quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A PAZINHA

Arte de Eduardo Nasi

Sempre fui fã de varrer. Vassourar não é um ato gentil, de empurrar a palha com cuidado submisso pelo chão.

Aquele que dança vagarosamente com o cabo mata o tempo, imagina passos de samba, jamais limpa.

A vassoura pede gestos bruscos e firmes. É para socar o solo, com obsessão de boxeador. A agressividade é o único jeito de recolher a sujeira do canto e espantar o pó.

A vassoura é uma trabalheira do inferno, de gente dura e fervorosa, por isso que zeladores optam por usar a mangueira para evitar o desgaste excessivo do pulso.

Quem pensa que varrer é proeza da delicadeza nunca faxinou um pátio.

Repare no gari de sua rua, ele transforma a vassoura em uma enxada, tamanha a força que empenha em seus braços.

Não dá mole para baganas, papéis grudados e chicletes. Finca a cabeleira sarará nas frestas do meio-fio, sem medo de quebrar o vento.

É heavy metal, é trash, é de uma crueldade ritmada.

Eu tenho medo de encostar o dedo no uniforme laranja, romper sua concentração e receber um tapa involuntário. Seria muito mais amistoso interromper o transe de um sonâmbulo.

Desde cedo, eu identifiquei a vocação violenta do hábito.

Recorria à vassourada como uma terapia, minha tarefa caseira de sexta-feira.

Suava, cansava os ombros, exorcizava a energia maldita.

Um dos primeiros sinais de minha independência foi quando descobri a possibilidade de varrer e segurar a pazinha ao mesmo tempo.  Tinha dez anos no instante em que equilibrei a vassoura numa mão e a pazinha noutra. Meio por acaso, meio aloprado pela pressa. E consegui depositar a sujeira inteira para dentro do vão. Aquilo mexeu comigo. Era como levantar o guincho de uma retroescavadeira.

As palavras se tornaram maiúsculas naquela manhã. Adquiria um superpoder, uma tecnologia avançada. Abobado, comemorei a repentina emancipação.

Antes dependia dos outros para terminar a missão. Recolhia as folhas do quintal, os ciscos, os abacates podres e esperava que a mãe ou algum irmão viesse me socorrer. Identificava a pazinha como um embargo, atrasava invariavelmente o futebol e as brincadeiras com o playmobil. Depois de gritar por apoio, mofava no terceiro degrau da área de serviço: horas mortas, baldias, desnecessárias.

Quando pude realizar tudo sem a ajuda de ninguém, eu me vi maduro. Finalmente podia morar sozinho, estava pronto para ficar solteiro mais do que casar.

Foi um dos poucos momentos de solteirice em minha vida.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
27/8/2014

terça-feira, 26 de agosto de 2014

CASA ALUGADA NA PRAIA

Arte de John Banting

Não possuir uma casa no litoral tinha seu valor.

Nunca sabíamos onde passaríamos o verão.

Nem o paradeiro, muito menos o endereço. Dependia da finança paterna.

Quando sobrava dinheiro, rumávamos para Santa Catarina. Quando faltava, íamos pelas praias mais próximas, como Pinhal e Cidreira.

Era uma surpresa constante.

O pai arrumava as malas, ajeitava o caos no bagageiro, reclamava que não veria nada pelo retrovisor e não abria nenhuma informação do nosso destino. Ele nos levava no escuro até o local que escolheu.

Brincávamos de cabra-cega durante o percurso.

Onde será? Quantas quadras do mar? Toda casa que enxergávamos pela janela poderia ser a nossa.

Eu me emocionava só de imaginar, nem precisava acontecer.

Os pais preferiam alugar e eu também.

Porque despertava uma competição alegre entre os irmãos.

Quem ficará com o melhor quarto, a melhor vista, o melhor esconderijo?

A entrada pela porta gerava uma corrida desesperada de inspeção.

– É meu, é meu, é meu! – os quatro filhos subiam as escadas e apontavam sem parar.

Não olhávamos direito o conjunto, invadíamos cada cama com a sanha de Colombos, Américos, Cabrais da orla, descobridores de novas terras e civilizações. Com o grito, queríamos garantir a prioridade da escolha.

Não deveria ser simples distribuir os lugares. Desencadeava decepção e piquete:

– Mãe, não vale, pedi primeiro!

Nossa justificativa infantil estava estruturada em pedir primeiro e depois fazer manha.

Vinha um sentimento confuso e misterioso na hora de ocupar o imóvel. Bendito e maldito, prazeroso e melancólico.

Era entrar numa residência totalmente desconhecida e mobiliada. O aluguel apenas civilizava o nosso roubo.

Desfrutaríamos de 30 dias para encarnar uma segunda família, já que a nossa não havia dado muito certo.

Não tirávamos férias somente de espaço e de tempo, mas também de personalidade.

Experimentávamos uma decoração diferente, costumes diferentes, um arranjo doméstico diferente, de quem a gente nem ouviu falar.

A mãe abria as gavetas para avaliar os talheres, abria as despensas para julgar panelas e pratos. Quando reconhecia algo bom, exclamava:

– Nossa, vai facilitar a vida!

Tanto que não carregava meus brinquedos na viagem, com exceção da bola.

Encontrava bicicleta de pneu furado, baldes e geringonças de crianças no depósito.

Alugar residência na praia significava herdar a infância de um outro menino.

Fingia não ser eu, colecionava cartas, perdia tardes consertando jogos, esquecia o meu futuro cuidando do passado de alguém.

