sexta-feira, 30 de outubro de 2015

"A RESPONSABILIDADE É MINHA!"

Arte de Vicente Dopico Lerner

Quando você é solteiro não tem em quem colocar a culpa pela sua infelicidade.  Ou culpa por não conseguir fazer as coisas. Ou culpa por se atrasar ou por não dormir direito. É só você com você. Não há culpados: ninguém está perto para acusar.

A responsabilidade não muda com o casamento. Continuamos responsáveis pelas nossas escolhas e desejos, tristezas e mágoas.

Não culpe a sua companhia por aquilo que sempre existiu. O que não deu certo ainda é seu, por mais que seja uma tentação jogar a culpa no marido ou na esposa. Os defeitos ainda são seus. Os problemas ainda são seus. As limitações ainda são suas - exatamente igual como na vida de solteiro. Não foi inventada a partilha dos defeitos no matrimônio.

Não busque tirar o corpo e a alma fora. Não enrole como Homer Simpson: "A culpa é minha e eu boto em quem quiser!”.

Ser honesto é mais bonito do que ser perfeito.

Ouça meu comentário na manhã dessa sexta-feira (30/10) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:



quarta-feira, 28 de outubro de 2015

FILHOTE DE URUBU

Arte de Eduardo Nasi

Nada era mais importante do que não ir para aula.

Criança faz vodu, reza por tragédias, assina pacto com a preguiça. Tudo para não se levantar cedo e enfrentar cálculos e regras de português.

Quantas vezes torci pela paralisação do magistério, absolutamente indiferente às reivindicações mais que justas?

Os professores enfurecidos e eu absolutamente alegre. Os professores badalando sinetas na Praça da Matriz e eu com o badalo da língua em um sorvete italiano de máquina. Não tinha nenhum engajamento ou compaixão, apenas pensava em mim com o egoísmo puro de um Anticristo. Mentalizava para o Governo jamais atender o aumento salarial da categoria, resmungava ofensas, mais intransigente do que o Secretário da Fazenda. Acompanhava a votação no Gigantinho aguardando, fervorosamente, os braços estendidos da multidão de servidores. Como amava a greve! Azar que perderia as férias em seguida, que as aulas avançariam janeiro, eu me interessava pelo prazer imediato.

Festejava porque me permitiria assistir O Balão Mágico a manhã inteira. Não precisaria me preocupar em despertar, tomaria o meu Nescau tranquilamente, e ainda poderia jogar videogame com os amigos.

Estudante é bicho triste. Comemora doença, hecatombe, confusão em nome de uma folga e de um feriado imprevisto.

Minha mãe chorava com a morte do Papa João Paulo I numa quinta-feira e eu ria à toa devido ao luto e ao sábado e domingo de graça no meio da semana.

Não fui um menino bom, fui um urubu de pequeno, um corvo disfarçado de gente.

Quando faleceu Tancredo Neves, o primeiro presidente civil do Brasil depois de 20 anos de ditadura, eu dei um pulo de gol na sala. Um urra de contentamento. Um soco no ar de Pelé. Lembro do porta-voz da presidência, Antônio Britto, noticiar, com voz pesarosa, o fim prematuro do nosso líder político: “Lamento informar que o excelentíssimo senhor presidente da República Tancredo de Almeida Neves…”

A família inteira fungava, perplexa, no sofá da sala, e eu não pertencia àquele quadro de consternação. Enxergava o benefício pessoal do enterro e da comoção nacional.

Aconteceu na noite alta de um domingo, 21 de abril de 1985. Estava começando a revisar conteúdo para a prova de matemática. No momento do anúncio fúnebre, não me contive de entusiasmo, joguei o caderno para cima. Não haveria prova, não haveria escola aberta, não haveria nenhuma obrigação. O país parou e me deixou livre para brincar. Lembro de ter dito, baixinho: “Obrigado presidente, morreu bem na hora”.

Arrependimento só não mata criança.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 28/10/2015

terça-feira, 27 de outubro de 2015

A BELA E A FERA


A mulher linda é a alma gêmea do homem feio.

Os dois são vítimas da aparência, com grandes dificuldades para demonstrar o que são por dentro.

Sou o feio de minha casa. Mas não enfrentei um bullying como o que aguentou a minha irmã Carla, uma boneca de tão formosa.

Eu fui debochado, chamado de ET, de monstro, de apelidos inimagináveis. Cansei de me envergonhar e de suportar os colegas rindo do meu jeito desengonçado. Porém mantenho o discernimento de que a Carla sofria mais: as pessoas por perto desconfiavam de sua inteligência. Não podia ser bonita e inteligente ao mesmo tempo.

A gozação era de outra ordem, caracterizada pelas indiretas.

No meu caso, o bullying era a gargalhada escancarada; no caso dela, era a conversa sussurrada.

No meu caso, o bullying era a ofensa gritada; no caso dela, era a suspeita silenciosa.

No meu caso, o bullying era a troça; no caso dela, era a fofoca.

No meu caso, o bullying era feito em minha presença; no caso dela, era construído em sua ausência.

Qualquer avanço precoce que ela alcançava na vida, pelos seus méritos e estudo, terminava creditado para a sua beleza. Os colegas insinuavam que encontrava facilidades por ser exuberante.

Não podiam admitir a sua genialidade, e suas proezas como a láurea na faculdade de Direito da UFRGS ou o primeiro lugar no concurso do Ministério Público.

Ela cresceu obrigada a se defender do senso comum, que não admitia que ela pudesse ser também competente, que conservava a mania de achar que toda a miss é burra, de que todo mulherão precisa seduzir para conseguir os seus objetivos.

Enquanto muitos deduziam que ela lesse O Pequeno Príncipe, ela conhecia O Príncipe, de Maquiavel, de cor e desbravava os clássicos da política e da literatura.

