terça-feira, 26 de novembro de 2013

QUERO UM FILHO CONTIGO

Arte de Gina Pellón

Eu compactuo com extremismos emocionais. O amor é extremista. O amor é tudo ou nada, é muita briga, é muita declaração, é muito do muito.

Só confio em parcelamento de contas, jamais em crediário do sentimento. No amor, pago mais do que à vista, faço questão de pagar adiantado.

Se, no meio da transa, minha mulher diz que deseja ter um filho comigo, fico ainda mais excitado. Não vou broxar, não vou puxar discussão, não vou sair de perto, não vou entender como uma loucura. O pedido intensifica o arrebatamento, acelera as pernas, redobra o fôlego.

A frase é meu afrodisíaco, meu Viagra, meu Nirvana. Estalo os ossos das costas, estreio a boca.

“Quero um filho contigo” é um apelo para perder as reservas, os pudores, os medos; é quando o casal atinge a fé no relacionamento, é quando a esperança deixa de incomodar, quando os dois são um só e não fingem bom senso.

Não vejo nenhum problema em ter mais crianças, se posso sustentar e cuidar. Para mim, o futuro nunca foi um adiamento, o futuro é um convite.

Devo ser estranho, realmente um tipo incurável. Adoro quando minha mulher me confidencia no ouvido que deseja um filho comigo. É mais do que eu te amo, é eu te amo agora e também te amarei depois em nosso filho.

Nosso cheiro muda com a promessa, o corpo se incendeia, as palavras ganham ênfase, a respiração rejeita a paz.

Devo ser muito tolo e romântico, porém não me enervo com a súplica, eu me entrego ainda mais. Não sou um homem preventivo, que deixa de viver para evitar o pior. Vivo o dobro para chamar o melhor.

Tenho uma única vida para acertar, e há pouco tempo. Tenho uma imensa paixão pela minha mulher, e há pouco tempo.

Meus amigos me qualificam de burro, que eu precisava ser mais cauteloso, que peco pela ansiedade, que tomo decisões sem avaliar as consequências, que filho é uma trabalheira, que é sinônimo de privação e responsabilidade, que é para ir com calma na relação. Mas quem ama já prevendo pensão merece mesmo se separar.

Troco os pés pelas mãos de propósito, para segurar o amor com firmeza. Eu quero sempre ter um filho com minha mulher.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 26/11/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17626

COLETIVATION MTV

Confira minha participação no programa Coletivation, da MTV, com Fiuk e Patrick Maia, falando sobre relacionamentos e poesia. O programa foi ao ar na segunda (25/11).


NOSSA VIDA

Arte de Cy Twombly

Nada substitui a nossa vida. Por mais pequena que seja, ainda é a nossa vida.

Escrevemos "nossa vida" e já sentimos orgulho. Tente.

A falta de confiança nos leva à inveja.

As enquetes e testes das revistas femininas sempre pretendem dizer que a nossa trajetória está errada, da necessidade de modificar logo o relacionamento antes que seja tarde, esquentar a intimidade, aquecer os jogos do casal, viajar e exigir caprichos e cuidados de nosso parceiro.

Ninguém nos dá motivos para permanecer do jeito que somos, percebeu?

Há um interminável apelo a mudar o cabelo, mudar de roupa, mudar de marido, mudar de esposa, mudar de casa, mudar de hábitos, mudar de personalidade.

Se a relação não dá certo, é que faltou se transformar. A rotina invariavelmente é a culpada. O sexo decaiu porque você não aprendeu dança do ventre. Seu par se interessou por colega de profissão porque você não ampliou o repertório de posições sexuais. Não manteve o casamento porque não trocou o cardápio à base do feijão, arroz e massa e não investiu nas iguarias afrodisíacas da Tailândia. 

É sempre alguma coisa que não foi feita, criando uma culpa invejosa, a ponto da esposa ou do marido concluir: “Todo mundo faz, menos eu”. 

Somos condenados a procurar “o tempero” do relacionamento enquanto deixamos a comida queimar. Leia-se tempero tudo o que não se realiza. Nosso modo de puxar conversa é equivocado. Nosso modo de brigar não é o ideal. Nosso modo de lidar com os filhos complica a independência amorosa. 

Se estamos felizes, estamos desinformados. Há uma exigência para se atualizar com dicas e truques, sob a ameaça de que a concorrência (solteiros e solteiras) está preparada. 

