quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A DOÇURA EMBRIAGANTE DA BIRRA

Arte de Eduardo Nasi

Não quero que a mulher seja equilibrada, constante, que perca suas esquisitices e rompantes, justamente o charme do gênero.

Mulher que não é estranha não é normal.

Fico lisonjeado, por exemplo, quando a mulher fica emburrada comigo.

Sou seguidor do feitiço da birra. É um transbordamento de sensualidade: a boca subitamente incha. Toda mulher emburrada é Angelina Jolie.

Os olhos se concentram, quase vesgos, absurdamente oblíquos, a ponto de faiscar. Não há olhar mais fatal do que aquele que vem do descontentamento. Ela deseja matá-lo. E sexo é a vontade de matar o outro – graças ao orgasmo perde-se a força antes de consumar o homicídio.

Mulher embirrada é insuportavelmente linda: uma grevista erótica, um líder sindical por melhores condições do amor.

Deveria se orgulhar como eu. Ela luta pela relação, guerreia pelo seu romance, arma passeata em nome de seus princípios.

A pele brilhará pela raiva, a cintura endurecerá de cólera: iluminada imediatamente pelo desaforo.

Horrível mesmo quando está distraída, desatenta, indiferente, não assim, há uma beleza sublime na respiração ofegante. Devota toda a sua atenção para desafiá-lo, para lhe provocar, para chamar atenção.

Tem a exclusividade dela uma vez na vida.

A birra é monopólio. Quando que terá essa disponibilidade novamente? Aproveite.

Ela é uma modelo-vivo, posando durante um dia inteiro para que aprenda a retratar suas sutilezas. O silêncio barulhento, a ironia atrevida, a contenção dos gestos: tudo é seu, para você.

É um espetáculo vê-la derrubar objetos, não falar nada, passar a toda hora com ares de ofendida, sair sem se despedir, bater forte a porta da casa, queimar pneu na saída da garagem e voltar em seguida porque esqueceu o celular.

É uma maravilha acompanhar a sua teimosia inteligente, não ser atendido ou ser vitima de um telefonema desligado na cara.

É uma tensão saborosa, porém com a certeza do final feliz. É apenas descobrir o momento certo para pedir desculpa e desfazer o mal-estar. Mas é um crime pedir desculpa rápido e extraviar a emoção da cena.

Mulher emburrada é uma carta de amor, envelopada para abrir aos poucos, com jeito, sem rasgar.

O beiço é excesso de paixão. O beiço feminino não é chatice, é uma oportunidade.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 30/09/2015

terça-feira, 29 de setembro de 2015

VOCÊ É VASSOURA OU RODO?


A vassoura e o rodo são figuras antagônicas em casa. Não têm igual temperamento.

Podemos distinguir as pessoas em dois grupos. Algumas varrem os problemas um pouco por vez; outras, unicamente limpam quando o piso está comprometido.

A vassoura é para quem cuida da sujeira um pouco por dia, o rodo é para quem deixa para socorrer o chão tarde demais.

A vassoura é filha do vento e do sol, o rodo é filho da água e da noite.

A vassoura é gentil, o rodo é abrupto.

A vassoura é casada com a pazinha, o rodo é solteiro.

A vassoura mima o tapete, o rodo esnoba o balde.

A vassoura sai para a rua e fala com os vizinhos, o rodo vive trancado e não gosta de conversa.

A vassoura solta os cabelos, o rodo esconde a calvície com o turbante.

A vassoura é supersticiosa, acredita em bruxas e simpatias, o rodo é ateu.

A vassoura procura mostrar o que está escondido debaixo do tapete em montinhos, o rodo joga tudo para o ralo.

A vassoura é véspera, o rodo é calamidade.

A vassoura é paz, o rodo é desespero.

A vassoura é controle, o rodo é descontrole.

A vassoura é chamada para qualquer hora, o rodo só é chamado em caso de alagamento.

A vassoura fica atrás da porta, o rodo apenas é visto em banheiros sem cortina.

A vassoura enfrenta degraus, o rodo aproveita declives e lombas.

A vassoura dança, o rodo não mexe o quadril.

A vassoura se molda ao mundo, o rodo é quadrado.

A vassoura se espalha, o rodo se isola.

A vassoura faz amizade com as folhas, o rodo manda embora.

A vassoura trabalha em equipe com a lixeira, o rodo trabalha sozinho.

A vassoura passeia em manhãs e tardes de sol, o rodo pisa em poças.

A vassoura solta os braços, o rodo tensiona os braços. Com a vassoura, erguemos o queixo; com o rodo, baixamos a cabeça.

A vassoura tem esperança de reencontrar brincos perdidos, o rodo empurra o que acha para o esgoto.

A vassoura pode ser de palha e queima, como toda paixão, o rodo tem borracha e não se mistura, como toda tristeza.

A vassoura se doa mais do que o rodo. O rodo reclama mais do que a vassoura.

A vassoura canta, o rodo grita.

A vassoura pede licença, o rodo é mal-educado.

A vassoura é feliz, o rodo é rabugento.

Apesar do mesmo corpo, as cabeças são totalmente diferentes.







Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  29/09/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18309

TANQUINHO

Arte de Robert Delaunay

Aparência é tudo. O homem não precisa de dieta, muito menos mudar seus hábitos para parecer mais magro. São pequenas atitudes que afinam rapidamente a sua imagem:

Tirar selfie tomando chimarrão. Ao sugar a bomba, as bochechas estarão esticadas.

Colocar sua mulher na frente em outras fotos. Aparecer abraçando sua patroa por trás, com o rosto no ombro dela.

Fazer a barba ou cortar o cabelo. Ambas as atitudes diminuem o volume e garantem a impressão de menos quilinhos.