A beleza nunca a favorecia, apenas atrapalhava. Trabalhou o dobro para ser aceita, e o triplo para ser reconhecida.

A mulher linda é tratada somente pelo seu físico, esvaziada de personalidade. São um preconceito e um machismo invisíveis, traficados pelo elogio do corpo.

A agressão acontece de modo psicológico e sutil, e o isolamento torna-se quase certo. Tem que se desvencilhar de cantadas ininterruptamente. Há uma dificuldade para encontrar amigos e chefes desinteressados. Sair na rua é aturar os assobios da construção civil e os olhares pornográficos. Existirá a inveja das amigas que procurarão desmerecer o seu sucesso profissional. Professores esnobarão a sua imagem bem-vestida.

A mulher bonita corre sérios riscos de virar um alvo meramente sexual e jamais ser vista por inteiro.

Só ela entende o que o homem feio sente.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 6,  27/10/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18337

DESFILE

Arte de Eugenio Granell 

Homem não compreende quando sua mulher vem apresentar a sua lingerie nova.

Ele já quer tirar. Nem finge interesse. Ela gastou duzentos reais para nada.

Poderia existir sutiãs e calcinhas descartáveis, que daria igual trabalho.

O marido não memoriza quais são as peças recentes de sua esposa. Ela mostrará um conjunto que usa sempre e ele achará que foi comprado ontem.

Homem crê que a roupa de baixo não é para ser vista. Não entende o preço de um sutiã e de uma calcinha, ou a imensa paciência para escolher a ideal.

Olha como é complicado: a alça do sutiã deve ser centralizada nos ombros; quem possui seios menores, enchimento e push-up são uma ótima alternativa, quem possui seios maiores, o correto é optar por laterais e costas reforçadas; não convém alça de silicone ficar exposta, cuidado com a cor da pele não destoar demais do conjunto; quadril mais estreito tem o direito de abusar de calcinhas com alças finas, estampadas, com babados e laços nas laterais; já quem conta com um quadril avantajado é aconselhável calcinhas com cós mais alto e lateral mais larga, de preferência lisas ou com estampas pequenas.

Convenhamos, não é igual a selecionar uma cueca. É uma trabalheira sem fim.

O homem deveria ser mais solidário, aplaudir a caminhada que será feita na passarela do quarto e não querer ir direto ao finalmente.

O homem confunde desfile de lingerie com strip-tease. Não é a mesma coisa.

Ouça meu comentário na manhã dessa terça-feira (27/10) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


segunda-feira, 26 de outubro de 2015

MALANDRO COM MALANDRA

Arte de Jorge Castillo

A gente supõe que um malandro quando casa com uma malandra desfrutará de uma relação livre, excitante, louca, só aventura, sem amarras, já que ambos amam festa, dançar, bagunçar.  

É um engano. Tem tudo para ser uma relação conservadora.

Quem aprontou muito sempre sofrerá o medo que alguém apronte com ele.

Quem muito passou para trás em seus namoros não anda olhando para frente, caminha de costas. Viverá com receio de ser castigado, de levar o troco, de ser o último a descobrir.

Como os dois fizeram o pior antes do relacionamento, ficarão delirando monstruosidades de seu par. Não permitirão a sua companhia sair em paz, passear, conhecer novas pessoas.

Serão paranoicos, prevenindo deslealdades e infidelidades a qualquer momento.

Serão ciumentos, possessivos, desconfiados.

Conhecem todos os macetes e as manhas para enganar e não deixarão nada passar em branco.

Vão sair da libertinagem para o convento, da boemia para a prisão.

Dois ex-malandros juntos é uma casamento quadrado, sem graça, infestado de regras e restrições.

Ouça meu comentário na Itapema FM RS, na tarde dessa segunda (26/10), às 13h, apresentação de Denise Cruz:

domingo, 25 de outubro de 2015

BRIGANDO DIREITO



Sou fã de seriados, venho assistindo três ao mesmo tempo: Elementary, Narcos e Newsroom.

Neste último, um dos personagens jornalistas diz para a sua colega de trabalho que vive se separando do namorado: “Vocês precisam aprender a brigar direito”.

É um conselho que deveria ser levado para o ouvido do noivo e da noiva ao pé do altar: aprender a brigar direito é reduzir os danos e evitar as rupturas (e desgastantes reconciliações).

Briga boa é discussão curta, sem tempo para envolver outras pessoas e com espaço reduzido para não produzir ressentimentos. É falar o que feriu, explicar o ponto de vista, ouvir o contraponto, acolher as desculpas e seguir em frente, sem o risco de retaliações e excessos. Dependendo do que aconteceu, um longo telefonema ou um chimarrão ao entardecer resolve a pendenga.

Briga boa é aquela que não sai de casa, permanece dentro do círculo do relacionamento, a portas fechadas. Não vira cobrança, sermão e dívida. Mágoa longa sempre gera fofocas e opiniões incontroláveis de terceiros.

Briga boa não deve ultrapassar 24h, pois o mal-estar faz vítimas rapidamente. Nem todos têm paciência para ruminar desentendimentos. O suspense pela paz desperta o pessimismo nas almas amorosas. É duro controlar a ansiedade. O tema só chegará ao terapeuta depois de passar pela comunidade inteira.

O ideal é ter simplicidade para falar o que incomoda, não dependendo de conversas sérias e avisos de despejo.

Saber brigar é solucionar o impasse procurando as palavras certas, respirando fundo, prevenindo-se das agressões gratuitas, cuidando para não recorrer a afastamentos.

Ao banalizar o término, estará abrindo caminho para chantagens cada vez mais pesadas.

Briga boa significa preservar o seu par de algumas ofensas. Ultimatos são perigosos e costumam ser aceitos no momento de raiva. Desaconselhável desafiar a sua companhia com o fim – apressando a chance de ela fazer as malas.

Afinal, na gritaria, é o orgulho que manda, jamais o amor.