Não há saída. A paranoia se infiltra na paz ou na guerra. Alimentamos uma permanente insatisfação, uma rejeição premeditada. E cobramos de nossa companhia uma perfeição impossível.

A impressão é que deveríamos estar em outro lugar, em outra biografia, que alguém roubou a nossa história e desfalcou nossos prazeres.

O problema que identificamos é simples: não damos valor para aquilo que somos, para as próprias experiências do casamento. Não cuidamos do que temos.

Desejamos um armário novo, não apenas uma roupa. Não queremos menos. É tudo ou nada.

Não enxergamos as delicadas novidades dentro dos hábitos. Subestimamos as variações da correnteza diária. Ganhar uma nova peça é poder arrumar as antigas, reencontrar combinações e reavivar acessórios.

A ambição enfraquece os significativos e discretos avanços.

Cansei da futilização do amor. Amor é essencial, é tão importante quanto o orçamento doméstico ou pagar as contas. Amor é economia. É cuidar com elogio para evitar a falência. É zelar pelo patrimônio das palavras para ter o que lembrar e falar.

A mulher fica a responsável por compreender e salvar a relação. É uma infantilização do homem. Em vez de chamar para a cumplicidade, a mulher aproveita e fortalece o preconceito, antecipando que ele não se dispõe a debater os rumos da casa, que não gosta do assunto, que nem vale a pena, que terminará por debochar e chamar de ridículo. Será que não é teimosia? Ou preguiça para rebater as discordâncias? Será que não é apenas a vontade de decidir sozinha? 

Talvez não seja o homem que boicota a intimidade, mas a mulher que não tolera o retrabalho de uma segunda opinião.

Um exemplo é quando o marido decide ajudar nas tarefas domésticas, após longa insistência da esposa. Ele vai limpar o fogão. Fica uma hora passando esponja, areando, procurando brilho metálico. Quando termina, a esposa não perde a chance de mostrar que ele é incompetente para aquilo:

- Você está confundindo o fogão com carro? Não sabe limpar.

Finalmente, quando seu parceiro atende seu chamado, em vez de animá-lo a prosseguir em novas oportunidades, trata de castigá-lo como um filho desobediente. Uma hipótese é que a mulher tem dificuldade de repartir as atividades porque as coisas não serão feitas como ela costuma arrumar. É óbvio que não. Então, ela ordena: 

- Deixa que eu faço. 

“Deixa que eu faço” é o equivalente a concluir “Você não serve para nada”. E ele não se candidatará a atividade novamente para evitar humilhações. O homem terá que cozinhar mal para cozinhar bem, terá que lavar superficialmente as roupas para entender a arte da espuma, terá que varrer pelo centro até localizar as sujeiras dos cantos. 

O que não acontece é suportar o período de adaptação do voluntário. Ansiamos que acerte de primeira, e sem vacilação. A esposa pretende que ele colabore, porém não pretende perder tempo ensinando. 

Esqueça o conto de fadas por um momento. Encontrar alguém é fazer por merecer, não é deixar que o relacionamento se faça sozinho.

Localizar o par ideal é fácil, difícil é suportá-lo.

Vem a convivência e estraga a telepatia do início: ele tem mania de palitar os dentes, ela usa calcinha cor de pele; ele ama a solidão mais que a própria vida, ela deseja filhos; ele toma cerveja, ela é adepta do suco natural; ele joga futebol, ela consulta a cartomante; ele sonha em montar negócio próprio, ela idealiza meditar em centro budista; ele espera assistir corridas em Interlagos, ela torce para um dia ver o grupo de balé Bolshoi.

Por um tempo, durante a paixão, acreditamos ter encontrado o perfil sonhado. Mas paixão é férias, amor é trabalho.

Amar é se esforçar o dobro para permanecer junto: como conciliar as vontades? Como organizar as doutrinas? Como parar de adivinhar o desenlace futuro?

Para fazer um matambre recheado, precisamos de linha de costura; para assar o peixe na brasa, dependemos de papel alumínio; para a longa vida do motor, só trocando o óleo a cada cinco mil quilômetros.

É mais feliz quem compreende que estar triste é parte natural da vida. E quem compreende essa simplicidade, não precisa mais vencer sempre. 

A vida exige ciência. A ciência de conviver nada tem a ver com truques visuais: meia-calça de seda, cinta-liga, cueca boxer branca. Os efeitos especiais ajudam a formar um clima agradável, entretanto, não garantem o desempenho emocional. 

