deixa a casa. Sua esposa pergunta o que fazer.

Leia meu palpite:

"Da parte dele, que não fique jogando com o charme da carência. Da sua parte, que não aceite fim parcelado, o ódio não tem promoção."

Mais aqui.

BORRALHEIRO NAS SALAS DE CINEMA


Comercial a ser exibido no cinemas de Porto Alegre (Circuito Auwê: Instituto NT de Cinema e Cultura, Strip Center Bourbon e Unibanco Arteplex) e São Paulo (Circuito Auwê: Cine Livraria Cultura).

quarta-feira, 11 de maio de 2011

PESCARIA

Arte de Cínthya Verri


Seduzir é arte de sugerir mais do que mostrar. Não é para mentir, como a maioria acredita, nem elogiar demais, como alguns pregam.

Exige uma série de cuidados. Repasso o que li na revista Reader’s Digest de maio de 1951, matéria de Peter Risel, “Peixe grande ou pequeno: dicas para fisgar o macho perfeito”. A tradução é por minha conta, vejo que os conselhos permanecem atuais, apesar da distância de seis décadas.

* * *

Seja sincero com os defeitos e esconda as virtudes. Ocultar os recalques é permitir que ela encontre um por um conversando com sua mãe. Antes prevenido do que mentiroso.

* * *

“Por favor” é proibido. Amor não é esmola. Retira a estima da mulher. Ela odeia caridade.

* * *

Não tente entender ou resumir a alma feminina, procure complicá-la. Confusão é inteligência. Mulher gosta de ser vista como um problema para depois ser promovida a uma crise, para depois avançar em teorema e terminar como enigma.

* * *

Confessar que foi corno mata a esperança da mulher de maltratá-lo. Ela nem se aproxima. Não gosta de pensar que teve uma antecessora mais cruel. Quer ter a certeza de que poderá sofrer por ela como nunca antes.

* * *

O chato é involuntário: não sabe que incomoda. O importante é ter consciência da chatice para ser identificado positivamente como insistente.

* * *

O sedutor recebe fora a torto e direito. A diferença é que ele não aceita. Permanece perguntando, rindo de si.

* * *

Não saia em bando nas baladas. Mulher quando enxerga homem em turma conclui com tristeza: estão encalhados. Observe o ranking:

RUIM — ACOMPANHADO DE TRÊS AMIGOS: revela imaturidade, não desgrudou do recreio da escola.
PÉSSIMO — ACOMPANHADO DE QUATRO AMIGOS: alguém que depende de gangue e da proteção do grupo.
HORRÍVEL — ACOMPANHADO DE CINCO AMIGOS: é máfia, ela fugirá de você com medo de estupro.
TRÁGICO — ACOMPANHADO DE SEIS AMIGOS: pode esquecer, é uma rave gay.

* * *

Pretende se dar bem na noite? Vá sozinho à festa. Arrume um lugar no canto do bar para cutucar o gelo no copo. A solidão acentua o valor do combate. Revela coragem, indica independência e conhecimento do front. Não precisa se mexer — todos terão que pedir bebida no balcão.

Nos clássicos do faroeste, o herói está solitário enfrentando o mal; já os bandidos surgem sempre em roda. John Wayne e Clint Eastwood confiam somente no cavalo, e ainda com reserva!

* * *

Justamente o inverso ocorre para a mulher: andando em turma irradia a certeza de que é resolvida, sociável e atraente.

* * *

Não peça desculpa, faça piada com seu erro. Exemplo: em vez de lamentar uma grosseria, diga:

— Sou tosco mesmo!

Preserve o orgulho, é fundamental não se banalizar. Intragável o sujeito que se desculpa por qualquer coisa.

* * *

Evite rir à toa, sem nenhum motivo. Gera a impressão de que é louco.

Preste atenção na desigualdade social: ao responder com riso a pergunta feminina, o homem fica com a imagem de retardado; ao responder com riso a pergunta masculina, a mulher fica com a imagem de divertida e atenta.

Aconselhável rir após o riso dela. Como um complemento.

* * *

Não olhe aos lados na hora de beijar. Se possível, beije, tenso, como uma despedida, segurando a mão dela. Para que ela guarde o comando: boca = algema, amor = prisão. Assim não terá como fugir de você.

* * *

Homem tem a única missão na vida: incomodar a mulher. No início, ela dirá que você é irritante. No momento em que chamá-lo de insuportável, conquistou definitivamente o coração dela.




Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 10 de maio de 2011

GELADEIRA DE SOLTEIRO

Arte de Nicolas De Staël

Lar de solteiro não significa que estará desarrumado, com pilha de louça para lavar e parte das lâmpadas queimadas. O que diferencia o apartamento de alguém que vive sozinho do espaço de casais e de agrupamentos familiares são os sachês da geladeira. Centenas de sachês de mostarda e catchup ocupando as fôrmas dos ovos.

É que nem a praga do requeijão: nunca percebemos o início da doença, são tantos potes misturados aos copos, que a cristaleira deveria ser renomeada de estande de frios.

O sachê é a multiplicação da miséria. Não há modo de enriquecer após sua passagem, levará qualquer um para a falência ou às barrinhas de cereais.

Ele não tem a humildade de um visitante. Já chega como um movimento armado, uma passeata, uma calcutá de sósias. Tanto que duvide de sachê desacompanhado, não existe isso, chame o batalhão de operações especiais, trata-se de uma bomba.

Em primeiro lugar, porque a quantidade de cada bisnaga é ridícula; necessária uma dúzia para cobrir dois reles pedaços de pizza. Em segundo, não há como abrir a embalagem, a linha pontilhada é uma ironia. O biquinho fechado incita a truculência de um torturador – dependemos de várias opções para salvar a metade do conteúdo de uma. E não é prático, sempre nos lambuzaremos ou sujaremos a roupa.

Sachê é uma droga que vicia. Rapidamente o usuário se transforma em traficante. Surgem dentro dos pedidos de telentrega e espalham seus tentáculos de alumínio plastificado pela cozinha.

Para evitar a decadência, aconselho a jogar fora o que não foi usado no almoço e na janta. Nunca guarde. Ao preservar um exemplar, terá a infeliz iniciativa de economizar com os pacotinhos. Pensará que não precisa comprar alguns mantimentos, diminuirá a lista do mercado, e partirá para caçar saquinhos de azeite, vinagre e shoyu nos restaurantes.

Acabou a paz. Não vai parar de colher envelopes das cestinhas das mesas. Os amigos irão se envergonhar de sua companhia. Assumirá uma condição compulsiva, de colecionador histérico, com os bolsos forrados e as bolsas transbordando. Não terá mais vida social quando desfalcar o sal do cinema e o açúcar dos cafés, e não poupar sequer o adoçante.

Só o impacto de um casamento poderá salvar o sujeito. Só o amor para regenerar um cleptomaníaco de amostras grátis.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 10/05/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16696

domingo, 8 de maio de 2011

MÃE NÃO TEM FIM

Eu (direita) e Rodrigo no colo de minha mãe Maria Elisa, em 1974.