Briga boa é manter o foco de tudo o que é vivido a dois, e não apenas sublimar um momento ruim. Acima de tudo, cabe a delicadeza de trazer o contexto do romance à tona, o dia anterior, a sequência da intimidade. Fica mais fácil compreender a falha diante do conjunto da obra.

Ninguém está livre do erro, do engano e da distração. Brigas são desabafos. Não distorça a sua natureza catártica para um desproporcional acerto de contas.

Briga boa é, depois de reclamar, devolver a esperança com um beijo e um abraço apertado.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.48
Porto Alegre (RS),  25/10/2015 Edição N°18335

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A MINHA TRISTEZA PASSA RÁPIDO

Arte de Cundo Bermudez

Hoje completo 43 anos.

No primeiro aniversário que fiz para a os amigos, ninguém foi.

Foi um vexame. Foi um desastre. Foi um mico.

Tinha sete anos, cursava a primeira série, a mãe inventou de fazer a minha festa num feriado. A minha primeira festa para os outros.

O convite era do Flash Gordon, meu herói predileto na época.

A mãe e as irmãs passaram a semana preparando brigadeiros, branquinhos e salgados.

Estava me sentindo muito importante.

Eu fiquei na frente da casa esperando os meus convidados. Vestido de macacão e gravata borboleta. Jamais repeti esta combinação maluca na vida.

Morava numa residência de esquina.

Todo mundo que subia a lomba da Rua Corte Real, eu pensava que era alguém que chegava para a minha festa.

Gritava para os irmãos: - Agora sim!

Mas me enganava, as pessoas seguiam reto para seus compromissos. Não era para mim. Nunca era para mim.

Fiquei mais de duas horas plantado na frente de casa controlando todos que se aproximavam. Tão plantado que devo ter dado frutos e pássaros pousaram em meus ombros.

Até que anoiteceu, até que o pai pediu que entrasse, até que acabou o meu sonho de receber presentes dos colegas da escola.

Quando vi a mesa posta, com docinhos, cachorro-quente e salgadinhos para um exército, me deu uma pena de mim. Depois vi a torta imensa e a cara triste da minha mãe, daí me deu uma pena imensa de minha mãe. Guardei a lágrima, mais preocupado com ela, e busquei consolá-la:

- A gente pode congelar a torta para o ano que vem, não fica triste, mãe.

Sempre a tristeza dos outros é mais importante do que a minha tristeza, por isso a minha tristeza passa rápido.

Ouça meu comentário na manhã desta sexta-feira (23/10) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


quarta-feira, 21 de outubro de 2015

TORTURAS DO AMOR MENINO

Arte de Eduardo Nasi

Quando o homem começa a acertar no relacionamento, já sofreu muito.

Quando o homem começa a ganhar na paixão, já tem um histórico de derrotas no coração.

Quando o homem começa a ser feliz no romance, já apanhou bastante em sua infância.

Atravessou os piores sentimentos como a inveja, o ciúme, a desvalia e a saudade antes de experimentar o amor.

Como ele amadurece bem mais tarde do que a mulher, não tem igualdade de condições para arrebatar suas colegas de escola.

As gurias do fim do Primeiro Grau, na minha época, por exemplo, de 13 anos, só ficavam com os caras mais velhos, de 16 anos para cima.

A concorrência era desleal.

Nós, da mesma faixa etária, rascunhávamos bilhetes e jogávamos fora, ensaiávamos frases por dizer e gaguejávamos na hora de reproduzir o seu conteúdo arrebatado. Nossa interação resumia a dividir a pastelina e o refrigerante. Ou sonhar com uma aproximação durante o trabalho em grupos.

Mas bastava sair dos limites da escola que desaparecíamos. Não existíamos. Evaporávamos.

Vinham os forasteiros. Alguns na universidade, alguns de carro, alguns falando grosso, alguns de barba enquanto ainda exibíamos a penugem transparente de um bigodinho.

Sequestravam intelectualmente as nossas garotas. Para além da noite e dos nossos olhos.

A maior parte delas namorava com os caras fora do nosso círculo. Não tínhamos chance. Representavam homens feitos, com quarto para namorar e dinheiro no bolso.

Além da desvantagem do tempo, havia uma injustiça na divisão dos recursos. Sem privacidade, seguíamos com uma rotina cigana, migrando da praça de alimentação dos shoppings para os bancos das praças, indo a pé da escola naquela vaga esperança de economizar a grana do ônibus. Impossível levar qualquer menina para casa, sofreríamos com o inquérito e espionagem da mãe.

Aspirávamos a primeira relação com elas, mas nem atingíamos o degrau do beijo. Não queriam saber dos piás, dos fedelhos, das crianças que voltavam suadas do recreio, com o gambito das pernas e as costas arqueadas.

Não desfrutávamos de peitoral e da simpatia bronzeada dos surfistas.

Quantas meninas amei sigilosamente no Ensino Fundamental e jamais me declarei? Por quantas meninas chorei em segredo?

Restava-me ser o melhor amigo delas, o confidente, o corno manso do amor platônico.

Por isso, faço questão de ser mais velho. Sempre adianto a minha idade. Para recuperar os três anos que perdi no princípio da adolescência.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 21/10/2015

terça-feira, 20 de outubro de 2015

GAVETA DOS MISTÉRIOS


Na cozinha, tenho a gaveta dos mistérios. Foi dessa forma poética que a minha mulher chamou a segunda gaveta do armário.

Uma gaveta das extravagâncias caseiras, com tudo o que eu não imaginava possuir, que não lembro de ter comprado ou recebido de presente.

É o Estreito de Bering dos meus objetos, onde as coisas mais estranhas se misturam e criam novas vidas, ajudando-me a ser menos primata.

São inutensílios mais do que utensílios.

Quando a minha esposa pergunta se contamos com algo, mesmo que não compreenda do que está falando, já assimilei que pode estar na gaveta dos mistérios.