A ciência de conviver depende da coragem, isso sim. Coragem de defender o amor. A coragem é o verdadeiro ingrediente secreto, a pimenta dedo-de-moça do acarajé, o leite condensado do brigadeiro. 

Salgado, doce, coragem.

É quando não importa mais quem colocou a bola em campo: todos podem jogar.

É quando não tem diferença nenhuma definir quem errou, mas quem se prontifica a consertar.

É quando o senso de justiça cede lugar ao apelo da união.

É quando o ímpeto de estar bem juntos supera a ansiedade de dominar e ter razão.

É quando a insegurança larga a intolerância e entende o improviso e a limitação de cada um.

É quando a coragem aparece. Porque saberemos que dependeremos para sempre daquela pessoa para assumir a própria individualidade. Amar, portanto, não é mudar, é se aceitar.

Amamos para que o outro nos ajude a não apagar aquilo que somos. É certo que esqueceremos um dia, entraremos em desvalia, desconheceremos nosso tamanho, mas o outro nos lembrará do que já foi feito e do que necessita ser feito. 

Amamos para que a nossa vida nos seja devolvida de repente. O marido ou a esposa é a chave reserva de nossa memória. Nosso backup. 

Melhor do que confiança no relacionamento é coragem.

Coragem para aceitar alguém de volta. Coragem para perdoar o erro e a fraqueza. Coragem para assumir o que o coração anseia, apesar da aparência e dos outros.

Coragem é reconhecer o medo e seguir adiante mesmo assim.

domingo, 24 de novembro de 2013

O QUE TIRA UMA MULHER DO SÉRIO?

Arte de Alphonse Mucha

– Receber um beijo um pouco mais longo e concluir que ela quer sexo e ir descendo a mão;

– Deixar as tampas abertas dos potes;

– Elogiar pelo motivo errado: gostar do vestido que ela usa há três anos ou confundir a camisola de seda com roupa de sair;

– Não desembaraçar as peças antes de pôr na máquina;

– Não expor o que deseja fazer no final de semana;

– Nunca controlar a data de validade dos produtos na geladeira (não somente no supermercado);

– Debochar de tudo, não ter limite para a piada;

– Dizer que ela está ficando parecida com a mãe;

– Responder ok no fim de uma briga.

– Acreditar que as mentiras pequenas não são mentiras;

– Alterar o horário de um encontro e deixá–la esperando;

– Começar conversas paralelas com amigos e não explicar o que está falando;

– Rir do nada e responder que é nada;

– Submetê–la a reverenciar seu churrasco todo domingo.

– Demorar de propósito a retornar um torpedo ou uma ligação e responsabilizar o excesso de trabalho;

– Não trocar as cuecas da gaveta;

– Pedir para ela cozinhar com a justificativa calhorda de que “ninguém faz aquela comida como você”;

– Concordar rápido por preguiça. Dizer o que ela quer ouvir, não dizer porque acredita;

– Achar que declarar eu te amo uma vez ao dia é suficiente;

– Avisar que ela está em TPM fora do período da TPM;

– Esconder meias sujas nos tênis;

– Fugir das respostas objetivas;

– Armar festa com amigos em casa logo depois de uma briga;

– Pedir ajuda para procurar o que perdeu;

– Justificar em vez de assumir a culpa;

– Trocar de canal enlouquecidamente no momento do comercial;

– Disfarçar a falta de vontade na avareza. Aceitar participar de um passeio e reclamar de qualquer coisa, do preço do estacionamento ao preço do cinema;

– Fazer massagem nas costas com uma única mão, com aquela disposição de doente terminal;

– Regredir a dicção na presença da sogra;

– Almoçar na casa da família e sestear enquanto ela tem que entreter os sogros;

– Dirigir trocando música da rádio e com o celular no ouvido e ainda xingar os outros motoristas por distração;

– Nunca pensar duas vezes antes de ter ciúme e cometer injustiças;

– Pegar a lixa preferida de unha dela como material de construção;

– Isolar–se com o videogame para esfriar a cabeça, e jamais regressar ao convívio;

– Passar o telefone com alguém que ela nem tem intimidade;

– Chegar atrasado ao arrependimento. O amor é pontual. E o perdão cansa de esperar.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 24/11/2013 Edição N° 17624 

terça-feira, 19 de novembro de 2013

A ORELHA DO EDUARDO

Arte de James Rosenquist

O melhor antídoto para a discriminação é a turma unida.