Minha mãe não tem igual. Eu não dormia fácil de pequeno, com aquele resmungo de cólica. Minha mãe me carregava no colo, me segurava pela barriga, e não me aquietava. Recusava bico, leite, conforto espiritual. Desdenhava da cama, do móbile, do carrinho, do andador. Aflita, ela pegava o carro e me levava para passear de madrugada. Na terceira quadra, me entregava ao sono. O carro foi meu segundo ventre. Até hoje quando sento no banco de trás, eu fecho docemente as pálpebras. É o único lugar em que fico em silêncio. Não me apresentei: sou o filho preferido de minha mãe. Meus irmãos também acham que são os filhos preferidos. Ela criou todo filho como se fosse único. Para cada um separava uma cantiga de ninar e um segredo. "Não conta para ninguém, tá?", ela me alertou. Como eu não falei para meus irmãos, nem meus irmãos falaram para mim, ninguém sabe qual o segredo que é meu, qual o segredo que é deles. Vários segredos juntos formam um mistério. É um problema quando estamos reunidos. Eu acho que ela cozinhou para mim, os outros também acham. É um problema quando estamos longe. Eu acho que ela só ligou para mim, os outros também acham. Ela reclama imensamente de mim, nunca está satisfeita com o que eu faço. Penso que somente reclama de mim, reclama da família inteira na mesma proporção. Assim como divide um doce de forma igual. Assim como divide o pão em fatias gêmeas. Mãe não tem dedos, tem régua. Reclamar é sua lista de chamada. Reclamar é um jeito disfarçado de sentir saudade. No fundo, torce para que eu me distraia de uma de suas regras. Ela aponta a louça para lavar, e logo limpa a pia. Ela pede uma carona, vou me arrumar, já tomou um táxi. Nunca pede duas vezes. Ou ela é rápida demais ou eu demoro. Na verdade, ela é rápida demais e eu demoro. Mãe é gincana. É agora ou nunca. Nem invente de responder nunca para ela. Sua reclamação tem virtude, sua reclamação é um quarto privativo, reclama só para mim. Para os demais, me torna muito melhor do que sou. Não me elogia para mim porque não quer me estragar. Tem esperança de que não me estraguei. Ela vibra quando encontra algo que não fiz. Inventa necessidades para ser reconhecida. Atrás da mínima palavra, pergunta se eu a amo. Ela escreve isso com os olhos, eu leio isso em seus lábios. O que a mãe mais teme é ser esquecida. Não tem como: mãe é a memória antes da memória. É a nossa primeira amizade com o mundo. O que parece chatice é cuidado. Cuidado excessivo. Cuidado a qualquer momento. Cuidado a qualquer hora, ao atravessar a rua, ao atravessar um namoro. Para o nosso bem, repete conselhos desde a infância. Para o nosso bem. Repetir o amor é aperfeiçoá-lo. Mãe não cansa de nos buscar na escola, mesmo quando não há mais escola. Mãe não cansa de controlar nossa febre, mesmo quando não há febre. Mãe não cansa de nos perdoar, mesmo quando não há pecado. Mãe não cansa de nos esperar da festa, mesmo quando já moramos longe. Mãe se assusta por nada e se encoraja do nada. Entende que o nosso não é um sim, que o nosso sim é talvez. Avisa para pegar o último bolinho, o último bife, em seguida arruma uma marmita para o lanche da tarde. Mãe tem uma coleção de guarda-chuvas prevendo que perderemos o próximo. Está sempre com a linha encilhada na agulha e caixinha de botões a postos. Conserva nosso quarto arrumado como se houvesse uma segunda infância. Mãe passa fome no lugar do filho, passa sede no lugar do filho, passa a vida guardando lugar ao filho. Mãe é assim, um exagero incansável. Adora chorar de felicidade nos observando dormir. Minha mãe chorava quando finalmente descansava no carro. Ela sussurrou o segredo, disse que eu era seu filho favorito. Não fofoquei para meus irmãos, não pretendia machucá-los. Eles também não me contaram que eram os favoritos dela.

É O INÍCIO DE TUDO.

sábado, 7 de maio de 2011

O CHIMARRÃO MAIS RÁPIDO DO MUNDO

Schwengber arruma o mate em oito segundos. Fotos de Jean Schwarz


O tempo de preparo de um chimarrão costuma ser de cinco minutos.

Não para o administrador Pedro José, 59 anos, que detém o recorde mundial. Arruma o mate em inacreditáveis oito segundos. Enquanto o leitor ainda está soletrando seu sobrenome (S-C-H-W-E-N-G-B-E-R), ele já acabou e estende a cuia.

Bigodudo, de lenço vermelho e vestido a caráter para o bochincho, dispensa firulas na hora de aprontar a mais famosa bebida do Rio Grande do Sul.

Qual o mistério? Nenhum: põe uma colher de erva, em seguida despeja água quente até o pescoço da cuia e cobre a abertura de novo com erva. Deu! O resto é empurrar o verde com a bomba e criar uma lateral.

– Temos que simplificar o ato e parar de assustar os visitantes, como se fosse difícil. Qualquer um pode preparar – avalia.

Sua crença tem produzido uma seita em Venâncio Aires, terra de 65 mil habitantes, situada a 127 quilômetros de Porto Alegre. Pedro coordena a escola itinerante de chimarrão, ONG criada em 2004 para preservar a tradição. Levou a expressão de “mala e cuia” a sério, estruturou um ônibus e escalou uma equipe de professores a ensinar como se arma um mate para as crianças no Estado. Transmitiu a arte do chá manso gaúcho a 1 milhão de pessoas.

– Gosto mais do chimarrão do que de café – confessa universitária de Direito da Unisc Eduarda Lenz, 17 anos, que frequentou a Escola de Chimarrão.

O mate é uma unanimidade em Venâncio Aires, uma mistura divertida de religião e ciência.

– Quem mora aqui é obrigado a tomar, senão não ganha desconto no IPTU – brinca Cíntia Leissmann, 22 anos, promotora de eventos.