Andar ao lado de amigos com mais de 100 quilos. Todo pançudinho depende da companhia de um rei Momo.

Usar bombacha. Cria uma confusão visual. Não é fácil definir o que é vento dentro do pano ou o que é gordura. Não existe tradicionalista gordo.

Preparar o PF oculto. Forrar o prato com verduras. Por baixo, estarão as fritas, o ovos e o bife.

Jamais se agachar e mostrar o cofrinho.

Ouça meu comentário na manhã desta terça-feira (29/9), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

FALSA ESPERANÇA

Arte de René Magritte 

Existe a questão metafísica se a mulher deve ou não transar no primeiro encontro ou se ela deve fazer tudo na primeira noite ou se guardar para as próximas saídas.

Ao homem, não resta alternativa. Ele não tem nada para economizar, nada para esconder, nada a deixar para depois, nenhuma arma secreta, nenhuma carta na manga, nenhum segredo de alcova, coisíssima alguma para prolongar o mistério e dilatar o suspense.

Ele sempre será exatamente o que foi na estreia.

Oferecerá serviço completo de cara. Há uma honestidade inadiável de sua parte.

Não tem direito ao pudor. Não tem condições de planejar estratégias e se preservar para mais adiante.

Não há níveis em seu joguinho.

O sexo não melhora com o tempo. A transa masculina não se aperfeiçoa com a intimidade.

Não mantenha esperança alguma da mudança do quadro. Se o sexo foi ruim de saída, continuará ruim no decorrer da relação.

Homem é regularidade. Homem é constância. Homem é um livro com a história escancarada na capa.

Ouça meu comentário na Rádio Itapema na tarde dessa segunda (28/9), às 13h, apresentação de Denise Cruz: 

domingo, 27 de setembro de 2015

A ALEGRIA VESTE A TRISTEZA


Tenho uma predileção por uma frase de Federico Fellini: para a sombra existir, o sol deve estar a pique na cabeça.

Sem a luz, o escuro não se forma. Sem o escuro, a luz não tem sentido.

O mesmo acontece com a alegria.

Dentro da alegria mais genuína, mais intensa, mora a sombra da tristeza. A tristeza só existe em função da alegria. É o medo de perder a felicidade que faz com que você se esforce para mantê-la.

Não há alegria inteira, nem tristeza pura, uma depende da outra. Podemos transpirar euforia, mas sobreviverá uma pontinha de melancolia lá no fundo de nosso riso. Porque mantemos a consciência de que a alegria, por mais duradoura que seja, vai passar. Que ela logo se transformará em nostalgia, e que não estaremos mais plenos como daquele jeito de novo – e isso não é ruim e nem é bom, é inevitável da experiência. A tristeza dentro da alegria nos permite pensar e entender o quanto aquele momento é importante e que precisamos aproveitá-lo enquanto dura.

A alegria é esta vontade de ser para sempre que termina. A tristeza vem nos consolar a aceitar que o fim de uma lembrança não significa o fim de nossa vida.

De igual forma, dentro da tristeza mais severa, da depressão mais aguda, é possível notar a presença de uma alegria discreta, retraída, tímida. Tudo pode soar péssimo, mas um abraço, um quindim, um filme, o telefonema insistente de um amigo é capaz de nos devolver a vontade de dar a volta por cima. A simplicidade é terapêutica, a banalidade nos cura dos grandes males da solidão. Haverá sempre o sol por detrás das nuvens escuras dos pensamentos suicidas. Na sombra mais espessa de nosso temperamento, coexistem os raios solares minúsculos do contentamento, das dádivas da rotina e dos pequenos prazeres. Estaremos desolados com o tempo fechado e chuvoso do rosto, não enxergando nenhuma saída, mas a alegria se conservará perto e nos mostrará que a tristeza também passará, que é uma fase e um ciclo para absorver separações, desentendimentos e traumas. A lágrima brilhará como uma vidraça limpa e iluminada.

Se a tristeza é saudade dentro da alegria, a alegria é esperança dentro da tristeza. Nenhum sentimento é definitivo e completo.

A luz veste a sombra, a sombra veste a luz. A alegria costura a tristeza, a tristeza costura a alegria. Alfaiates que se revezam no longo pano dos dias.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.72
Porto Alegre (RS),  27/09/2015 Edição N°18307

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O CANSAÇO MASCULINO É AFRODISÍACO

Arte de Otto Mueller

Não se arrisque a dizer que está cansado para a sua mulher de noite. Ela pode estar também demolida que testará o nosso fôlego. Inventará de fazer tudo de repente: sair para festa, assistir dez episódios de um seriado, conversar sobre a infância, encontrar amigos do casal, jantar degustação com cinco pratos em sequência, romancear até de madrugada.

Não sei o que acontece: mas o cansaço do homem dá um baita tesão na mulher. Ela fica extremamente excitada, alegre, feliz, disposta.

O efeito da palavra é como um energético.

Mulher enlouquece quando vê que seu homem está cansado.

Não entendo se ela pensa que estamos mentindo ou aprontando. Ou quer aproveitar que não ofereceremos resistência para abusar com vontade. Ou cisma em descobrir se ainda a amamos e deseja uma grande prova de nossa paixão. Ou todas as alternativas.

Certo é que não dormirá cedo. Cheia de ternura teimosa, ela vai criar um Porto Alegre em Cena em casa, um Festival de Cinema de Gramado em casa, uma programação infinita, uma gincana de eventos.

Mas não existe igualdade na regra. Não busque fazer o mesmo quando a mulher diz que está cansada porque realmente estará cansada. Apenas ofereça uma massagem nos pés. Ela não aceitará nenhuma provocação.