Quando os colegas se somam para uma competição, o bullying morre.

Todos têm importância: aquele com dificuldades de matemática recebe ajuda dos nerds, os nerds ganham aula de dança das meninas, os tontos adquirem esperteza, os malandros se regeneram em sensibilidade.

Os atritos de convivência são contornados pelo espírito coletivo. O grupo esquece as desavenças pessoais e valoriza cada um dos temperamentos da sala.

Não há deboche interno em nome de uma causa externa. Não há facções ou panelas em favor de um objetivo em comum.

Quando adolescente, minha turma participou de uma gincana entre as escolas de Porto Alegre.

Os rancores desapareceram no ato. Como a disputa elaborava charadas e pedia urgência nas respostas, descobríamos habilidades antes inimagináveis nos nossos colegas. Eu não sabia que Mariana entendia de nós em cordas (seu pai era oficial da Marinha), eu não sabia que Antônio dominava potência e motor dos carros, eu não sabia que Aline conhecia trilhas ecológicas no Morro do Osso. Nossos preconceitos ruíram pela necessidade de resolver as questões. Ouvíamos ideias e sugestões, desprovidos de censura.

Não vencemos, mas nos unimos. A derrota também virou uma comemoração em equipe.

A emoção criou o milagre do entendimento: pôr-se no lugar do outro para sentir na pele a diferença.

Eduardo representou nossa transformação. Tinha um problema facial, uma longa queimadura na sua orelha. A orelha mal existia. O rosto direito era perfeito e simétrico, enquanto o lado esquerdo apresentava um rebaixamento grave.

Sara, durante a despedida dos jogos, no momento em que a gente se abraçava e lamentava o resultado, caminhou na direção de Eduardo, que estava retraído numa cadeira do fundo. Ela segurou a face dele com as mãos e beijou – sem nenhum nojo – sua orelha derretida. Um beijo terno, doce, honesto. Podíamos escutar o pressionar dos lábios, nos viramos para admirar a cena, perplexos com a atitude imprevisível (Eduardo aguentava o desprezo, a mais severa discriminação na escola; ninguém encarava sua fisionomia, por medo).

Naquela hora, nunca mais vi na vida alegria igual. Uma alegria de família.

Experimentamos o riso da cumplicidade, que é mais delicioso do que o riso do deboche.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 19/11/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17619

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

SERVIU O CHAPEUZINHO?

Arte de Miró

Jamais soube receber presentes. Ou ser amado.

Sim, sou incompetente. Sou um fracasso para acolher afeto. Eu me antecipo para não precisar encarar minha timidez de ser amado. Eu prefiro amar do que ser amado. Posso ser perfeito para planejar surpresas e ser romântico e adivinhar desejos de minha mulher. Mas receber carinho me põe em desespero. Terei que agradecer, como? Terei que agradecer e superar o que me foi dado. Entro numa competição diabólica, numa disputa de vaidades. Para não contrair dívidas amorosas, para não ficar atrás. Não há problema em assumir o papel de credor, sofro horrivelmente na figura de devedor. 

No fundo, acho que não mereço ser amado. E amo o dobro ou o triplo para provar minha tese. Para que o próximo diga: chega!, e se afaste. 

A única festa de aniversário que ganhei em minha infância, nenhum convidado foi. Pedi para a mãe congelar a torta para o próximo ano. Jamais me recuperei do trauma. De ver as cadeiras vazias em torno da mesa repleta de brigadeiros, branquinhos e salgados, preparados ao longo de duas semanas. 

Nada como um trauma para reservar uma mesa no inferno. Não me permitia ser feliz em nenhum aniversário. Sempre boicotava, conspirava, maltratava quem tentava me alegrar. Queria passar a vida inteira tirando proveito do remorso, tirando lucro do coitadismo. A cena da infância vazia e abandonada formava uma fortuna imbatível. Não ser amado é um luxo, é uma maneira de dizer que ninguém presta, que ninguém consegue me contentar, que tenho o direito (e o dever) de ser ranzinza e não respeitar a felicidade alheia. 