“Dá uma olhada ali!” é a minha resposta mais adequada.

Foi assim com o esmagador de alho. Nem passava pela minha cabeça que alguém excêntrico e louco tivesse inventado um espremedor para não feder as mãos.

Foi assim com o fuê e seus cabelos metálicos para bater as claras. Dez contra um que ignorava o batismo dessa colher.

Foi assim com o almofariz, um delicado pilão, moedor de grãos, cujo formato desconhecia.

Foi assim com a mandolina. Quando a esposa questionou sua existência, pedi que repetisse três vezes. Achava que escutava errado a palavra. O incrível é que havia uma mandolina na gaveta dos mistérios. Como pode? Fui descobrir que é para ralar vegetais. Não prestei a devida atenção nas aulas de técnicas domésticas na escola.

Entre os conhecidos cutelo, concha, funil, espátula e saca-rolhas, a despensa convida habitantes irreais para se juntarem à mesa. Há sempre um nome difícil e de pronúncia misteriosa. Às vezes, penso que aquilo não é uma gaveta, mas um dicionário.

Não posso mentir que me deu medo no instante em que a mulher me pediu para passar o cuscuzeiro. Tudo tem limite. Vá lá que eu ache.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 6,  20/10/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18330

LAVAGEM CEREBRAL

Arte de William Baziotes

Homem tem a mania de não separar sua roupa na hora de colocar na máquina. Deixa tudo amontoado no cesto. É uma preguiça de infância que carrega para a vida adulta. É uma característica de filhinho da mamãe que não desapega.

Ele não se despe, ele se abandona.

Confunde seu figurino com um macacão eterno. É sempre uma peça única apesar de várias peças.

Pois a cueca está dentro da calça, as meias estão dentro da calça também, a camiseta está dentro do blusão. Isso quando não esquece o cinto junto.

Mais fácil pôr o homem inteiro na máquina de lavar.

Ouça meu comentário na manhã desta terça-feira (20/10) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

ANTES DO ANTES

Arte de  Paul Delvaux

O dilema do ciúme possessivo : a pessoa se sente melhor do que o outro porque se acha pior do que o outro.

A insegurança não vem do medo de perder alguém, mas da certeza de que não vale nada.

Ela não confia em si e passa a desconfiar de sua companhia.

Ela não ama a si e cobra amor de sua companhia.

Ela não respeita os seus limites e é grosseira com a sua companhia.

Ela suspeita da natureza de seus sentimentos, e vive querendo desmascarar o quanto a sua companhia não é fiel e leal.

Ela não acredita que pode ser amada e não deixa qualquer um amá-la.

Ela não se julga merecedora da convivência, portanto tenta apressar o fim.

Ela não quer ser feliz para continuar reclamando de sua tristeza.

Só pode ser dependente, ser cuidado, quem já era independente e cuidava de si.

O amor não conserta nada, apenas evidencia o que foi feito antes da relação.

Ouça meu comentário na Itapema FM RS, na tarde dessa segunda (19/10), às 13h, apresentação de Denise Cruz:

domingo, 18 de outubro de 2015

LIBERDADE É PODER BRIGAR


Se a minha mulher fizesse tudo o que eu quero, eu seria livre, mas ela não.

Se eu fizesse tudo o que a minha mulher quer, ela seria livre, mas eu não.

Como ambos não realizam o que o outro sempre deseja, vivemos brigando. Ou discutimos por ciúme. 
Ou por algum descaso. Ou para manter a vontade de cada um.

E não brigamos por qualquer coisa, isso é neurose, porém brigamos para manter pontos fundamentais das nossas personalidades.

Quem enxerga de fora não alcança o motivo de nossa união, já que parecemos divergentes, explosivos, passionais.

Dá a entender que somos infelizes e gostamos de nos maltratar, mas é um grande equívoco.

Nunca renunciei a minha liberdade. Ela nunca renunciou a sua liberdade. Brigar é a prova de que somos livres dentro do casamento. Nenhum dos dois sacrificou a sua independência para agradar o outro. Nenhum dos dois é submisso. Nenhum dos dois abdicou de suas convicções. Nenhum dos dois se sujeitou a uma placidez consensual.

Estamos convivendo, cedendo o possível e nos entendendo devagar, como deve ser qualquer democracia amorosa, a partir de exaustivas conversas e tentativas.

O respeito vem das brigas superadas, a maturidade vem com o tempo, méritos e medalhas de uma longa depuração das dissidências.

Casal que não se desentende não é mais casal, e sim uma dupla: um grande e um pequeno, um gato e um rato, um dominador e um submisso, um tirano e um explorado.

Significa que um dos dois se apagou completamente e diz amém para toda reivindicação que surge.

As rusgas, os atritos e as confusões familiares, desde que episódicas, são absolutamente naturais para quem ama. Não é nenhum vexame ou mico. Não é uma exceção. Não é um dia ruim.

Dependem de terapia de casal aqueles que se calam para não ter trabalho, não os briguentos, não os ruidosos, não os exagerados, que encontram um jeito de imprimir o seu posicionamento.

Liberdade não é concordância, liberdade é ter a chance sempre de discordar, de escolher, de se opor, mesmo que seja errado ou inadequado.

Quando vejo um par que se expressa, que se pronuncia com firmeza, que troca farpas, acentuados de algazarra, saio de perto, e não por vergonha, é que não me preocupo, sei que estão bem e juntos, sei que estão protagonizando mais um capítulo de aguda sinceridade.

Já quando reparo em um par obediente, calado, já pressinto que me aproximei de um cativeiro em vez de um lar. Alguém fez um refém e não pediu resgate, alguém explora a bondade alheia e escraviza.

Liberdade numa união é poder defender a própria liberdade.

Já prisão é não oferecer resistência, é desistir de falar, é não comentar nada para não desapontar, é não explicar seus pensamentos contrários.