Tudo no município traz chimarrão no nome: empresa de transporte, vidraçaria, sapataria, pet shop, mercado, salão de beleza. Na tarde dominical, cerca de 300 moradores lotam as escadarias e arredores da Igreja da Matriz para gervear à vontade, até o sol cansar.

– Nem compro erva, recebo de graça na praça central – diz a aposentada Elci Terezinha da Rosa, 62 anos, uma das seguidoras apaixonadas do amargo.

Dispensável perguntar para alguém da comarca se faz chimarrão, eles já saíram do ensino fundamental da erva, estão na pós-graduação.

– Faz chimarrão?
– Qual tipo? – respondeu o lojista Evandro Hochscheidt.
– Hein?

Há vários tipos de chimarrão na cidade, além das generalizações de “curto” e “longo”. Uma oferta de desenhos que supera os nós de corda da Marinha. Na verdade, ele é preparado em 32 modelos. Ou obedecendo a alguma figura (roda de carreta, formigueiro, ferradura e toca de tatu) ou seguindo uma estética (tapado, repartido, invertido) ou ainda de acordo com um ambiente (praia, serra, galpão).

– Acho que o chimarrão veio antes da mamadeira – ri Evandro.

Sua influência está na versatilidade do uso. Atende tanto momentos de solidão como de solidariedade.

– Quando estou sozinho, vou de chimarrão. Acompanhado, vou de chimarrão. Uma ida e volta de mim – diz.


Pedro José Schwengber tem na ponta da língua as recomendações médicas:

– É estimulante do coração e do sistema nervoso, elimina os estados depressivos e tonifica os músculos contra a fadiga e o cansaço; tem complexo B, cálcio, magnésio, sódio, ferro e flúor. Se o vinho é bom para saúde, o chimarrão é tribom.

O mateador mais veloz do mundo é cheio de H, carrega um termômetro junto da térmica.

– A água quente deve estar em 70°C. A temperatura determina mais o sabor do que a própria marca da erva.

Questiono se não é frescura medir a água quente.

– Bobagem, o mate é a nossa febre, não pode baixar.

OS MANDAMENTOS
Quem participa de uma roda em Venâncio Aires entrou no jogo carregado de regras e sutilezas.

1 - Não peça açúcar no mate.
2 - Não se entrega o mate ou se recebe com a mão esquerda.
3 - Ao se enganar, diga: Desculpe a mão!
4 - Só o cevador tem a licença para arrumar e mexer na erva. Não adianta fuçar a bomba ou ajeitá-la por conta própria, mesmo que o chimarrão esteja entupido. Devolva ao dono que ele arruma.
5 - O primeiro a beber é sempre o que fez.
6 - O segundo mate partirá para o mais velho ou para um homenageado.
7 - A cuia segue no sentido anti-horário, do lado direito (o lado do laçar) em diante, de volta ao cevador.
8 - Perderá pontos se não roncar a cuia. É preciso tomar a água até o fim, senão é descortesia.
9 - Não agradeça, é compreendido como uma despedida.
10 - Não durma com a cuia na mão.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 30, 07/05/2011
Porto Alegre, Edição N° 16693
Duvida da rapidez do bagual? Veja o vídeo de preparo do mate

sexta-feira, 6 de maio de 2011

SEM CENSURA



Veja minha participação no Programa Sem Censura, da TV Brasil, exibido na tarde de terça (3/5). Apresentação de Leda Nagle. Mais aqui.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

CUIDADO COM O OUVIDO

Arte de Cínthya Verri

Meus filhos sempre me fizeram dormir antes deles. Os dois: Mariana, 17 anos, e Vicente, 9. A sensação é que combinaram o crime na infância; um transmitiu a receita para o outro aproveitando a diferença de oito anos.

O mistério me atormentou, e escondi a informação de que adormecia primeiro. Era uma vergonha familiar, nunca seria perdoado.

Precisava me livrar desse segredo maldito.

Foram duas décadas de vexame no quarto. Depois de embalar e cantar, eu deitava um pouco ao lado de Vicente (década de 2000) e da Mariana (década de 90) para fingir que estava dormindo. E realmente adormecia. Não captava a origem do feitiço. Achava que fosse a respiração cheirosa ou a pele macia ou os barulhinhos engraçados da boca. Fracassava com o dever amoroso — não poderia ter deixado aquela adorável criatura me ganhar. Toda noite pedia uma revanche, e novamente perdia.