Descobri que era um desamador. Até o sábado de meu aniversário de 41 anos. Quando minha mulher Katy preparou uma festa surpresa sem que imaginasse qualquer detalhe e sinal. Cheguei em casa do trabalho e lá estava mais de 40 pessoas gritando, corneteando, aplaudindo no escuro assim que abri a porta. Fui arremessado numa piscina de bolinhas posta dentro do apartamento. Recebi banho de champanhe, de espuma. Havia painéis e balões temáticos do Wolverine, meu heroi predileto. O bolo não durou nem uma hora. Circulei pela festa como se fosse o enterro da mágoa, a cremação das serpentinas. Estava recebendo amor de todos. Ainda encabulado. Ainda assustado. Ainda desconfiado. Mas recebia. Fui recebendo. Fui aprendendo a receber, desajeitado e finalmente espontâneo. A cada conversa, a cada beijo na boca da esposa, a cada brincadeira. 

Vi que o trauma da alegria é maior do que o trauma da tristeza. Muito mais inesquecível. Agora posso emprestar meu nascimento para os outros.

Publicado na Revista IstoÉ Gente
Colunista
Novembro/2013 
Ano 13 Nº 703

domingo, 17 de novembro de 2013

AS MENTIRINHAS PERVERSAS

Arte de Fatturi

Protegemos nossas pequenas mentiras em vez de cuidar do relacionamento.

— O que está pensando?

— Por que fez aquilo?

— O que deseja?

Não respondemos o que vem à cabeça, filtramos o que seria mais importante falar, o que daria mais ibope, o que nos fortaleceria naquela situação.

A vontade de agradar é maior do que a vontade de ser verdadeiro.

Não aceitamos nossas imperfeições, e mascaramos os defeitos com imprecisões. A vergonha de errar nos leva aos grandes erros.

Sem querer, já estamos mentindo. E mentimos porque a verdade não impressiona. A verdade não tem roupa de festa. Ela fica abandonada enquanto exercitamos as mentirinhas. Não nos sentimos culpados, pois ninguém conhece a nossa verdade.

Batemos o pé por bobagens, compramos brigas desnecessárias, geramos discussões à toa.

Usamos a toalha do outro por engano. Pode estar encharcada e sustentamos que não foi a gente. Comemos um doce reservado na geladeira e somos capazes de jamais admitir a autoria e desfazer o mal-entendido. Quebramos um objeto na sala e fingimos que ele sumiu de repente.

Era algo simples de ser assumido, e deixamos passar. Criamos uma avalanche a partir de uma pedra de gelo.

Não confessamos o que aconteceu, e o costume ainda é incriminar quem nos chamou atenção, invertendo o jogo: - Não acredita em mim?

Trocamos a espontaneidade pelo orgulho, a franqueza pela persuasão. Subestimamos quem nos escuta ou não nos julgamos dignos do que pensamos. Planejamos o nosso depoimento para soar natural. Premeditamos nossa conduta para receber somente elogios. Ao evitar os castigos e reprimendas, evitamos também a autenticidade.

Uma mentirinha é logo esquecida em nome de uma nova e não acompanhamos os juros.

A mentira é um modo de não ser julgado. Mas estamos nos condenando secretamente a nos afastar do que nos incomoda.

Nem é mentir no início de um relacionamento, o que é perdoável, é exagerar um pouco por dia. Sobre o emprego. Sobre o sexo. Sobre o amor. É falsificar nossa pobreza. Colocar uma manta para cobrir o sofá rasgado.

A partir de uma resposta mais agradável, desviamos o caminho, distorcemos algumas frases e somos obrigados a inventar todo um passado.

Prefiro estar acompanhado numa estrada real, ainda que penosa, do que viver sozinho em minha imaginação.




Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 17/11/2013 Edição N° 17617 

terça-feira, 12 de novembro de 2013

FABRÍCIO DA KATY

Arte de Frida Kahlo

Ao casar-se, você deixará de ser você. Abandonará a exclusividade do nome. É líquido, certo, inegável e não tem saída. Será um casal daqui por diante. Todos lembrarão de sua esposa em qualquer lugar que vá.

É estar por um momento sozinho, que sou questionado:

– Cadê a Katy?

Nem cumprimentei direito e tenho que dar explicação. Não tirei o casaco e cumpro interrogatórios. Receberei olhares de pura curiosidade. Enfrentarei cem vezes a mesma pergunta. Nem preciso carregar aliança, encarno a aliança.

– Ela não pôde vir.

– Ela trabalha neste horário.