Idealizamos o casamento como se fôssemos solteiros, e não convivendo com uma pessoa absolutamente diferente, com uma vocação diferente, com um sonho diferente.

Igualar-se mata a relação. O que salva o amor é jamais suprimir a identidade em nome do mais forte.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  18/10/2015 Edição N°18328

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

RAÇA SUPERIOR

Arte de Marcelino Vespeira

Quer a prova definitiva da superioridade feminina? A mulher tira o sutiã sem tirar a blusa. É um superpoder.

Não existe operação idêntica masculina. O homem não tira a cueca sem tirar a calça, nem tira a meia sem tirar o sapato, muito menos tira a regata sem tirar a camisa por cima.

O que ela faz é mágica, contorcionismo de circo, desenho animado. Ela solta o fecho com uma mão, passa uma tira pelos ombros e braços com a outra, e pronto. Três gestos, três segundos. Pena que não é uma modalidade olímpica.

Utiliza a própria aparência como tenda, como biombo, como camarim, para evitar olhares indiscretos. Troca de roupa sem ninguém perceber. Pode fazer no carro, no trem, no elevador, no restaurante, em qualquer parte.

A impressão é que tem ossos flexíveis, remove o osso do lugar e põe de volta.

Coisas de ninja, de samurai. Aceite apenas que a mulher é uma raça superior, e admire os seus milagres.

Ouça meu comentário na manhã dessa sexta-feira (16/10), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


quarta-feira, 14 de outubro de 2015

ACADEMIA: DIFERENÇAS DE UM CASAL

Arte de Eduardo Nasi

Quando um casal se inscreve junto na musculação, paga adiantado um semestre, prevejo que somente a mulher ficará até o final.

A profecia não tem erro. Há sérias diferenças no comportamento das duas criaturas abençoadas pelo matrimônio.

O homem faz um dia de academia e já se sente forte. Já muda seu olhar diante do espelho. Já fala grosso com o zelador do prédio. Já acredita que inchou os seus braços. Já cria pose de halterofilista no banho. Já realiza um rancho em lojas esportivas – calção, meias, camisetas e tênis -, jurando que mudou de perfil. Adquire um potão de 900g de Whey. Já dispara selfies malhando. Já espalha para os amigos que é fitness, desmarca compromissos alegando que não pode adiar a sua corrida na esteira.

A mulher faz a estreia na academia e se sente mais gorda do que nunca. Bate uma tristeza de inverno, uma depressão pelas calorias acumuladas ao longo da relação.  Diferente da ala masculina, ela não se ilude e vê tudo o que precisa perder de peso. Evitará fotografias por um bom tempo, começará greve de sexo, não comprará mais nada até recuperar a forma e é capaz de sair para a rua de burka na manhã seguinte.

Com uma semana, o homem se comporta como um veterano dos aparelhos e dos halteres. Dá dicas e se mete em toda a conversa sobre proteínas e carboidratos. Jura que realizou o maior sacrifício e que se encontra pronto novamente para a sunga. Mal começou e se acha o gostosão, apesar da barriga de pagodeiro. E o incrível é que não sofre de inveja dos musculosos. Pelo contrário, enxerga seus colegas tanquinhos com pena:

- Ai que dó desse sujeito que não pode comer pizza, não pode tomar cerveja, não pode aproveitar a vida.

Com uma semana, a mulher reclama que nem doida dos abusos e sonha em reaver a marca de adolescente. Intensificará o treinamento para recuperar o condicionamento. Vai morrer de inveja de quem esbanja a barriguinha sarada e os glúteos duros – não falará de outra coisa em casa.

Depois de três meses, o homem abandonou a academia de tanto achar que estava bem e a mulher estará cada vez mais linda fazendo ginástica cinco vezes por semana.

Homem é deslumbrado e desiste fácil. Mulher é altamente crítica e não se engana. Jamais se engana com o próprio corpo.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 14/10/2015

terça-feira, 13 de outubro de 2015

CHEGOU O MEU DIA

Arte de John Tunnard

Perdi a minha mulher para a geladeira nova.

Antes a nossa geladeira nanica enchia com facilidade, agora para lotar exige contracheque de muitos dígitos.

A minha mulher não sai da cozinha preparando potes e querendo tudo o que é produto para forrar as suas prateleiras.

Ela não vai mais para o quarto e para a sala.

Não tenho como competir com a geladeira: é um armário. Mais forte e musculosa do que eu. 1,83 cm por 80 cm.

Nestes dias, vi a minha mulher abraçada na geladeira.

E a geladeira tem Bluetooth, um botão férias, um botão turbo freezer, um botão festas, um botão drinques, um botão compras.

Não conto com tamanha tecnologia. O que me resta é admitir que fui substituído. Chame o Mensageiros da Caridade para me levar.


Ouça meu comentário na Rádio Itapema na tarde dessa quarta-feira (13/10), às 13h, apresentação de Denise Cruz:



DESENCARNANDO



As roupas existem para nos ajudar a desencarnar e encarnar.

É uma lição espírita.

Saber o momento em que foram úteis e também definir a hora em que não mais precisamos delas e de que outros precisam.

Amá-las enquanto história e recordação, para fazer memória de nossas emoções – a memória é o que importa em nossa trajetória –, e depois deixar que novos moradores dos tecidos sigam produzindo suas lembranças.

Oferecer a roupa é uma escola de despedida, é se desligar um pouco da pele, gradativamente, para encontrar a alma e não sofrer tanto com a própria morte. Aceitamos o fim de um ciclo para festejar o seguinte.

Dê a roupa, primeiro, para os familiares, irmãos, filhos e pais, aprendendo a dividir a herança do afeto. Em seguida, escolha algumas peças para presentear os amigos como prova de importância.