Ouça meu comentário na manhã desta sexta-feira (25/09), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

O CAMINHO DA SANTIDADE

Arte de Eduardo Nasi

Não escute com os dois ouvidos o que uma mãe diz.

Eu realizava esta operação perigosa quando criança

Não obtive os melhores resultados.

A mãe sempre contava histórias dos santos antes de dormir.

A que eu mais me intrigava era a conversão de Francisco de Assis: quando ele entregou suas roupas ao pai Pietro Bernardone em praça pública, absolutamente nu, afirmando que não devia mais nada para ele e se oferecendo em absoluto a Deus e assumindo uma nova identidade (no ato, mudou o nome de Giovanni para Francisco).

Aquilo me marcou tanto que procurei imitá-lo.

Num domingo de Gre-Nal, com a família reunida na frente da televisão, aguardando a possibilidade do clássico ser transmitido ao vivo pelo canal 12, instantes antes da decisão do Campeonato Gaúcho de 1979, tirei os os meus trajes e me dirigi para a sala onde estava a família reunida (incluindo primos e tios).

Pelado, somente de botas (na minha visão, dependia das botas ortopédicas para chegar ao paraíso), entreguei a camiseta, a calça, a cueca e as meias ao pai. A sala parou para me ouvir. Foi um minuto de tenso silêncio, homenageando a minha morte social.

- Toma, sou filho de Deus!

O pai não compreendeu absolutamente coisa alguma. O que significava seu filho de seis anos em pelo na frente de todos repassando suas roupas?

- Estão sujas?, ele ensaiou diminuir o drama.

- Não, pai, suja está a minha alma. Toma, entrego os meus pertences e o meu sobrenome.

- O quê? Tá maluco. O jogo vai começar? Bota um agasalho, guri!

- Não me interesso por futebol, só em ajudar as pessoas.

- Está possuído pelo demônio! É o que faltava ter que chamar um exorcista…

Ele me pegou pelo braço e me trancou no quarto para refletir sobre o meu descomportamento. Ficaria de castigo até pedir desculpa. Eu juro que não absorvi a confusão dos acontecimentos. O que deu errado? Como que ele avisava que estava possuído pelo demônio se estava me santificando naquele instante?

Fracassei como cover de Francisco de Assis.

Ninguém jamais aceitou a minha atitude na família, ainda acham que sou um exibicionista desde pequeno, não entenderam o fundo de minha angústia, o tamanho de minha renúncia, de que eu seguia o caminho irreversível da santidade.








Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 23/09/2015

terça-feira, 22 de setembro de 2015

COMO UMA NOTA DE TRÊS REAIS



Elogio, quando sempre, vira bajulação. Ternura, quando excedida, vira cinismo. Concordância, quando constante, vira sarcasmo. Aceitação, quando submissa, é indiferença.

Amizade é medida (já o amor é perder a medida).

Percebo quem é falso pela ânsia de agradar a qualquer custo. É um torturador pelo afago. Alegria se transforma em histeria; a espontaneidade, em afetação.

Não é um contato natural, mas uma negociação: a impressão é de que o outro, que não para de me reverenciar, está vendendo algo que não sei, algo que não estou vendo. É muita simpatia para nada. É muita camaradagem gratuita. É esnobar com uma nota de R$ 3.

Mantenho um pé atrás com quem é abusivamente açucarado. Evito quem é dado ao léu, antes mesmo de estabelecer intimidade. Gritinhos no “oi” apressam o meu adeus. Diminutivos esgotam a minha paciência.

Quem se aproxima querido demais falará mal de mim pelas costas. A traição está insinuada na atração artificial.

Não tenho dúvida. Acúmulo de gentileza é véspera de maldade, de oportunismo, próprio daquele que pretende enganar. Desconfio de quem chega com mimimi, só exaltando as minhas virtudes, concordando com os meus comentários. É característica de personalidade maquiavélica, porque me faz relaxar, confessar as dificuldades e abrir a guarda para tirar vantagem.

Não levo a sério quem carrega nos adjetivos, superfatura nas exclamações, endeusa nos cumprimentos. Amigo que se gosta vive se provocando. O que adula é um inimigo disfarçado.

Hipocrisia vem do exagero do perfume. O tipo busca dissimular a carência de banho com borrifadas, procura abafar a maldade e a inveja com o comportamento contrário.

Temo mais a chuva de confetes do que os relâmpagos e dilúvios.

A afetação me põe ressabiado. Não aturo a fala dublada – a impressão é de que falta a opção do áudio original. Parece que a voz vem de um ventríloquo. Parece uma tia chata interpretando as vontades de um bebê.

A pessoa se comunica miando, ganindo, arrastando as vogais. Força empatia, ri sem nenhuma piada, é solene sem necessidade.

Gente falsa é o mesmo que conversar com alguém fingindo o orgasmo em todo momento. Não tem como acreditar que algum dia será para valer.

Autenticidade implica alternância e até um certo mau-humor. Prefiro o ferrão ao mel.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  22/09/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18302

ATRAENTE COMPLEXIDADE

Arte de Gino Severini

É preciso gostar muito de mulher para casar. Mas muito e muito.

Se gosta um pouquinho, nem tenta. Procure outra orientação sexual.

A mulher é complexa e fascinante.

Não é para iniciantes e amadores. Não é para diletantes e aventureiros.

Mulher investiga qualquer passo. Tudo gera reflexão.

Haverá decisões para toda a vida toda a noite. Sem folga.

Se não curte conversar ou opinar, não sobreviverá um semestre dentro de casa.

Ouvir apenas não basta, pois se permanecer calado o tempo inteiro ela achará que está aborrecido. E começará uma nova discussão sobre a natureza de seu silêncio.