– Ela mandou um beijo.

Colegas não mais me separam dela. Perdi a identidade para assumir outra. Deixei a posição de pessoa física. Eu me transformei num relações-públicas de nosso amor, num produtor de nosso amor, num secretário de nosso amor.

Desacompanhado, os conhecidos me enxergam pela metade, desfalcado, insuficiente. Hoje não sou mais o Fabrício, sou o Fabrício da Katy.

Muitos pares não aguentam a simbiose pública. Entram em crise, esperneiam pela aparente falta de liberdade, pedem a separação. É preciso ser muito resolvido para não temer a dependência. A tendência é de se enxergar sufocado e pirar.

Não sofro dessa crise. Pelo contrário, me envaideço da condição: sempre quis ser de alguém. Não é escravidão ser a lembrança de Katy, é mérito. Fiz por merecer. Batalhei duro para conquistar sua confiança e assegurar sua tranquilidade.

Eu a represento, assim como ela me representa. Pode perguntar, que respondo com alegria.

É mais do que uma referência, é meu verdadeiro sobrenome. Ao mesmo tempo, é uma localização e um atestado de saúde: se estou com ela, é sinônimo para os amigos de que estou bem, de que nada aconteceu de errado, de que seguimos felizes.

Herdei a compreensão amorosa de meu avô. Ele fazia questão de ser enterrado ao lado da vó. Era sua única exigência no testamento.

Dizia que não queria ser lembrado sozinho, já que o seu melhor vinha dela.

Ele dizia ainda que gostaria de dormir de conchinha toda a eternidade.

E, por final, explicava:

– Ela sempre rezou por mim. Agora quando os filhos rezarem por mim, já rezam por ela. Vou oferecer carona de volta na oração.

Palavra tem força. Entre seus túmulos em Guaporé (RS), saltou uma raiz do chão. Não duvido que seja o braço de meu avô segurando as costas da nonna.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 12/11/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17612

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

ENCONTRO


Trecho de minha participação no programa Encontro com Fátima Bernardes na quarta (6/11), falando sobre casamento. Veja o vídeo aqui.

AUTOBIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA


Publicado em Zero Hora
Contracapa, Segundo Caderno
Porto Alegre (RS), 11/11/2013 Edição N° 17611

domingo, 10 de novembro de 2013

TENHO UMA DOENÇA INCURÁVEL


Durante a paixão, não existe mais nada, a não ser estar com o outro.

Trabalho perde valor, amigos perdem valor, boemia perde valor, cinema perde valor, assim como teatro, bebida e futebol, nenhum evento é mais importante do que estar com o outro.

Contam-se os minutos, as horas, para o encontro com quem nos arrebatou.

Nosso foco é somente para uma pessoa. O mundo desaparece, as notícias desbotam, unicamente se pensa em sexo e em enlouquecer nossa conquista.

É uma alegria ininterrupta: todo abraço é um camarote, todo beijo é conversa fiada.

O casal perde o relógio de vista, e fica ainda mais feliz. Não dorme e ri – os bocejos se tranquilizam em suspiros.

Durante a paixão, somos admirados, invejados, elogiados, e juramos que nos transformamos no homem dos sonhos, que os pesadelos dos desentendimentos e das críticas das relações anteriores são águas passadas e não retornarão com nenhuma enchente.

Na paixão, somos lindos, fortes, curiosos. Não é que não enxergamos os defeitos, desprezamos os defeitos.

Meu problema é que a paixão passa, mas eu não passo pela paixão.

O que digo sugere um autoelogio, só que é uma autocrítica. Arco com os efeitos colaterais da atenção excessiva, de não me distrair da amada.

Continuo apaixonado dentro do amor, esta é minha principal crise.

A prioridade permanece sendo minha mulher, acima da carreira e dos negócios, dos traumas financeiros e do calendário esportivo. Comigo, as coisas não voltam ao normal.

Não sossego o ritmo, não acalmo a busca, não diminuo minha disposição, não me isolo no escritório ou no quarto para fazer as minhas tarefas. Não assumirei a neutralidade da confiança, a mornidão do conforto.

Realizo as obrigações do serviço previamente para ostentar descompromisso nos momentos que partilho com minha esposa. Ela deve pensar que sou um vadio, pois nunca digo que não posso ou não tenho tempo. Ou deve supor que sou um trambiqueiro, um corrupto, um traficante, alguém que sonega suas verdadeiras atividades.