Exercite o desapego em família, assim estará maduro para estender o hábito aos desconhecidos, a todos que enfrentam inundações e tragédias, perdas repentinas e acidentes.

Um casaco pode servir a várias vidas. Um vestido pode atender vários recomeços. Uma calça pode ser uma centopeia de homens.

Os cabides são inúteis para abraços, pontiagudos, vazios, não substituirão o peso acolhedor dos ombros. Os cabides não compreendem o calor da generosidade, o afago do braço estendido. Os cabides são burros de madeira e ferro, insensíveis de plástico, jamais agradecem.

Não espere o agasalho esfriar como pedra, não alcance apenas o que já não deseja ou o que está gasto e rasgado, mas o que não tem posto no corpo há tempo. Os bens são provisórios e o egoísmo é eterno.

Não queira ser exclusivo dos objetos, seja único para você mesmo.

A roupa é o nosso primeiro corpo. Não devemos trancá-la na vaidade e na posse, abandoná-la no armário e na velhice, escondê-la aguardando ocasiões especiais que nunca vão acontecer.

Roupa é para estar em movimento. Parada, termina adoecendo as nossas virtudes.

Não tenha medo do prejuízo. O valor do caráter cobre sempre o preço da etiqueta.

Repasse adiante o seu coração de linho, o seu pulmão de lã, o seu rim de seda, ajudando aqueles que carecem de frio e de desassossego. A moda muda conforme as estações, o estilo vem do despojamento.

A roupa é a nossa possibilidade de vestir a verdade mais do que a beleza. Doe antes para não doer no futuro.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  13/10/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18323

ESCALA MASCULINA DE IMPORTÂNCIA

Mario Carreño Morales

Se o homem convida a mulher para sair de um dia para o outro, ela é a sua prioridade. Não duvido que não tenha se apaixonado, ainda mais se é final de semana.

Se o homem convida de manhã para sair à noite, ela é uma de suas primeiras opções, mas não a única.

Se o homem convida de tarde para sair à noite, ela faz parte do segundo escalão do Facebook, ainda é importante, um CC de respeito, mas não foi a primeira a ser chamada.

Se o homem convida de noite para sair de noite, ela é do terceiro escalão, CC do CC da beleza. Ela pode supor que é improviso, só que a verdade é que ele tentou muita gente antes.

Se o homem convida de madrugada para se ver de madrugada, faz favor de não atender, é carência. Não achou ninguém e somente quer transar.

A mulher odeia compromisso em cima da hora. Não abre mão do tempo para se arrumar e se preparar ao encontro. Aceitará apenas se também estiver desesperada.

Ouça meu comentário na manhã desta terça-feira (13/10) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:



domingo, 11 de outubro de 2015

A SOLIDARIEDADE COM A TRISTEZA DO OUTRO


Ceder é transcender.

Não tenho mais nenhum interesse na vida de mandar no relacionamento: eu me respeito e respeito o outro.

Não planejo nada além de dois dias. Trata-se de um prazo razoável. Porque nunca sei das inconstâncias de meu humor e o de minha mulher e de meus filhos.

Não faço mais arrastão, aquilo de marcar uma saída e não aceitar qualquer mudança de plano.

A onipotência (a ânsia de controlar a tudo e a todos) é um risco altíssimo para o casal. Sou mais de acordar com calma e ver como estão as coisas.

Desagradável é a disputa de poder no final de semana. Agendar um passeio e descobrir na hora de se arrumar que a mulher não está mais a fim. Ou porque sofre de enxaqueca ou não dormiu bem ou resta trabalho inacabado, motivos que não existiam antes da promessa.

O que pode acontecer?

Primeira hipótese: você teimar em manter o compromisso e chantagear a esposa para acompanhá-lo pelo simples argumento de que já estava combinado há tempo. Ela poderá ir, absolutamente contrariada, e passará o passeio inteiro com a cara emburrada, desprovida de qualquer vontade de sorrir.

Assim como você comprou briga para sair, agora comprará nova refrega, já que ela não se encontra do modo como imaginou. Não parece nem um pouco disposta.

Ficará furioso que ela não colabora, não ajuda, não se esforça para tornar agradável. Mas ela já havia dito que não tinha nenhuma vontade, você que não foi compreensivo. Não há como funcionar. O que deseja é praticamente o impossível, que a felicidade seja um feitiço e acenda a luz dos olhos dela com uma salva de palmas. A alegria jamais será obrigação, e sim estado de espírito.

Não é que ela não quer ser feliz, não conta com inspiração para ser feliz. Felicidade é contexto, atmosfera, disposição. Não adiantou seguir com o roteiro. Discutirão sem parar, apesar do sol e da comida maravilhosa do restaurante.

Segunda hipótese: também pode colocar tudo a perder permanecendo em casa como provocação. Desmarca, finge que aceita o desânimo dela, porém emburrece e faz qualquer movimento de mau-humor. Não acolhe o impedimento como natural, seu interesse é boicotar as mínimas atitudes dali por diante e mostrar que ela estragou o seu final de semana.

Aponta o egoísmo da tristeza dela e não percebe que o seu contentamento ainda é mais egoísta.

Não custa mudar de opinião e oferecer um voto de confiança. Entender que a nossa companhia não vem partilhando da mesma frequência. Representa um momento, não é para sempre.

Forçar o entusiasmo provocará apenas culpa.

Aproveite a folga para ler, ver filme, conversar com os amigos.

Milagrosamente é somente sair de perto, dar espaço para a solidão, não pressionar, que ela virá depois disposta a passear.

Quem cede sempre é recompensado com amor.

A desobrigação gera a escolha. A escolha é liberdade.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.40
Porto Alegre (RS),  11/10/2015 Edição N°18321

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

PROFECIA DO FRACASSO

Arte de Giorgio de Chirico

Pensar demais é exigir demais de si e dos outros.

Pensar demais é analisar todas as hipóteses para não correr riscos.