O que desvendei há pouco foi a tática de guerrilha das crianças. O caminho da Sierra Maestra de Fidel Mariana e Vicente Che Guevara. E, asseguro, que não está na enciclopédia “A Vida do Bebê”, de Rinaldo De Lamare, muito menos nos arquivos da CIA.

Minha vulnerabilidade reside na orelha. A orelha é o nosso sonífero, queridos pais. O éter no lenço. Nosso ponto fraco. Os pequenos encontraram a caixa de luz de nosso corpo, e só tiveram o trabalho de baixar o interruptor.

Qualquer marmanjo, qualquer diva tomba.

O nenê segura de um jeito incrível nosso ouvido. Apagamos no ato. Há um método histórico, a criança coloca uma força precisa, nem fraca nem forte, que não tem como reagir, a orelha ferve devagar, como uma timidez de fundo de sala de aula; a orelha fica quentinha, calma, segura; a orelha chama o travesseiro.

A mãozinha derruba o pavilhão auricular. Não inventaram uma cantiga de ninar à altura.

A façanha é digna de acupunturista: o bebê tapa o nosso ouvido, nos protegendo do frio e do vento, e ainda mexe os dedos pelas curvas do lóbulo. O momento fatal, derradeiro, é quando toma a franja da concha e dobra como se fosse uma página, marcando a leitura para o dia seguinte. O bebê marca onde parou a leitura de nossa vida na orelha, entende? Nosso ouvido é seu primeiro livro.

Uma tecnologia avançadíssima de ternura. Para a inveja das civilizações maia, inca, asteca.

Hoje me sinto apto a confessar e alertar o perigo. Nunca fiz nenhum filho dormir; em compensação, eles me curaram da insônia.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 3 de maio de 2011

VEJA COMO FOI O LANÇAMENTO DO BORRALHEIRO NO RJ


Transmissão pela Twitcam do debate com a cantora Maria Rita na noite de terça (3/5), na Livraria da Travessa, do Shopping Leblon, no Rio de Janeiro (RJ).

NÃO EXISTE PACIÊNCIA

Arte de Max Ernest

Pode confiar na mulher que nunca joga fora o xampu quando termina. Porque nunca acha que termina.

São vários potes no box do banheiro. Uma milícia de cheiros. A maior parte com um resto luminoso. Alguns virados para facilitar a saída desesperada da fragrância.

* * *

Um homem, diante daquela lágrima de cisne, não teria piedade e colocaria no lixo.

Não sem razão. É uma sobra simbólica que apenas se mexeria colocando água. Uma massa imóvel, que mal treme. O conteúdo não presta nem para dois enxágues. Para chorar um pouco no pulso, depende de tapas na bunda do pote. Todo xampu velho é um bebê nascendo.

* * *

Mas ela não descarta. Pensa que aquilo que não perfuma seus cabelos é ainda capaz de perfumar suas mãos.

Permanece com a esperança de que um dia terá uma emergência e ele será útil. Para seus olhos, nada está inteiramente morto, nada está inteiramente esgotado.

Contribuem para sua crença as brincadeiras de faz de conta na infância, a sopa de folhas e o refrigerante de terra. Não depende de muito para seguir vivendo, pede um mínimo de realidade; acostumada a sempre completar por sua conta.

* * *

Não existe paciência, somente fé. Mais da metade de um marido bom é imaginação feminina.

* * *

A mulher que não joga o xampu fora não jogará nenhum homem fora. A menos que ele esteja seco por dentro, acabado, sem nenhuma emoção para oferecer, consumido pelo silêncio da esponja. Ela eliminará o sujeito de sua vida após várias tentativas, até se convencer de que ele não rende nem mais espuma. Nem mais passado.

* * *

O que me leva a concluir que quem pensa demais não faz, não se arrisca, não se entrega. O pré-requisito é criado para impedir que mudanças aconteçam.

É necessário ser imaturo para amar. É necessário ser imaturo para engravidar. É necessário ser imaturo para juntar as tralhas e pertences, construir uma casa em comum, e seguir ameaçado pelo humor do próximo.

Merece o amor quem trabalha por ele, quem sofre por ele, quem não quis ser mais inteligente do que sensível, quem é absolutamente idiota para sacudir um pote de xampu já findo.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 3/05/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16689

ASSUMO COLUNA EM ZERO HORA


Vídeo do jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), 2/5/2011