Mantenho esse esquisito e fascinante veraneio dentro de mim. Consciente de que o mar nunca foi meu, sempre tive que devolvê-lo quando chegava março.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 26/8/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17903

A SOLIDARIEDADE DA DOR


Arte de Francis Picabia


Logo após a morte trágica do ex-governador Eduardo Campos, sua viúva Renata estava lúcida, sóbria, serena, tranquila. Não estava desesperada, chorando, esperneando, como era de se esperar. Era a mais atingida pela tragédia, com filho pequeno, mas a que mais confortava a família. Diante da verdadeira dor, somos fortes, decididos, solidários, dividimos os ombros, oferecemos colo. Na dor terrível, paradoxalmente, é o momento em que nos preocupamos com a dor dos outros.

Já quando a dor é falsa, já quando a dor é orgulho ferido, somos egoístas e negligentes. Acabamos nos isolando, só pensando em nós, só chamando atenção, só querendo aparecer, só pretendendo encontrar um culpado pelo sofrimento.

Na dor verdadeira, somos sábios, carinhosos, atentos.

Na dor falsa, somos individualistas, insensíveis e grosseiros.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (26/8) na Rádio Gaúcha programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O DIA SEGUINTE HOJE

Arte de Alexandra Nechita

Ao fazer festa em casa, do que mais gosto é a bagunça.

Não da festa em si, mas daquilo que precisarei arrumar no dia seguinte.

Sou vidrado pela ideia de reconstrução de um ambiente em algumas horas.

Tudo repentinamente fora do lugar, sujo, imundo, e há o desafio de reencontrar a ordem natural das coisas.

É uma recriação do mundo num final de semana.

O corredor beira o estado de sítio, o banheiro sofreu com o desespero dos boêmios, as estantes dos livros estão cheias de bandejinhas de salgados.

Nem espero o dia seguinte.

Nada mais íntimo dentro de um casamento do que o silêncio das 6h. Todos já foram embora, felizes com a balbúrdia, e nós dois decidimos ajeitar o lar enfrentando o cansaço.

O previsível era deitar com a roupa do corpo e desmaiar, desprezando os escombros e a vida virada pelo avesso.

Mas não, eu e minha mulher adoramos o pós-festa, quando estamos sozinhos.

Reina uma sensação de paz, de sobrevivência.

A faxina é partilhar a memória do encontro. Melhor do que roda de violão.

A faxina é fixar as lembranças antes que sejam corrompidas pela enxaqueca do meio-dia.

Ela segura o lixo de 100 litros e eu vou buscando as garrafas de cerveja espalhadas pelos cantos.

Vamos conversando sobre as cenas mais engraçadas da festa, o comportamento dos amigos, as coreografias das músicas ridículas.

Cada um repassa o que viu e o que conversou. Como anfitriões, tínhamos o trabalho de nos revezar por diferentes turmas e atender a todos, não deixar ninguém excluído e isolado. Naquele momento, completamos o quebra-cabeça da noite.

– Você falou com a Vanessa? E como ela está com o marido?

– Sim, pareciam alegres. Já passou a tormenta.

De nosso papo frugal, seguimos com o rodo e a vassoura, um encarando o outro com ternura.

De vez em quando, reclamo da dor nos braços. De vez em quando, ela reclama da dor nos pés. São exclamações naturais do sacrifício que não se estendem por muito tempo.

Ela massageia rapidamente meus ombros e diz que providenciará uma massagem mais tarde. Eu tiro seus sapatos, apertos seus dedos e juro que depois pego um creme para aliviar o estresse.

A admiração é feita de pequenas pausas e promessas.

E seguimos nosso baile mudo, nossa coreografia de espuma e detergente.

Lamentamos uma mancha que não sairá no sofá ou algumas cicatrizes novas nas paredes. Não choramos por algo que tenha sido quebrado. Entendemos que a amizade é para ser usada.

Recolhemos o exército de copos e cálices, os pratos sujos, e não nos intimidamos com a quantidade de louça que ocupa a mesa inteira da cozinha.

Dividimos as tarefas: primeiro os copos, depois os pratos, em seguida os talheres. Assim não sofremos com a dimensão assustadora do compromisso.

E continuamos nossa troca de impressões ouvindo os pássaros assobiando ao longe. Não temos certeza se são os rumores das aves ou se é a claridade cantando lentamente na janela.

Ela pergunta se estou com fome. Paramos um pouco nossa arrumação para esquentar salgados e comer sentados no chão da cozinha, na posição de índios ao redor da fogueira.

Corre entre nós uma cumplicidade apaixonada, como se só nossos olhos dançassem.

O amor não é apenas uma festa, como alguns imaginam. O amor é também dividir o trabalho de limpar a casa.

Acordamos com o apartamento brilhando e nos beijamos de olhos fechados, ainda sonhando.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 24/8/2014 Edição N°17901

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

COMO ACORDAR SUA MULHER FINGINDO QUE NÃO FOI DE PROPÓSITO

Arte de Burle Marx

- Encaixe uma conchinha já bem excitado. É irritante estar dormindo e sentir que o outro quer sexo.

- Levante da cama e deixe a porta levemente entreaberta.

- Entre no quarto para escolher a roupa com lanterna. Ela terá a sensação de que é uma operação da Polícia Federal. A lanterna é muito mais enervante do que a janela escancarada.

- Simule um telefonema e somente diga de maneira ininterrupta: “Sim Sheila, não Sheila, sim Sheila, não Sheila”. Ela deve acordar somente para perguntar quem é a Sheila.

- Chame as tias-avós para bater papo na sala. Elas estão surdas e vão conversar gritando.