Pensar é bom, desde que não vire angústia, sofrimento, deserção do mundo.

O excesso de pensamento tende a virar imobilidade.

Todo o pessimista é prepotente. Não se repete porque ele já sabe de tudo. Saber de tudo é morrer para a experiência.

Ele critica antes de enxergar, critica antes de ouvir, critica antes de provar.

Quem pensa demais procura ter somente benefícios sem a contrapartida dos sacrifícios.

Quem pensa demais encontra mais problemas do que soluções. É mais prevenido do que real, é mais cauteloso do que verdadeiro.

Não vai, não quer, não deseja, pois já conhece os resultados. Não arrisca. Não ousa. É um profeta do fracasso.

Arruma sempre uma desculpa para não comparecer. Afinal, quem pensa demais não quer perder tempo e assim perde a esperança de mudar de ideia e de vida e de participar de qualquer coisa.

O intelecto não pode apagar o prazer da simplicidade. É saudável ser idiota um pouco por dia.

Não há motivo para jogar futebol entre os amigos a não ser o  hábito de reviver a infância.

Não há motivo para dedicar uma tarde inteira de churrasco e ouvir as piadas antológicas a não ser o hábito de rir em família.

Felicidade não é racional. Felicidade é continuar acreditando mesmo depois de ter sido infeliz uma vez.

Ouça o comentário na manhã dessa sexta-feira (9/10), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

NÃO VISITE A NOSSA COZINHA, ÁREA DE GUERRA


Arte de Eduardo Nasi

Tenho os meus panos de cozinha.

Panos velhos, manchados, esgarçados, com os desenhos de uvas e flores apagados, mas que secam e limpam que é uma beleza.

Formam um conjunto de paninhos idosos, com a preferência de sentar em minhas mãos. Nem entram em fila de espera. São curingas que servem para diferentes atividades: lustrar móvel, desinfetar, sugar a aguaceira das superfícies.

A vida era simples até a minha mulher profissionalizar a nossa área de limpeza.

Ela anda querendo tirá-los de circulação. Um caso evidente e abominável de extermínio.

Não posso mais largar um de meus panos de prato à mostra no balcão, dar bobeira, que ela pega e põe no lixo sem piedade, sem perguntar, sem remorso da história e da dedicação daquelas peças.

E não tenho como comprar panos velhos. É como o tênis usado que fica bom, entende? É quando o tênis perde aquele branco constrangedor e passa a ser humano. O mesmo ocorre com meus paninhos. Os paninhos são a minha gente, ora bolas, são a minha família.

Mas ela decidiu de terceirizar o espaço, não há mais como misturar mais nada: comprou um pano amarelo para o fogão, o perflex para uso exclusivo da cozinha, um de prato que não posso empregar para mais nada a não ser secar, um pano para cera, um pano para esfregar o chão, um pano para a privada e o banheiro.

Agora é um exército de panos inéditos que me confunde: penso muito para definir qual é o tipo de quê. Antes apenas limpava. Hoje é decoreba, hoje me revejo memorizando a tabuada com palitinhos de fósforos.

Para não perder tempo, comecei a esconder os meus panos afetivos da chacina do lar.

A cozinha transformou-se em disputa pelo domínio do morro.

Guardo meus panos no alto da secadora, lá no fundo, em uma caixinha de papelão. Ela não tem como enxergar. Um outro esconderijo é na gaveta junto dos meus calçados excêntricos, que ela não gosta, onde mantenho o par de sapatos de Bozo, como ela mesmo define.

Não entregarei os pontos.

Sou eu e os meus paninhos contra a modernização do serviço doméstico.

O fim é certo, o que me resta é adiá-lo.

O homem pode virar o rei da cozinha, mas jamais terá a coroa. Por enquanto, e somente por enquanto, escondo o meu manto para não ser irremediavelmente deposto.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 07/10/2015

terça-feira, 6 de outubro de 2015

QUEM VAI SUBIR NO TELHADO PARA ARRUMAR A ANTENA?



Não havia canais por assinatura, somente televisão aberta.

Não havia sequer controle remoto, ligávamos e desligávamos a TV girando um botão no aparelho.

Na infância, antes de a preguiça nascer, a televisão dependia de uma antena no telhado e de uma antena em cima da tevê.

A imagem chuviscava, dobrava, encurtava, piscava dependendo do vento. Um deus nos acuda quando o sinal desaparecia de repente no meio do noticiário ou numa cena de beijo.

Em alguns momentos, um Bombril nas pontas da anteninha interna resolvia a tremedeira. Em outros, era preciso criar uma operação de guerra. Alguém tinha que subir no telhado e mexer na antena externa. Na minha família, costumava ser o pai. Mesmo gordo, o pai recebia a missão de homem da casa. Mas seu trabalho exigia uma equipe de apoio, de no mínimo mais duas pessoas.

O pai pegava a escada, apoiava-se nas calhas, pisava cautelosamente nas juntas e tentava deslocar as pontas de metal, infinitamente, com o objetivo de localizar o ponto exato da definição do canal. Só que ele não estava na frente da televisão – estava já em cima, às cegas.

Um irmão, posicionado na sala, narrava o andamento de cada intervenção:

– Ainda ruim, melhorou, assim, não mexe, volta volta, ótimo!

Mais um, de guarda no pátio, controlava a gesticulação da figura paterna e traduzia o que estava sendo dito do fundo da residência:

– Mais para a esquerda, mais para a direita!

A mãe, desesperada, implorava para o pai não cair. Rezava e gritava ao mesmo tempo:

– Desce daí, Ave Maria cheia de graça, você vai morrer, o Senhor é convosco, não seja estúpido, bendita sois Vós entre as mulheres...

Não se ouvia ninguém direito, numa gritaria sem tamanho.

Naquela época, consertar a TV custava malabarismo e a própria vida.