Carrego uma doença incurável: a paixão não vai embora. Ela é uma hóspede que adia sua despedida e toma para si o quartinho de empregada do meu coração.

Persigo a leveza, a alegria, a ternura, a entrega integral, o que é inviável. Corro atrás do inacessível que o apaixonado deseja: garantir a paz sem diminuir a intensidade, declarar-se diariamente sem jamais se enjoar.

Quero acordar serelepe, fingir que não estou com sono, dar um jeitinho para chegar antes ao corpo dela e sair depois, bem depois. Invento folgas, feriados, greve para desfrutar o máximo possível de sua convivência. Antecipo escalas, levanto voo de carro, enlouqueço a equipe para arrematar um almoço ou um jantar com ela. Qualquer fresta é festa surpresa.

Não é porque terei todo o tempo do mundo no futuro para amá-la que não irei usá-lo agora. A urgência é de um apaixonado em estado terminal. Meu lema é “já e sempre”.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 10/11/2013 Edição N° 17610 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

REPRESSÃO

O homem não mente mais que a mulher, ele somente gosta de ser descoberto.

A mentira é exclusiva e mostra importância do outro.

Veja DRnaTV de terça (5/11), na TVCOM, com produção de Fernando Muniz.

Responderei as dúvidas de leitores no programa a partir de terça (12/11).



terça-feira, 5 de novembro de 2013

NOVEMBRO EM VENTO


SÁBADO, 2/11, 18h – Porto Alegre (RS) 
59ª Feira do Livro de POA
Sessão de Autógrafos de “Espero Alguém”
Local: Praça da Alfândega - Praça de Autógrafos

TERÇA, 5/11, 9h – Porto Alegre (RS)
Fronteiras do Pensamento - Geração Z
Local: Salão de Atos da UFRGS - Av. Paulo Gama, 110 - Campus Central UFRGS

QUINTA, 7/11, 19h30 – São Miguel Paulista (SP)
Palestra no Festival do Livro e da Literatura de São Miguel
Local: Universidade Cruzeiro do Sul - Auditório D

SEXTA, 8/11, 18h30 – Salvador (BA)
Participação no Café Literário da XI Bienal do Livro da Bahia
Local: Centro de Convenções da Bahia - Av. Simon Bolivar, S/N – Jardim Armação

DOMINGO, 10/11, 18h – Parnaíba (PI)
Palestra no 4º Salão do Livro de Parnaíba (SALIPA)
Local: Complexo Arquitetônico e Turístico Porto das Barcas

TERÇA, 12/11, 17h30 – Porto Alegre (RS)
Oficina: álbuns familiares. Módulo 1/2.  59ª Feira do Livro de POA
Local: Sala O Retrato – Centro Cultural CEEE Erico Verissimo - Rua dos Andradas,1223 - Centro Histórico

QUARTA 13/11 17h30 – Porto Alegre (RS)
Oficina: álbuns familiares. Módulo 2/2.  59ª Feira do Livro de POA
Local: Sala O Retrato – Centro Cultural CEEE Erico Verissimo- Rua dos Andradas,1223 - Centro Histórico

QUARTA 13/11 20h – Porto Alegre (RS)
Sessão de autógrafos dos livros “Te pego na saída” e “Não atravesso a rua sozinho”
Local: Praça de Autógrafos da 59ª Feira do Livro de POA

QUINTA 14/11, 19h30 – Erechim (RS)
Palestra na Frinape 2013
Local: Auditório Garota de Ipanema

QUARTA, 27/11, 9h – Porto Alegre (RS)
Fronteiras do Pensamento - Geração Z
Local: Salão de Atos da UFRGS- Av. Paulo Gama, 110 - Campus Central UFRGS

INESQUECÍVEL

Arte de Gustave Caillebotte

Todo homem deseja exclusividade. Ser único para sua mulher.

Não nos interessa ser o primeiro, mas o último dela.

Não custa tentar, ainda que pareça improvável, ainda que o tempo se prevaleça egoísta.

O homem tem um apelo monogâmico inadiável em si. Pode – a longo prazo – se mostrar sacana ou infiel, porém realmente está mobilizado a atravessar a posteridade das lembranças. Pretende alçar uma condição definitiva, receber chinelos de bronze, obter a poltrona no centro da sala.