- Cubra os pés de sua esposa com dois edredons. Como uma âncora. Para que ela passe calor.

- Pague um café para o zelador cumprimentar as pessoas que se aproximam no prédio, de preferência debaixo da janela do quarto.

- Chame a entrega do gás. Os entregadores apertam todos os andares até acertar o seu apartamento.

- Sacuda o pote de ração dos gatos no corredor para gerar miados.

Se nada vingar, apele para a demonstração de amor.

Leve café na cama. Definitivamente vai despertá-la. Apesar do mau humor, ela não pode reclamar de uma gentileza.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (22/8) na Rádio Gaúcha programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

NÃO SOU GAY

Arte de Eduardo Nasi

Desculpe decepcionar, mas não sou gay.

Sou hétero, tosco, apaixonado por buceta.

Sempre me relacionei exclusivamente com mulheres e será assim até o fim do meu tempo.

Não tenho nenhuma queda pela bissexualidade, não me passarei por moderno, não defendo swing, relação aberta ou sexo livre.

Minha liberdade sexual é intimidade.

Nunca me esconderia no armário, tenho muita roupa para guardar.

Seu preconceito é com qualquer um que conheça o universo feminino, como só o gay fosse sensível, observador e atento.

Você não gosta de homens que perturbem seus modelos.

Você gosta de homens monotemáticos, preguiçosos e diretos, presas fáceis da dominação.

Não é o meu caso. Posso ser submisso para influenciar ainda mais. Posso ser generoso para receber ainda mais.

O contrário é persuasivo. Quem é somente o que é não entendeu metade da missa em latim.

Talvez estranhe minha voz de turista (superei sérios problemas de dicção na infância), talvez estranhe meus gestos espalhafatosos (abraço até o vento), talvez estranhe minhas roupas extravagantes. No fundo, eu me acho apenas desengonçado.

Realmente sou educado: não vou arrotar em público, cuspir minha gripe no canteiro, palitar os dentes em churrascaria.

Minha preferência é por expor meus sentimentos: vou gritar por amor em público, pisar nos canteiros por ciúme, rilhar os dentes por justiça.

Não me envergonho de minhas dúvidas e sou capaz de permanecer horas ao telefone com amigos falando de relacionamento. Assim como qualquer mulher.

Sei fazer nó de gravata e, se precisar, posso ajudar a se maquiar. Assim como sei trocar lâmpada e pneu.

Na ausência de terapia, arrumo a casa. A faxina é um exorcismo barato, além de ser uma lição de humildade.

Gay não é aparência, gay é alma, e minha alma é essencialmente masculina. Tive vários casamentos e meu sonho é me aquietar com alguém que me entenda e me admire até envelhecer.

Sou independente, feio e estável financeiramente.

Aliás, sou tudo o que escrevo.

Minha solidão não dura sequer duas horas. Sofro de hiperatividade amorosa, sempre penso em fazer uma gentileza e agradar minha companhia. Ser carinhoso é também irritante, já que crio dependências desnecessárias.

Amo balada desde que possa sair na hora em que quiser. Festa boa não significa ficar até amanhecer, já aprendi isso em minha adolescência.

Danço com os braços e as pernas, meu quadril não se movimenta, infelizmente. Meu samba é batucar caixa de fósforos, desafiando a escuridão.

Cozinho apenas o básico para os filhos: ovo, arroz, massa e bife. Pai PF.

Perco meu senso de humor quando meu time perde. Vou ao estádio aos domingos, com a minha camiseta da sorte e o radinho de pilha da minha infância.

Sofro quando sou incompreendido, mas também quando sou compreendido rapidamente (daí eu me sinto superficial).

Meu temperamento não é fácil: encontro sempre uma desculpa para minhas falhas ou inverto a conversa para me beneficiar.

Não tenho motivos para mentir.

Olhe só como o mundo mudou: hoje temos que assumir que somos hétero.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
20/8/2014

terça-feira, 19 de agosto de 2014

CEBOLÃO E ESCAPULÁRIO

Arte de Max Ernst

Amo ganhar presente.

Finjo que não, mas amo ganhar presente.

Digo que não precisava, mas amo ganhar presente.

O presente de minha preferência é o usado, nenhuma novidade ou lançamento.

É receber algo de precioso do outro. Algo que o outro usava.

É uma herança em vida. É uma partilha em vida. É desafiar a morte distribuindo a própria existência.

Pode ser um anel, um livro, um casaco.

Não há maior demonstração de amor do que subtrair um objeto de seu cotidiano para premiar um amigo.

É repassar, além da lembrança, o nosso estilo.

É repassar, além da homenagem, a nossa estima.

Diferente daquele que compra um novo para não emprestar, é dar o que é seu, pois encontramos quem nos representa, encontramos a nossa extensão, encontramos quem cuidará de nossa fortuna simbólica como se fosse a gente. É atravessar o espelho muito mais do que uma porta.

Recebi de meu pai um cebolão. Um relógio antigo, azul fosco, com pulseira de metal, de marca Technos. Fui descobrir depois que era do avô, e que a peça foi repassada de geração a geração.

Tinha 12 anos. Ele tirou de repente da mão esquerda no meio do almoço. Mal repousou em meu braço magrela: enorme, pesado, brilhante. Mais parecia um relógio de parede, um cuco do pulso.

Lembro que fiquei tão feliz que fui jogar futebol naquela tarde com o bambolê das horas balançando em meu pulso. Talvez tenha confundido com uma braçadeira de capitão.