Mexe pra cá, mexe pra lá, a aventura poderia demorar duas horas. Um movimento brusco, inexato, botava tudo a perder.

O pai não desistia enquanto não recuperava a fixação da imagem. Usava os dedos como pinças, empurrando delicadamente as hastes, em concentração apurada de ladrão de cofre.

Assim que descia, com o retorno da nitidez do aparelho, tornava-se o herói familiar, o nosso bombeiro, o nosso salvador dos programas dominicais, abraçado por todos, ovacionado por declarações de amor.

Ele fingia humildade:

– Não fiz nada além do meu dever.

Pena que sua fama duraria pouco, até a próxima tempestade, quando a mãe lhe culparia pela porção de goteiras.

– Com seu peso, quebrou as nossas telhas. Você não presta.

Encontrávamos um final feliz unicamente nas novelas.








Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  06/10/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18316

GENE KELLY

Arte de John Tunnard

O carregador do celular é o novo guarda-chuva.

Antes o que mais perdia na vida era guarda-chuva. Devo ter extraviado mais de quarenta ao longo da vida, numa média de um por ano. Mudava o tempo, desaparecia a água das nuvens, e o deixava no restaurante, no ônibus, na escola, na universidade, no consultório. Lembrava somente dele na hora de sair para a rua no próximo temporal. Cansei de comprar, de roubar dos outros, e me molho de propósito, sou o Gene Kelly das poças gaúchas.

Agora sofro da maldição do carregador. Por mais que me concentre, esqueço no aeroporto, na casa de amigos, no trabalho, no bar. Como a bateria dura pouco e o celular centraliza o e-mail, as redes sociais e os contatos profissionais, sou obrigado a adquirir mais um carregador antes de recuperar o antigo de volta. Não há tempo hábil para o resgate.

O carregador é infiel como o guarda-chuva. Vive me trocando. Ele me abandona sempre para ficar beijando a tomada.

Ouça comentário na manhã dessa terça-feira (6/10), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antônio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O PASSADO GUARDADO DENTRO DO FUTURO

Arte de Hannah Höch

Você deve ter algum objeto do ex em casa.

Uma caneca, uma roupa, um livro com dedicatória, um cd, qualquer coisa que não jogou fora.

Qualquer coisa que você pensou que era mais seu do que do ex.

Qualquer coisa que escapou da fogueira, da Inquisição, do ódio.

Qualquer coisa que resta no purgatório sentimental.

Qualquer coisa que esqueceu ou não sentiu necessidade de jogar fora.

Você apagou as fotos no Facebook, quebrou os porta-retratos, limpou o guarda-roupa, abandonou grande parte dos presentes, você deixou que ele levasse embora tudo o que  lembrava.

Mas algo ficou, sempre fica, por mais atento que seja.

A verdade é que, consciente ou inconscientemente, não conseguimos descartar uma existência por completo.

Porque somos sensíveis, porque somos bobos, porque somos humanos, apesar do sofrimento e da cicatriz.

Fracassamos, temos compaixão, preservamos uma relíquia para dizer que o relacionamento não foi em vão.

Escolhemos sem querer uma prova de que não foi loucura de nossa parte, de que não foi alucinação, de que o amor tem provas materiais e realmente existiu.

Ouça meu comentário na Rádio Itapema na tarde dessa segunda (05/10), às 13h, apresentação de Denise Cruz:

domingo, 4 de outubro de 2015

BANHO SEMPRE JUNTOS


Um casal de amigos toma banho juntos todo dia.

Não é exagero: todo santo ou maldito dia. Ambos não abdicam do hábito.

Não se unem para sexo ou transas aquáticas, não se abraçam para sedução ou selvagerias líquidas.

Nenhuma pornografia como é possível imaginar. Pois casa não é motel, é refúgio do tumulto do mundo. Os espelhos não estão no teto, mas nos próprios olhos.

É banho para a ternura, para a transparência.

É banho para conversar e se atualizar, lavar o silêncio, acalmar a ansiedade.

É banho para chorar quando necessário, brincar de espuma, rir dos perigos e organizar os desmandos do trabalho.

É banho de amizade, de cumplicidade auditiva, de intimidade da pele, para saber como foram a manhã e a tarde de cada um e preparar a barca dos sonhos.

É banho em que os joelhos e os cotovelos são lembrados, em que as axilas e as costas são esfregadas.

É banho de açúcar, melhor do que o sal grosso para espantar o mau olhado.

Dividem o xampu e a esperança. Enquanto um se ensaboa, o outro se enxagua. O revezamento é perfeito como uma dança, como uma coreografia.

Estão nus, sem reservas, sem receios, sem caretas e poses, sem mentiras e distorções, com a humildade de se colocar à disposição.

Como Adão e Eva antes da maçã. Antes da amargura.

Adultos que escolheram a água como o refúgio infantil, puro, um confessionário onde nenhum filho abrirá a porta com novas urgências.

O box é uma piscina vertical, o box é uma hidromassagem de pé.

O box é uma varanda fechada, uma Veneza em miniatura.

O box é uma chuva particular, em que vão chapinhando nas poças e as vozes buscam alguma música brega para distrair as dificuldades.

E se um já tomou banho antes repetirá a operação para não perder a parceria. Mesmo que isso signifique tirar o pijama e deixar o calor da cama.

Não passam um dia sem tomar banho lado a lado. Descobriram que a lealdade é abrir um espaço fixo para a palavra.

Os casais devem tirar um momento de sua rotina para estarem absolutamente entregues. Um momento apenas de atenção integral, para renovar o ímã da felicidade.

Pode ser o café da manhã, o almoço, uma horinha de chimarrão no entardecer, uma caminhada pela praça, a leitura de jornais, o colo de uma novela.

É dividindo a solidão que os dois serão um só pela vida inteira.




Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.40
Porto Alegre (RS),  04/10/2015 Edição N°18314