Mulher pensa em voz alta, assim que se organiza.

Ela não é estável, ninguém que é intenso é estável. Sempre existirá uma dificuldade para resolver e perturbar o sono.

Ela pode estar brigada com a mãe e ou com alguma amiga ou criticando o pai e será o único assunto durante meses.

Não é fácil. Precisa gostar muito do negócio. Só quem curte encontra paciência.

Quer ver como não é fácil?

Não adianta amar o corpo de sua mulher se ela não está amando o próprio corpo.

Mesmo as mais lindas jamais estarão satisfeitas. Então, não é uma fase, não é um dia ruim, ela complicará com o peso ou a beleza uma vez por mês no mínimo.

Você poderá elogiar, dizer que ela está gostosa, que sente grande desejo, que se orgulha e não mudará uma vírgula do desânimo feminino.

O homem nunca será melhor do que o espelho.

Não procure censurar, oferecer conselhos e, principalmente, entender o que está acontecendo.

Mulher quando não ama o próprio corpo é o momento em que mais compra roupa. Busca ampliar suas opções.

Não tem como explicar racionalmente. Desista. Mulher é puro sentimento.

Ouça meu comentário na manhã desta terça-feira (22/09), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

domingo, 20 de setembro de 2015

PERDI 1 MILHÃO DE REAIS



Não festejei o meu primeiro milhão porque fumei o meu primeiro milhão.

Eu me dei conta de que se juntasse as minhas baforadas com as tragadas do cantor Renato Godá, amigo de vício e de faixa etária, já teríamos posto fora R$ 1 milhão. Nesta brincadeira existencialista e maldita, torramos um patrimônio difícil de obter. Participamos de um Big Brother às avessas: em vez de ganhar, gastamos a recompensa máxima do reality show.

Cada um fumou duas carteiras por dia durante 26 anos, o que resultaria em R$ 284.700. Se esse valor tivesse sido investido há três décadas em uma aplicação que rendesse 1% ao mês, sem considerar inflação e troca de moeda, o montante atualizado com juros seria de R$ 1.170.117.

Foram quarenta cigarros do amanhecer até o anoitecer desde os 17 anos. Apaguei no cinzeiro mais de 380 mil filtros. Encheria uma piscina olímpica com as minhas bitucas.

O resultado é assustador. Nenhuma morte seria tão cara. Fui um perdulário invisível. Não percebi o investimento porque identificava como um mero troco. Quem adquire cigarro não anota sua compra, e tampouco registra como gasto. Só que empenhei uma parcela fixa diária e interminável de quinze reais. Somadas ao longo de minha história, formam uma bagatela que paralisa os mais incrédulos, digna de prêmio dividido da Mega Sena.

Com tudo o que fumamos, poderíamos abrir uma grande empresa com forte capital de giro. Ou comprar à vista uma cobertura de 300 m2 no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre. Ou levar cinco carros Santa Fé zero quilômetro para as nossas garagens. Acabaríamos ricos, com uma poupança redentora, não precisaríamos nos preocupar com a crise e muito menos em trabalhar duro todo o mês. Mas cedemos a nossa fortuna imaginária e os nossos pulmões reais para a indústria tabagista.

Não transformamos o nosso suor em sorte, em previdência, em títulos de capitalização, em economias para a universidade dos filhos, ele simplesmente virou fumaça.

Qualquer um é considerado maluco ao queimar dinheiro. Eu e o meu comparsa músico queimamos 1 milhão de reais com a boca.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.36
Porto Alegre (RS),  20/09/2015 Edição N°18300

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

DE QUALQUER JEITO

Arte de Fortunato Depero

Estranhei que a minha mulher estava rindo das minhas piadas. Ela tem um humor diferente do meu.

Estranhei que eu e a minha mulher não discutíamos por qualquer coisa, por qualquer palavra, era uma paz sem tamanho.

Estranhei que um ouvia o outro sem interromper com novas cobranças.

Estranhei que ela aceitava minha irreverência, meus escândalos, meus dramas, minha ansiedade, minha mania de falar as novidades a cada quinze minutos.

Estranhei muito, tive que perguntar:

- O que aconteceu que o meu temperamento não vem mais lhe irritando?

Então, ela me deu a maior declaração de amor que já recebi na vida:

- Antes eu lhe queria do meu jeito, agora eu lhe quero de qualquer jeito.

Ouça meu comentário na manhã dessa sexta-feira (18/9), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

BRAÇO DIREITO

Arte de Eduardo Nasi

Meu pai estava desesperado.

Sua mulher Elza, companheira de três décadas, enfrentou complicações na coluna, problemas sérios na bacia. O andar travou e apresentava fragilidade até para falar.

Vocês não conhecem o meu pai como eu: ele é um gurizão de 76 anos. Uma criança grande. Tudo o que ele faz mostra para sua esposa.

É dependente. Amorosamente dependente.

Ela carrega a casa: controla o mercado, prepara a comida, cuida das roupas e dos eventos, orienta os mínimos detalhes da rotina.

Quando ele esquece um autor ou um amigo, ela vem preencher as reticências do esquecimento. Casal quando se ama vive fazendo palavras cruzadas em qualquer conversa.

Sem ela, o pai desmorona. Não existe. Desaparece. Não saberá ligar o fogão. Ficará confuso entre os controles do ar-condicionado, da televisão e da net.

Ele cedeu para a sua mulher o domínio do mundo. Não foi uma submissão, mas confiança.

Jamais o vi confiar tanto em alguém como em Elza. Tanto que a chama de Elza dos pássaros. É sua migração, é seu voo, é seu ninho.

Em seus livros, todos os seus livros, há sempre um poema ou uma referência a ela. Vive criando dedicatórias para compensar a dedicação.