Meu pai, quando me ofereceu o que mais gostava de presente, estava afirmando:

– Tome, seu tempo é meu tempo. Você me continua. Você me segue.

Ele não alcançava apenas o relógio, e sim seu tempo. O tempo de suas convicções. O tempo de suas palavras. O tempo de suas recordações.

Carrego o relógio paterno com indisfarçável orgulho, assim como o escapulário de minha mãe.

Ela colocou em meu pescoço quando me formei em Jornalismo, corrente de oração que foi da avó e da bisavó. Há o rosto de Cristo num coração em chamas. É um pouco assustador, como tudo que envolve a fé.

É curioso concluir que o pai quis me dar seu tempo e a mãe quis me dar seu Deus.

O primeiro preocupado com meu futuro e a segunda preocupada com a minha salvação.

Até hoje meu pai sempre diz que pensa em mim e minha mãe sempre diz que reza por mim.

Relógio e escapulário formam minha família no meu corpo.

Nem somente casais têm alianças, mas também pais e filhos.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 19/8/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17895

A VERDADEIRA JANELA

Arte de Mimi Parent

Quando o destino fecha uma porta, temos o costume de ajudar o azar e dar mais uma volta na chave. Terminamos nos trancando ainda mais. Aproveitamos para nos isolar ainda mais.

Entramos no modo conspiratório: o mundo está contra nós.

A paranoia é o mel para atrair coisas ruins.

Mas poderia ser diferente.

Quando o destino fecha uma porta, poderíamos abrir o vestido da esposa.

Quando o destino fecha uma porta, poderíamos abrir uma garrafa de vinho.

Quando o destino fecha uma porta, poderíamos abrir um livro.

Quando o destino fecha uma porta, poderíamos abrir uma lata de leite condensado.

Quando o destino fecha uma porta, poderíamos abrir uma amizade.

Quando o destino fecha uma porta, poderíamos abrir nossas gavetas e arrumar a bagunça.

Quando o destino fecha uma porta, poderíamos abrir a cabeça e parar de culpar o destino.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (19/8) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


ESTÁ FERRADO: ELA SABE DE TUDO

Arte de Richard Hamilton

Homem finge que presta atenção, já a mulher finge que não presta atenção.

Ela grava tudo o que está acontecendo.

Não precisa de câmera pela casa se você está casado.

Sua companhia não depõe as armas, não descansa os ouvidos, não perde uma conversa.

Ela lhe cuida mesmo quando é indiferente, ela lhe observa mesmo quando vira as costas, ela lhe ama mesmo quando parece não amar.

Homem realiza uma tarefa de cada vez, mulher jamais se contenta com uma tarefa.

Na aula de yoga, ela estará se alongando perfeitamente, cantando o mantra, respirando como um monge e também conferindo o estado de suas unhas, qual brecha marcará a manicure, o que almoçará, o que falta entregar do trabalho. Homem preocupado não dá conta nem de sua cãibra.

Descobrirá sua onipotência auditiva na discussão de relacionamento.

Na briga, ela lembrará o que você jurava que passou em branco. Trará o que você tinha certeza de que ela não percebeu. Comentará o que você confiava que não tinha sido registrado.

Homem acredita na impunidade de seus atos. Se aquilo não foi dito no calor da hora, então está livre do julgamento. Que nada! Não existe prescrição de crime no mundo feminino. Ainda que demore meses, anos, décadas, um dia ela vai pedir explicações.

Toda esposa é a justiça encarnada.

Se ela não falou no ato não significa que não viu, somente não quis falar.

Guardará a cena para devolver no momento certo. Seu hábito não é desmascarar uma mentira, porém preparar o flagrante.

Pode suar frio, ela sabe. Pode treinar no espelho, ela sabe. Pode forjar álibis, ela sabe. Pode ensaiar com os amigos, ela sabe. Pode esperar que ela sabe.

Mulher controla os detalhes, as palavras, revisa as frases, testa coerência e continuidade do seu raciocínio em minutos, checa seus antecedentes, cruza dados e fotos, verifica suas pequenas mudanças de comportamento, compara situações e respostas do histórico da relação.

Ela vem com um aplicativo da Polícia Federal a mais no seu DNA.

Se está distraída, esteja convicto de que está disfarçando.

Homem simula que escuta, pega a última frase que escutou e improvisa. Mulher faz o maior dos esforços para se mostrar desinteressada. Sua sensibilidade não sossega um minuto. É uma capacidade monstruosa e maravilhosa de nunca se ausentar.

É pior do que escoteiro: sempre alerta. É evidente que sua concentração absoluta tem efeitos colaterais: o estresse, a irritabilidade, as longas enxaquecas. Mas são consequências naturais para quem fica ligada dia e noite nas movimentações do amor.

Não tem como enganar uma mulher. A única chance é ela se enganar por vontade própria.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 17/8/2014 Edição N°17893

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

NÃO ACHEI GRAÇA

Arte de Umberto Boccioni

Mulher desconfia de homem que tem senso de humor.

Ela diz que prefere os engraçados, mas é mentira.

Homem que responde rindo qualquer desconfiança já é visto como canalha.

Homem que não quer discutir já é visto como insensível.

Homem que faz graça de qualquer coisa já é visto como mentiroso.

Homem que não guarda ressentimento já é visto como esquecido.

Homem que acorda faceiro e dorme de bem com a vida já é visto como um bobo.

Mulher gosta de homens sérios. Homens de cara amarrada. Homens retos, diretos, objetivos, sem verdades pela metade e histórias inacreditáveis.

Confunde a alegria masculina com criancice ou esperteza.