É um princípio ingênuo e verdadeiro, que acaba provocando os mais atormentados dilemas morais.

Ele fala mal das ex de propósito, somente para destacar sua atual companhia.

O homem vende seu passado pela metade do preço para comprar um futuro a dois. E toma essa atitude pela ânsia da exclusividade. O homem sofre horrores com seu romantismo, apesar de soar para a turma feminina como possessividade e ciúme.

Ele quer ser o melhor na cama, o melhor confidente, o melhor baladeiro, o melhor amigo da vida de sua namorada ou esposa.

Somos um Guia Quatro Rodas atualizando edições e buscando apagar os anos anteriores.

Mulher se emociona em segredo, o homem apenas se emociona depois dos boletins informativos de sua companhia.

Talvez seja carência, talvez seja insegurança, a questão é que somos assim.

Talvez seja vaidade, só que é uma vaidade que nos emociona, que nos arrebata, que fortalece o nosso amor.

É a nossa vaidade indispensável, logo nós, que somos distraídos para a aparência.

O homem espera declarações que assegurem seu lugar na história dos relacionamentos.

Ele mudará a cor de seus olhos quando sua mulher avisar que “foi o melhor sexo que ela fez”.

Ele mudará a cor de seu silêncio quando sua mulher avisar que “nunca esteve tão feliz”.

Ele mudará a cor de suas palavras quando sua mulher avisar que “jamais alguém a compreendeu desse jeito”.

Ele mudará a cor de sua coragem quando sua mulher avisar que “nunca existiu tamanha cumplicidade”.

E mudará sua vida se – por acaso – ela afirmar que o enxerga como pai de seus filhos.

É a frase que torna o homem inesquecível, já que nem sempre consegue ser eterno.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 5/11/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17605

domingo, 3 de novembro de 2013

NÃO EXISTE DIA RUIM

Arte de Fatturi

Não existe dia ruim. Sempre há chance do dia ser feliz. Mesmo que seja tarde. Mesmo que seja de madrugada. Uma gentileza salva o dia. Um bife milanesa salva o dia. Uma gola branca e engomada salva o dia. Uma emoção involuntária salva o dia.

Nunca o dia está inteiramente perdido. Não devemos acreditar que uma tristeza chama a outra, que se algo acontece de errado tudo então vai dar errado. Lei de Murphy não foi aprovada pela Câmara dos Deputados.

Confio no improviso, na casualidade, no movimento das cortinas na janela.

Até o último minuto antes da meia-noite, você pode resgatar o contentamento. É uma gargalhada do filho diante da papinha, transformando a cadeira num imenso prato. É algum amigo telefonando para confessar saudade. É sua mulher procurando beijar a orelha mandando sinais de seu desejo. É o barulho da chuva na calha, é o estardalhaço do sol na varanda. É encontrar - iniciando na tevê - um filme que adora e já assistiu cinco vezes. É oferecer colo ao seu gato. É planejar uma viagem de férias. É terminar um livro que abandonou pela metade. É ouvir sua coleção de LPs da adolescência. É comprar uma calça jeans em promoção. É adormecer no sofá e receber a coberta silenciosa de sua companhia. É a possibilidade feminina de passar um batom e pintar as unhas. É possibilidade masculina de devolver a bola quando ela sobe a cerca num jogo de crianças

A felicidade é pobre. A felicidade precisa de apenas um abraço bem feito.

Sigo esperançoso. Não coleciono tragédias. Sofro e apago. Sofro e mudo de assunto, abro espaço para palavras novas, para lembranças novas.

Vejo o esforço da abelha tentando sair do vidro, e não sou melhor do que ela. Vejo o esforço da formiga carregando uma casca de laranja, e não sou melhor do que ela. Viver é esforço e nos traz a paz de sonhar – querer não fazer nada é que cansa.

Não existe dia que não ganhe conserto. Não existe dia morto, dia de todo inútil.

Não desista da alegria somente porque ela se atrasou. Pode ter recebido esporro do chefe, ainda assim a hora está aberta. Comer um picolé de limão é capaz de restituir sua infância.

Não encerre o expediente com o escuro do céu. Pode não ter grana para pagar as contas e ter que escolher o que é menos importante para adiar, ainda assim é possível se divertir com o cachorro carregando seu chinelo para o quarto.

Quando acordo com o pé esquerdo, sou canhoto. Não existe dia derrotado.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 03/11/2013 Edição N° 17603