Tomam café juntos, leem jornal juntos, almoçam juntos, sesteiam juntos, passeiam juntos, jantam juntos, assistem novela juntos. São parceiros, cúmplices, confidentes, melhores amigos, amantes.

Não se largam. O pai tem uma cadeira vaga para a Elza em seus olhos verdes. Cadeira de praia. Já seus cílios são o guarda-sol.

Na íris paterna, no fundo mesmo, sua esposa está lá cantando chansons d’amour rivalizando as ondas do mar.

Quando Elza adoeceu, ele enlouqueceu de aflição.

Para complicar, ao mesmo tempo, ficou com uma dor tremenda no seu braço direito, que usa para escrever.

Não tinha como anotar uma frase que doía (meu pai redige primeiro à mão em seus caderninhos e somente depois passa a limpo no computador).

Por mais que tentasse, a letra não se levantava da cama das linhas. O pulso ardia, fisgava, não permitia movimentos mais longos entre os dedos.

A caneta não obedecia ao raciocínio, logo escorregava para o gemido.

A inspiração havia sido levada pelo mau humor do osso e indisposição dos nervos.

Mas ele nem se deu conta de que sua lesão foi uma coincidência clarividente.  Seu braço parou porque Elza é seu verdadeiro braço direito.








Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 16/09/2015

terça-feira, 15 de setembro de 2015

O ORGULHO DE SER GAÚCHO



Nunca vi tanta gente do bem dizer que pretende sair do Rio Grande do Sul e morar em outro Estado. Experimentamos uma semana farroupilha ao contrário.

E não são desertores, são sofredores, são desesperados, que não aguentam 40 homicídios num final de semana, não aguentam a soltura de bandidos assim que são presos por falta de condições nos presídios, não aguentam comerciantes morrendo com bala perdida quando vão levar seu cachorro para passear de noite, não aguentam óbitos violentos de adolescentes por motivo banal, em nome de um celular ou de um tênis, não aguentam brigadianos e policiais circulando em subcondições, sem um vencimento que honre a insalubridade da profissão, cansaram da esperança, não aguentam o abandono das ruas e dos parques, não aguentam os buracos das estradas, não aguentam a ansiedade e o nervosismo quando os filhos demoram a retornar ao lar, não aguentam as más notícias nas patas dos quero-queros.

Nossa alma pilchada está cada vez mais pichada de frases de protesto.

Nossas tragédias são modelos para toda terra.

O orgulho de ser gaúcho foi ferido. Falar o que de bom daqui? Como exaltar o turismo se não há como sair em segurança de casa?

Antes, os professores faziam greve para aumentar os seus pequenos salários, hoje estão fazendo greve para manter os seus pequenos salários. Os tempos se agravaram. Manter o emprego é a única promoção que existe. O governo não poderia ter parcelado o salário do funcionalismo, ainda mais num Estado absolutamente familiar, absolutamente centrado na proteção familiar. Ele não constrangeu categorias profissionais, deixou de ser uma negociação com sindicatos, feriu a todos, baqueou o coração da família gaúcha.

Os servidores precisam mendigar o que merecem por direito para sustentar as suas crianças. Obrigações desandaram em reivindicações. Não houve mobilização civil e popular que preparasse o ambiente para uma crise, e sim decretos, em que benefícios foram suprimidos de repente. O funcionalismo virou uma horda de indigentes assalariados, voluntários forçados a seguir sem nenhuma palavra de afeto, condenados a tomar um veneno amargo diante da inexistência de bula. Trabalhar para quê? Como trabalhar sabendo que aquilo que está ruim tende a ficar pior? Ter ou não ter emprego não garante mais nada no final do mês. Estamos à mercê da roleta-russa da arrecadação.

Pois receber o valor do contracheque um mês depois, em parcelas a conta-gotas, apenas cria juros, empurra empréstimos goela abaixo e termina por criar um pânico financeiro.

Óbvio que haverá redução drástica do consumo, e aumento do endividamento. O salário atrasado não mais cobrirá despesas, e sim dívidas. Como alguém conseguirá atender as demandas fixas domésticas, irredutíveis, implacáveis com R$ 600?

O próprio governador dá o exemplo negativo: já que ele mesmo não paga as suas despesas e contraria as suas obrigações com a União.

Sirenes, apitos, buzinas, greves, protestos, passeatas e trânsito interrompido... Nem mais escutamos os sinos das igrejas avisando do meio-dia e da hora do almoço.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  15/09/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18295

A IMPORTÂNCIA DE UMA CARTA

Arte de Karl Brullov

Há gente que nunca recebeu uma carta - acho uma pena. É lindo. É um suspense. Carta está lacrada, precisa abrir sem rasgar o conteúdo, traz aquela sensação do destinatário ser especial, exclusivo de alguém. Como não tem assunto como o e-mail, reforça a curiosidade e a nossa importância de fazer segredo.

Além disso, a carta é quando dedicamos o nosso tempo a alguém. Não há maior declaração de amor do que perder tempo para uma pessoa. É escrever várias vezes até não errar mais, jogar rascunhos fora, definir a melhor frase, caprichar na letra, comprar envelope, ir no correio, selar a correspondência, procurar o CEP.

Tenho pena de quem nunca mandou uma carta. Não viveu aquela ansiedade feliz de esperar para descobrir se a pessoa gostou daquilo que foi escrito. Este intervalo é fundamental para imaginar o outro, sonhar com o outro, amar o outro.

Ouça meu comentário na manhã desta terça-feira (15/9), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina: 

CONSTATAÇÕES



Mulher desfruta de larga vantagem na argumentação. Encontra sinônimos para se defender e redirecionar as frases. Espanca o seu namorado com a gramática, esmurra a imobilidade verbal masculina com o dicionário.