Diante do riso e das brincadeiras a toda hora, ou acredita que ele é infantil ou um sedutor desinteressado no relacionamento.

Ela prefere que olhe nos olhos, preste atenção, participe da conversa sem nenhuma piada.

O que ela ainda não descobriu é que não existem homens sérios.

No máximo, eles andam disfarçados por amor.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (15/8) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:



A BOCA QUE ENTOA O BERÇO

Arte de Eduardo Nasi

Quando uma mulher demora a ser mãe tem que enfrentar a contingência de perder todos os nomes que desejava para seu filho.

É passar dos 35 anos que os irmãos e os amigos acabam batizando suas crianças com o nome que ela desejava. Será a tia solteirona do cartório.

Ou porque ela inventou de responder qual o nome que gostava, de tanto que os conhecidos perguntavam se já sabia como se chamaria, ou porque ela simplesmente teve azar.

Não existe ainda um copyright de berçário, muito menos um registro de preferência na Biblioteca Nacional.

O sobrinho terá o nome do seu filho pretendido, o afilhado terá o nome sonhado e assim por diante.

Se ela manter sua posição, a família vai virar monarquia e papado: Pedro II, Francisco II, Elizabete II.

Se ela teimar com sua ideia inicial, será criticada pela falta de criatividade — quando não é acusada de invejosa e ciumenta.

A frustração é imensa. Como um vice-presidente assumir a presidência, como um suplente de senador assumir o mandato.

Tenho certeza que muitos nomes esquisitos são de mães desesperadas diante da repentina subtração de suas vontades.

Está deitada no hospital, prestes a fazer o parto, a tevê ligada e cria um nome do nada, da pronúncia, da tradução google das ruas, somente para não sofrer o risco de ser copiada.

Daí nascem “Comigo”, “Cantinho”, “Disney”, “Esparadrapo”, “Ilegível”, “Inelegível”, “Justiça”, “Marciano”, “Pacífico”…

Daí nascem Valdisnei, Uóxiton, Princesadaiana.

Já é nervoso estabelecer um consenso com o pai. Na maioria das vezes, na busca diplomática para agradar a ambos e não provocar divergências, resultam nomes compostos paradoxais como Abelardo Francisco ou nomes hermafroditas como José Maria ou Maria José, típico de casais que queriam menina e menino ao mesmo tempo e não aceitaram o resultado da ecografia.

Não há tarefa mais complicada do que definir o destino de um filho. A gestação tem nove meses de propósito, para garantir a reflexão.

Só que o excesso de tempo confunde. Serão conferidos mapa astral, numerologia, etimologia, livros de educação infantil, um excesso de referências até atingir um veredito.

Depois da trabalheira, da pesquisa e do incansável ibope, quando alguém próximo usa o nome pretendido, a mulher se vê roubada. Roubam sua bolsa d’água. O jeito é gritar por socorro.

Aliás, Socorro é um bom nome, não?






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
13/8/2014

terça-feira, 12 de agosto de 2014

O QUE EU FAÇO?

Arte de Francis Picabia

Depois que virei palpiteiro amoroso, sou vítima dos esbarrões e dos conselhos a toda hora.

Por detrás de uma gentileza, pode vir um desabafo e aquela pergunta constrangedora ao final:

– O que eu faço?

Estou temendo cumprimentar na rua. Saúdo com “tudo bem?”, e o outro tem a audácia de replicar que não, emenda o que o vem afligindo e chora em meus ombros. Sinto que meu terno é um lenço de papel gigante. Hoje me escondo no costume de acenar com a cabeça e economizar entusiasmo.

Não sou terapeuta, não sou conselheiro, sou um escritor que observa a vida com fome e curiosidade e captura as contradições com facilidade. E só. Não tenho nenhum poder sobrenatural.

Mas, até me explicar, o desabafo já começou. Na dor, as pessoas falam rápido (a alegria, por sua vez, não precisa de muitas palavras).

Recebi uma carona na última semana. Era tarde, chovia, fazia frio, esperava um táxi que não chegava numa rua deserta, uma simpática mulher encostou e perguntou aonde ia.

– Petrópolis!

Ela sorriu:

– Estou indo para lá, vem?

Entrei no veículo, já arrependido. Como explicaria para minha esposa que tomei carona com uma estranha? Preventivamente, liguei o GPS do meu celular na hipótese de ela ser uma psicopata.

Ela nem esperou que comentasse sobre o tempo pavoroso naquela noite em Porto Alegre, desandou a narrar suas desventuras, o status nervoso de seu relacionamento, detalhou conversas, especificou suas expectativas.

– Sou casada há oito anos com um possessivo. “Não sou ciumento, sou possessivo”, diz ele, crendo que é beeem melhor... Eu tenho de obedecê-lo, me adequar a suas vontades e ser companheira com ZERO de reciprocidade!

Foi quando o painel digital de seu carro passou a piscar: anomalia de combustível.

– Visitar a minha família, frequentar a roda dos meus amigos, fazer os meus programas, nunca, sempre a vontade dele... Acabei me afastando de muitas pessoas queridas em função disso.

Foi quando o painel digital de seu carro passou a piscar: anomalia de air bag.

– Perdi minha essência, pois eu o sinto exatamente como um CHEFE! Inclusive eu brinco que sou sua secretária de luxo, pois ele está sempre me solicitando coisas.

Foi quando o painel digital de seu carro passou a piscar: anomalia de poluição.