Fala tanto que o seu par fica tonto e já não sabe exatamente o que discutiam. São voltas e voltas nas lembranças, reprises e resumos, que ele perde o caminho da conversa.

Mulher é ilusionista dos conceitos, mágica dos eufemismos. Diante do beco sem saída das palavras, termina voando. Enquanto o sujeito caminha, obediente às leis da gravidade, ela alça voo sobre o próprio discurso. Era proibido voar até aquele momento, de repente é permitido e ele que não aproveitou as asas da imaginação.

As regras da retórica mudam a toda hora, não adianta decorar. A lógica é emocional, a coerência é pessoal, não são contendas lineares.

DR para a mulher é equivalente à média harmônica do vestibular: as provas têm pesos diferentes e cálculo secreto.

Quando o homem aponta problemas, ela alega que não aguenta ser criticada. Provoca a maior choradeira, com o pretexto de que ele não para de cobrar e ver defeito em tudo.

A culpa enfraquece a virilidade. O escorpião pede desculpa e se transforma em caranguejo. O homem aprende que não deve reclamar e precisa buscar os pontos positivos do romance.

Mas é sofrer o mesmo que o mesmo não é o mesmo. A lição assimilada não vale mais.

Se ela desfia os erros da relação e o seu parceiro chama a atenção (porque faz o que diz para não fazer), a mulher acha um modo de alterar a natureza da crítica:

– Não é uma crítica, é uma constatação!

Ou seja, ele critica e ela constata, ainda que estejam abordando igual conteúdo. Ela pode destruir o seu parceiro a partir da desculpa que só vem falando a verdade.

Não resta alternativa. Assim como o sarcástico somente brinca, jamais fala sério, assim como o pessimista não puxa ninguém para baixo, é apenas um realista.

Quando for questionado, entenda que a mulher não está colocando o dedo em sua ferida, porém estancando o sangramento. Agradeça que dá menos trabalho.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.36
Porto Alegre (RS),  13/09/2015 Edição N°18293

VITIMIZAÇÃO

Arte de Gilles Tran

Já fui muito de reclamar da vida, de qualquer coisa que fugia do combinado.

Não aceitava imprevistos. Estragava algo em casa, reclamava. Ficava em fila, reclamava. Perdia alguma folga do trabalho, reclamava. Tinha virado o chato intolerante: ou é do meu jeito ou é nada.

Ocupava a maior parte do meu tempo contando o que dava errado em meu dia. Já não valorizava o que dava certo. Não sobrava espaço para falar das coisas boas.

Para ser feliz, é preciso se adaptar. Não é porque não aconteceu como desejávamos que não vale mais.

Em vez de reclamar, faça por si e pelo outro, faça por todos, faça diferente, mas faça.

Quem não se melhora piora o mundo.

Ouça meu comentário na manhã dessa sexta-feira (11/9), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antônio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

FRALDAS

Arte de Eduardo Nasi

Quem já não ouviu de alguém mais velho “eu lhe conheci de pequeno, troquei suas fraldas”?

Incomoda a forçação de intimidade, pois o enunciado vem grudado na carranca de quem não recorda sequer do nome. Talvez seja um amigo longínquo dos pais, um tio distante, uma prima de terceiro grau.

A feição é completamente estranha para um apelo íntimo. O susto traz um desconforto existencial, passa a ser tomado daquela reação básica de questionar a veracidade do encontro e verificar se ele não está se confundindo.

Só que não. O intruso trata de soletrar o sobrenome de sua família e descrever exatamente onde morava.

Você se vê recebendo de volta o chocalho de seus primeiros anos, o móbile de seu berço e não reconhece as provas como parte de sua identidade.

O desagradável “lembra de mim?” é uma piada perto do “eu lhe conheci de pequeno”.  O primeiro queima a roupa, o segundo queima a pele.

“Eu lhe conheci de pequeno” não tem escapatória; é uma ameaça, uma afirmação categórica, um mandato ancestral, não gera a esperança da dúvida e a hesitação educada. Não resta defesa plausível. A pergunta se enquadra como a mais chata abordagem familiar. Você não conserva nenhuma memória hábil desta época para se defender, será refém de qualquer coisa que seja dita, mentirosa ou verdadeira. Tampouco interessa a informação nada relevante de que ele já lhe viu querubim, peladinho, numa mesa de trocar.

Não existe jeito de ficar à vontade. Volta ao útero do tempo, ao gel no ventre materno, às ecografias fantasmagóricas. O outro se coloca numa posição superior, de supremacia etária, com a longevidade de um Matsulém, com a infalibilidade de um Raul Seixas que viveu há dez mil anos atrás.

Ele estacionou na vaga de idoso na conversa e não sairá dali tão cedo.

Há no cumprimento uma maldade óbvia: já sei de suas m., afinal troquei suas fraldas. Insinua um inconsciente maldito: você não conhece tudo de seu passado.

O pior é que a frase sempre vem com um risinho histérico, babado, que acentua a paranoia. Não entende o motivo da risada.

O meu ímpeto era responder:

- Está na hora de retribuir a gentileza e trocar as sua fraldas geriátricas.

Mas o humor fracassa, a timidez vence o duelo com a infância desconhecida e somente consigo dizer um vago e misterioso “Mesmo?”, e sou obrigado a nascer de novo e ouvir a história inteira.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 09/09/2015

PARENTE E FAMÍLIA



Sempre me emociono quando reparo o quanto filhos adotivos passam a se parecer com os seus responsáveis. Ninguém diz que foram adotados: o mesmo olhar, o mesmo andar, a mesma forma de soletrar a respiração. Há um DNA da ternura mais intenso do que o próprio DNA. Os traços mudam conforme o amor a uma voz ou de acordo com o aconchego de um abraço.