– Ele não gosta de meu senso de humor, acaba incomodado por eu ser extrovertida e expansiva, me poda o tempo inteiro, odeia chegar aos lugares e notar que eu conheço metade do mundo e ele não. A impressão é que ele precisa me diminuir para brilhar.

Ao descer, ela me encarou, ansiosa:

– O que eu faço?

Só tive tempo de responder:

– Troca de carro!





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 12/8/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17888

NÃO VOU MAIS ESCREVER

Arte de James Barry

Dizer não é dizer sim.

Quem diz “não vou mais” sempre vai fazer.

Não vou mais mentir.

Não vou mais sofrer.

Não vou mais jogar.

Não vou mais beber.

Não vou mais fumar.

Não vou mais trair.

Não vou mais errar.

Não vou mais amar.

"Não vou mais" é uma maneira de se convencer. Tem tudo para não acontecer.

O sujeito não está disposto a mudar, mas apenas se desculpar com o futuro. Pois o futuro é distante. O futuro não é agora.

Não é um ultimato, mas um adiamento.

Não é uma afirmação, mas uma negação.

Não vou mais não tem efeito legal. Expressa o contrário.

Não vou mais é uma saideira existencial.

Não vou mais é não consigo.

Não vou mais é não posso.

Não vou mais é se enganar.

Não vou mais é não enfrentar a dificuldade.

Não vou mais é apenas fugir do castigo.

Não vou mais, sonoramente, é "Não vou, mas".

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (12/8) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

SERIAL LOVER


Existe uma infidelidade mais secreta e menos evidente, que acontece depois do relacionamento. Só acontece depois. É uma traição póstuma, retardatária, residual. 

É quando você repete os mesmo lugares, os mesmos apelos, as mesmas confidências com outro. É quando você insiste em escrever e tecer declarações exatamente iguais.

É uma extorsão sentimental colocar um desejo para sua nova companhia como se fosse inédito e que já foi dividido com a anterior. 

Pois a paixão só é idêntica para quem não enxerga as diferenças. 

É como remanejar presentes, aproveitar alianças antigas. 

Você prova que não tem criatividade nenhuma, demonstra a maior apatia: refaz os passeios que já realizou, leva para os restaurantes que freqüentava, as baladas e festas conhecidas, reincide nos roteiros de viagem, destina sonhos e palavras já gastos, reemprega até os nomes aprovados para quando nascessem seus filhos.

Mudou a pessoa, mas não o seu jeito de seduzir. Mudou a pessoa, mas não sua rotina de amar. Mudou a pessoa, mas não seu script.

É uma melancólica sobreposição, desastrada colagem. 

Nem precisa cometer o ato falho de trocar o nome do atual pelo ex, porque estará revisitando atmosferas e cenários. Experimenta locações contaminadas por juras velhas. 

Não há sensação mais ingrata para seu namorado anterior ao perceber que era mais um. Um qualquer, nem um pouco especial. Um sósia de cenas românticas. Um dublê da adrenalina e dos feromônios.

Você oferece um passado usado sob o disfarce de futuro. Alcança aquilo que foi ensaiado com o antecessor. Não se dá o luxo de disfarçar, o trabalho de maquiar, colocar uma manta no mobiliário da memória. 

Recorrendo à fórmula fixa de história feliz, estabelece uma competição imaginária, anula a individualidade do seu par, apaga a invenção a dois e a costura por caminhos surpreendentes e inesquecíveis. 

Acredita em sua inocência porque ninguém comentará o assunto. Desfruta da tolerância dos garçons, dos colegas, dos amigos, dos parentes. É realmente um segredo com pequenas chances de ser revelado, porém a consciência não é boba e um dia se vinga. 

O que vive está longe de ser amor, é obsessão.


Publicado na Revista Isto É Gente
Junho de 2014 p. 48
Ano 14 Número 711
Colunista

O COLO DA LETRA

Arte de Dieter Borst

Na infância, desprezava a assinatura.

A vida vinha anônima, abundante. Não precisava ser alguém para ser feliz. Nem colocava autoria no desenho, em nenhum lugar. Aquilo que era mundo era meu.

Mas, aos 12 anos, minha mãe chegou com a tarefa que estragou o paraíso da impunidade.

– Treina sua assinatura que amanhã faremos sua carteira de identidade.

– Como assim?

– Deve assinar seu nome e depois não pode mais mudar.

Minha história pode ser dividida antes do RG e depois do RG. É como se fosse vítima de abrupta redução da maioridade penal.

A missão me paralisou. Como assinar e não mais mudar? Como oferecer uma forma para sempre?

Foi uma condenação assustadora. Eu me vi preenchendo cadernos de caligrafias diariamente até os 80 anos.

De uma hora para outra, restava-me criar uma personalidade. Um risco autoral. Assumir uma responsabilidade infinita.

Nem tinha noção por onde começar.

Lembrei da profissão de meu pai – escritor – e que ele autografava seus livros para os leitores. Tinha traquejo, experiência, jorrava seu nome com extrema facilidade e sem variação.

Tomei sua assinatura emendada e passei a imitar com o apoio de um papel vegetal.
A grafia paterna se movimentava como um desenho. Um ideograma.

Seu “c” era uma pista de skate. Seu “a” era igual ao “o”, só que vinha na contramão, da direita para esquerda. Seu “l” era uma árvore desfolhada. Seu “j” levantava um sol no acento. E o “r” se derramava como um escorregador.

Já não se assemelhava a uma assinatura, mas ao Parque Marinha do Brasil.

Por um breve momento, eu esqueci a tarefa e me divertia na praça de suas letras. Ficava na fila indiana com os colegas para descer nos brinquedos.