Não subestimo a força da convivência. Família é feita de presença mais do que de registro. Há pais ausentes que nunca serão pais, há padrastos atentos que sempre serão pais.

Não existem pai e mãe por decreto, representam conquistas sucessivas. Não existem pai e mãe vitalícios. A paternidade e a maternidade significam favoritismo, só que não se ganha uma partida por antecipação. É preciso jogar dia por dia, rodada por rodada. Já perdi os meus filhos por distração, já os reconquistei por insistência e esforço.

Família é uma coisa, ser parente é outra. Identifico uma diferença fundamental. Amigos podem ser mais irmãos do que os irmãos ou mais mães do que as mães.

Família vem de laços espirituais; parente se caracteriza por laços sanguíneos. As pessoas que mais amo no decorrer da minha existência formarão a minha família, mesmo que não tenham nada a ver com o meu sobrenome.

Família é chegada, não origem. Família se descobre na velhice, não no berço. Família é afinidade, não determinação biológica. Família é quem ficou ao lado nas dificuldades enquanto a maioria desapareceu. Família é uma turma de sobreviventes, de eleitos, que enfrentam o mundo em nossa trincheira e jamais mudam de lado.

Já parentes são fatalidades, um lance de sorte ou azar. Nascemos tão somente ao lado deles, que têm a chance natural de se tornarem família, mas nem todos aproveitam.

Árvore genealógica é o início do ciclo, jamais o seu apogeu. Importante também pousar, frequentar os galhos, cuidar das folhagens, abastecer as raízes: trabalho feito pelas aves genealógicas de nossas vidas, os nossos verdadeiros familiares e cúmplices de segredos e desafios.

Dividir o teto não garante proximidade, o que assegura a afeição é dividir o destino.








Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  08/09/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18288

TEM GENTE QUE AMA AMAR, MAS ODEIA SER AMADO

Arte de Sacha Moldovan

Ame por dois, mas nunca pelos dois.

De repente o outro não é frio ou indiferente, é você que não para de inventar presente e ele não tem nem tempo para responder.

O exagero estraga a espontaneidade.

Dê chance para sua companhia demonstrar amor: não ocupe todo o espaço do relacionamento para agradar.

Fique uns dias sem juras, sem mimos, sem flores, sem bilhetes.

Deixe o outro responder antes de fazer uma nova surpresa.

Quando o carinho é demais e toda hora, há o risco do presenteado se sentir endividado, péssimo, menos, sufocado, sem poder retribuir as delicadezas.

A receita é não querer ser melhor do que o outro, mas ser melhor para o outro.

Ouça o comentário na manhã desta sexta-feira (4/9), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antônio Carlos Macedo e Jocimar Farina:



UMA CASA NO CAMPO

Arte de Eduardo Nasi

Depois da liberdade sexual dos anos 60, estamos atingindo o tédio sexual. Nunca foi tão fácil transar. É um clique e temos à disposição em aplicativos pessoas interessadas e próximas.

Na web, há um acervo que poderia entreter os mais maníacos. Casas de swing são práticas corriqueiras. Nas baladas, é natural se envolver sem falar o nome. Hoje Édipo nunca saberia que estava se relacionando com sua mãe Jocasta.

Passará vergonha se não guarda chicote, venda, algemas e vibradores no criado-mundo. A privacidade é pública e ninguém mais se escandaliza com nada.

Perdeu a graça dizer expressões safadas no ouvido da mulher. Vadia, puta e cadela formam um repertório inofensivo. Não produz mais cócegas na imaginação. A imoralidade não desencadeia fantasias.

Somos meros animais satisfazendo as suas necessidades mais básicas. Não pensamos o sexo, renunciamos a elaboração de segredos e mistérios.

O que deve acontecer é uma volta ao conservadorismo. Logo mais nos comoveremos com as canelas e os cotovelos. Alimentaremos devaneios com a penugem loira dos braços, ou com a nuca arrepiada.

O que nos restará na cama é retornar ao romantismo, à poesia, às juras de vida a dois, ao cavalheirismo.

Como o erotismo representa a quebra do lugar-comum, a tendência é procurar o oposto dos nossos dias explícitos.

A atração estará residindo na intimidade. O respeito substituirá a falta de pudor.

“Com licença” e “por favor” servirão de preliminares.

Pornografia não seduzirá como antes. O que fará o outro gozar será a promessa de filhos.

- Me engravida!

O compromisso que assustava antes na cama poderá excitar. Verbalizar o desejo de uma casa no campo ou de uma velhice juntos apressará o prazer.

A monogamia dominará o discurso na cama.

- Você é só meu, não transarei com mais ninguém.

A brancura dos lençóis será o equivalente a de um altar.

- Me dê um filho!

E o homem não irá broxar. Pelo contrário, ele se enxergará eleito, exclusivo, único. A perspectiva de ser pai redobrará os seus movimentos.

Já vejo o apelo crescendo até o orgasmo:

- Me dê gêmeos!

- Me dê trigêmeos!

- Me dê quadrigêmeos!

E ambos soltarão gemidos ensandecidos e gritos sonhando com a residência cheia, de cercas brancas e jardim podado.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 02/09/2015

QUANDO A MULHER SE CALA E O HOMEM FALA POR ELA



Quando a mulher fala pelo casal, a relação vai bem. Quando o homem fala pelo casal, a relação vai mal.

Repare, é assustador: o silêncio da mulher é insatisfação; o do homem, contentamento. O silêncio da mulher é repressão; o do homem, aprovação. O silêncio da mulher é angústia; o do homem, recompensa.

Quando os dois estão entre amigos, se o homem não fala e escuta atentamente, está concordando. Se o homem é que fala e a mulher mergulha na mudez, é que está prestes a explodir de raiva.

Homem passivo e mulher dominante são sinais de bem-estar. Homem dominante e mulher passiva são agouros de briga.

A mulher é a porta-voz da felicidade da vida a dois – pois sempre arranca na frente para antecipar as novidades e projetos. Não se furta a dizer a sua versão dos acontecimentos. A loquacidade representa comprometimento e engajamento no relacionamento: discute, debate, intervém, não deixa por menos. Já o homem matraqueando é a versão da tragédia, busca disfarçar tudo o que vem acontecendo de errado e fazer com que todos não percebam a indisposição feminina.

Homem alegre é plateia. Aplaude, ri, meneia a cabeça enquanto testemunha a sua esposa descrever as principais histórias e causos do seu cotidiano. Não sente necessidade de se contrapor à narração, até se vangloria das legendas. Quando entra sozinho no palco, é que fará um monólogo fingido: no fundo, distrai os outros de sua diva contrariada.

Mulher jamais é espectadora, somente se cala em nome da fúria, ciúme ou ressentimento. Não consegue nem mais reclamar. Prende a língua, trinca os dentes, já que se vê numa situação-limite: engatilhada a disparar sarcasmo e ironia a troco de nada, capaz de devolver o mero cumprimento com uma pergunta. Mostra-se educada a ponto de ser lacônica, não quer mentir e se controla.

Não desejava participar daquele momento hipócrita: pretendia resolver tudo antes em casa para depois sair (não é como o homem, que sai para resolver o que não foi compreendido em casa). Sua leveza depende da segurança emocional.

Para ter vontade de se expressar é que se encontra possessa, engasgada, de olhar baixo. Desistiu da esperança do humor. Admite ser dublada porque a sua cabeça e – principalmente – o coração se escondem longe dali.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4,  01/09/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18279

JANTAR DE GRINGO

Arte de Johann Friedrich Overbeck

Uma das piores invenções sociais foi o jantar americano. Aquele em que cada um se serve e senta em qualquer lugar.

Meu joelho não é madeira: não tem como equilibrar os talheres, o copo, o prato, o guardanapo e ainda fingir que estou feliz. Quando sou obrigado a participar de jantar americano, tenho vontade de pedir o joelho emprestado de minha mulher. Sempre falta apoio.

Não há como ser educado em uma posição indígena.

Levo a comida a sério. É desconfortável fazer refeição pelos cantos, espremido num sofá, desmanchado num pufe, como um mendigo dentro de casa.

Preciso comer na mesa. Em outro lugar será lanche. Pode vir feijoada que será lanche. Pode vir mocotó que será lanche.

Só registro que almocei ou jantei sentado na mesa. Do contrário, passei fome.

Sou adepto do jantar de gringo. Café colonial, eternamente.

Ouça meu comentário na manhã desta terça-feira (1/9), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

AMIGA PARA SAIR



Homem pode sair sozinho para uma balada e não vai parecer um psicopata.

Pelo contrário, será visto como um caubói, corajoso, livre atirador.

Sempre haverá um balcão para sentar e se mostrar seguro, sempre haverá um barman para puxar conversa e se distrair enquanto o tempo passa. Não depende de matilha e bando para se sobressair. Usufrui de independência para correr riscos, sem a pecha do isolamento, sem a carga social do abandono, sem a obrigatoriedade de uma cumplicidade aos seus crimes amorosos.

Já há um preconceito contra as mulheres.

É ela estar sozinha num bar em alta noite que já recebe todas as suspeitas. É fotografada culturalmente mais do que terrorista lendo jornal em metrô.

Torna-se dependente de uma amiga. Toda mulher precisa de uma amiga solteira. É um item indispensável para alçar voos e mergulhar na boemia.

Não pode somente aceitar o encontro de um homem para uma festa, precisa convencer a amiga, o que não é uma operação simples, mas uma trabalheira.

A aposta de flerte acaba sendo um convite coletivo.

Para um encontro a dois, a mulher recorre a um plano diabólico, a uma operação militar, a um cavalo de Troia.

Tem que cavar atrativos para tirar a sua amiga de casa. No desespero, é capaz de se oferecer para custear o táxi e a consumação. Ou de buscar e levar de volta. Ou de emprestar uma roupa e, inclusive, pagar a manicure.

A ala masculina não faz ideia do esforço de agenda: telefonar sem parar para voluntárias. Pior do que marcar futebol numa segunda-feira chuvosa.

O “sim” para ver alguém logo vira um “e agora, quem vai comigo?”. Bate um terror, uma caça às bruxas, uma acalorada licitação no Facebook.

A mulher é obrigada a trabalhar e ainda achar uma fresta em seu rápido intervalo para efetuar ligações e mandar mensagens e descobrir quem está disponível para a camaradagem e explicar a aproximação com aquele candidato.

Largar a vida de solteira requer primeiro persuadir uma confidente, com nenhum motivo em especial para o programa. Pois o papel da acompanhante não deixa de ser vexatório. Cumprirá a sina de segurar a vela e desfrutar do timing para abandonar a cena de fininho quando pintar uma atmosfera romântica. Sofrerá o constrangimento de se preparar e se maquiar para nada, apenas para atender aos caprichos de uma amizade.

Há grandes riscos de desistir da roubada na última hora e duplicar o caos da interessada.

E o que era difícil – arrumar uma companhia – transforma-se em missão quase impossível – arrumar uma nova companhia em cima do laço.

Mulher sofre para seduzir. Não subestime o que ela enfrentou para estar com você frente a frente.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS),  30/08 /2015 Edição N°18279