Inventava cenas e diálogos em meio ao sol da página em branco. Meu pai me empurrava no balanço. Meu pai disputava corrida da escada à lixeira laranja. Meu pai cuidava de mim com sua boina, seu casaco de couro e sua gargalhada alta e amiga.

Descobri que letra é feita para sonhar.

Assim que criei minha assinatura. Espantada. Grande. Estranha. Absoluto espelho do meu pai.
Exercitei ao longo da madrugada meu nome como se fosse uma continuação do nome do meu pai. Uma extensão de nossas pernas caminhando juntos. Inventei uma centopeia de tinta – minhas botas ortopédicas prosseguindo seus sapatos pretos de bico fino.

Não há nada mais íntimo do que ser um copista e segurar – com a imaginação – a mão de quem a gente admira.

Ao falsificar seu traço, me tornei verdadeiro.

Ao assinar, dou a mão ao meu pai.

Quando autografo minhas obras, a assinatura do meu pai está por baixo. É a minha sombra. É o meu apoio. É o meu fundo.

Ele vive me oferecendo colo por toda a eternidade das palavras.


  
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 10/8/2014 Edição N°17886

15 CHAMADAS NÃO ATENDIDAS

Arte de Carlo Carrà

Não há maior loucura do que a bondade.

Se seu namorado ou namorada liga 15 vezes sem motivo (15 chamadas não atendidas enquanto trabalha), a reação esperada é xingar, chamar de psicopata, reclamar que deste modo desconfiado não tem como seguir a relação e até terminar o namoro.

Mas quem é bondoso desarma a loucura: - Ligou 15 vezes para mim? Que bom, significa que você sentiu muita saudade, significa que me ama muito, que você não consegue me esquecer nem por um minuto. Ai que bonito.

A pressão será entendida como demonstração de apego. A insegurança será entendida como preocupação apaixonada. A ansiedade será entendida como urgência de se ver.

Aquele ou aquela que telefonou 15 vezes ficará em estado de choque diante da compreensão de sua carência. Nunca mais vai ligar com medo da reação.

Vale para tudo. Na hora da cobrança, não compre briga, diga como é importante ter alguém para nos lembrar de nossos defeitos.

Não há maior loucura do que o amor.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (8/8) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

INCONSCIENTE CASADO

Arte de Eduardo Nasi

Ela tinha consciência absoluta de que não poderia mais ficar com ele, que não se entendiam, que sofriam falta de sintonia e defendiam projetos extremamente opostos.

— Enquanto vou, ele volta. Eu só vejo erro nele, ele só vê erro em mim. Sei que não posso ficar junto, mas jamais consigo ficar longe. Eu o amo, mas perto eu o odeio. Há a clareza de que ele não me faz bem. O que me recomenda?

— Nada, talvez rezar, talvez relaxar já que nada funciona. Sua consciência quer ser solteira, mas seu inconsciente é casado com ele.

Enquanto respondia minha amiga num bar cascudo na Cidade Baixa, eu fui tomado por essa ideia. Havia muito sentido naquilo que dizia.

Temos dificuldade de captar a lógica da união de casais que vivem discutindo, brigando e se ofendendo. Não deciframos o motivo de permanecerem num casamento se é para sofrer. Não desvendamos o enigma após a sucessão de barracos, escândalos e quebradeiras. Cansam o senso comum, esgotam a paciência dos amigos, perdem o apoio dos familiares.

É que eles podem estar se amando pelo irracional. São incompatíveis na aparência, mas inseparáveis na essência.

Encontram sua harmonia no sexo, na explosão física, quando se beijam e se lambem e se entregam sem usar a cabeça, quando não analisam os fatos, quando não interpretam o comportamento um do outro, quando relaxam das amarras e censuras, quando depõem as armas e vaidades e esquecem a disputa da razão e do certo e errado.

Quando se oferecem apenas pelo toque, pelo silêncio ofegante, pela realeza dos ouvidos.

São melhores como bichos do que como homens. São melhores na ausência de pensamento, no contato físico, primitivo, total, na comunicação não verbal.

Eles se conectam pelo instinto, pelo cheiro, pela doação selvagem.

Perante a sociedade, são divergentes. Entre quatro paredes, convergentes.

Perante a sociedade, travam um duelo. Entre quatro paredes, formam um dueto.

E são muito mais carinhosos pelo tato do que pela fala.

Neles, a pele une o que a palavra separa.

É uma quebra de padrão, pois estamos acostumados a enxergar o irracional como sinônimo de agressividade e de violência.

Esses pares malucos, inadequados e inoportunos têm um irracional afetivo, um irracional terno, um irracional amoroso.

Ríspidos e grosseiros na racionalidade, por sua vez, lá no inconsciente, não se largam e se complementam. Demonstram um equilíbrio perfeito na cama. Como se fossem dançarinos de longa data.

A separação será incompreensível como a própria convivência. Porque são felizes em algum lugar desconhecido dentro deles.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
6/8/2014

QUANDO VOCÊ SABE QUE PERDEU A CASA

Arte de Paul Signac

O símbolo do casamento não é quando ela traz a escova de dente. É quando você perde o banheiro. Seu banheiro. Seu refúgio de anos de reflexão e de revistas antigas.

Não mais do que num relance, você passa a escovar os dentes longe da pia. Já treina segurar a espuma por mais tempo, bochechar a água incansavelmente até encontrar um lugarzinho para esguichar. Não repete a operação para não incomodar. O centro do espelho torna-se propriedade das manobras femininas.

Como deseja que ela se sinta em casa, cede os demais territórios de seus hábitos, abre generoso espaço, diz que ela não atrapalha, inspira sua maior participação.

Antes singelo com seus magros xampu e condicionador, o box recebe uma artilharia pesada de produtos. A gôndola transborda de potes gigantescos que sequer conhecia a existência: tem reparador de pontas, creme para pele, gel refrescante, sabonete íntimo... Sua vida anterior de 200ml é tomada por uma perfumaria litrão. 

As duas torneiras do chuveiro são ocupadas pela calcinha lavada e pela esponja amarela. A esponja amarela é a prova de que ela está à vontade.

Ela se mudará totalmente para o apartamento não carregando as malas, porém o secador de cabelos. O único, o especial, aquele que comprou numa promoção e jamais estragou. Sinaliza que acabou o amadorismo da relação, os experimentos, os ensaios; pretende sair sempre impecável a partir dali. Já não quer sofrer com os cabelos secando ao vento, sem nenhum cuidado. Esgotou a fase das mechas molhadas e das toalhas como turbantes.

Disposto a mostrar que não precisa de muito, abre um canto no armarinho para que ela guarde seus produtos de maquiagem. De repente, ela diz que não entrou tudo. “Como?”, espanta-se. Então, esvazia seu lado direito e guarda seu módico kit de higiene em um estojo de primeiros socorros. 

Seu banheiro virou um salão de beleza. Não tem mais a rudeza e a simplicidade de antes. O cheiro é de um campo de flores. A privada ganha capa, há sprays aromatizantes grudados nas paredes, o papel higiênico é igual a um guardanapo.

Constrangido perante a limpeza cirúrgica do ambiente, abandona seu uso diário e começa a frequentar o banheiro de visita. Não se deu conta, mas foi expulso do próprio banheiro. O banheiro da suíte agora é dela, o outro é seu. Não se falou nada sobre o assunto, aconteceu simplesmente.

Quando ela vem com suas roupas, surge o terror. Não há armário e cabides suficientes. Derruba suas calças e camisas, dobra seus ternos, e vê que pode encher as malas vazias provisoriamente com suas peças. Sedado pela paixão, faz as malas sem querer e está pronto para sair de sua residência. Na hora em que ela está terminando a arrumação, olha desorientada para você.

– O que houve? – pensa que existe uma barata por dentro das estantes ou uma invasão de traças.

– Não sobrou prateleira para as roupas de verão, amor.

Ou seja, ela lotou todas as araras e floresta amazônica do quarto apenas com as roupas de inverno.

Não pergunta sobre as roupas de outono e primavera com medo da resposta.

Isso que ela nem desempacotou os sapatos, as botas, os tênis, os chinelos, os cintos, os acessórios, o que demandaria o cofre de um magnata no banco suíço. Se acordar dormindo na cozinha, ainda é um luxo. Mulher não pede licença, ela se espalha. 






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 5/8/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17881

terça-feira, 5 de agosto de 2014

EXEMPLO DE ECONOMIA

Arte de Songul Terlemez

O homem recém-separado é um militante ecológico. Melhor do que Greenpeace.

Ele salva a água do planeta.

Não toma mais banho.

A troca de lençol, antes semanal, é mensal agora.

Um jeans dura três semanas.

Não lava a louça, usa o mesmo copo.

Não faz a barba.

Leva a pasta de dente ao limite das leis da física. É impressionante quantas vezes escova os dentes com uma pasta que já acabou.

Não desperdiça também energia elétrica.

Fica a maior parte do tempo no escuro.

É um exemplo de economia. Nem troca mais lâmpada.

As lâmpadas permanecem queimadas no bocal.

Tampouco gasta com comida.

Troca o carrinho pela cestinha. Compra o básico para não morrer.

As três refeições por dia são unificadas no jantar.

A porção para dois é drasticamente reduzida a um prato de uma criança.

Sua geladeira vazia demonstra o total desapego budista.

Homem sofrendo por amor é muito evoluído.

Já o homem apaixonado é um perdulário, gasta tudo o que o separado economizou numa banheira de hidromassagem.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (5/8) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

DESCURTIR MIL VEZES

Arte Irina March

Uma amiga estava no começo do namoro quando seu namorado ciclista perguntou se ela andava de bicicleta. Ela respondeu que não gostava. Ele não aceitou, e foi taxativo: vou te fazer gostar.

A guria murchou, com toda razão.

Vou te fazer gostar é tudo o que você não deve dizer numa relação, para nada.

Ele não perguntou: gostaria de um dia pedalar comigo?

Não, já decretou: vou te fazer gostar.

Ele não vai ensinar para que possa escolher ou não gostar, ele afirma que vai gostar de qualquer jeito. É obrigada a gostar. É condenada a gostar. É anular o direito de ter a própria opinião e personalidade.

Tem uma prepotência nesta frase. Um autoritarismo. Um exibicionismo. Uma ausência de carinho e respeito, como se fosse o melhor professor do mundo. Como se sua namorada jamais tivesse tentado e não curtido. Abstrai a experiência e o passado de sua companhia. Cria uma antipatia.

Vou te fazer gostar de política.
Vou te fazer gostar de cinema chinês.
Vou te fazer gostar de comida japonesa.
Vou te fazer gostar de funk.
Vou te fazer gostar de dançar.
Vou te fazer gostar de Carpinejar.

Pode inspirar com o exemplo, com sua alegria, jamais com a obrigação.

Obrigar o outro é desamor.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (01/8) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antônio Carlos Macedo e Andressa Xavier: