Arte de Mark Rothko
Clarice Lispector beliscava sua amiga Lygia Fagundes Telles quando entravam juntas num encontro literário:
– Não ri, vai! Séria, cara de viúva.
– Por quê? – perguntava Lygia.
– Para que valorizem o nosso trabalho.
Não há mesmo imagem de alguma risada da escritora Clarice Lispector. Em livros e revistas, a cena que persiste é seu olhar desafiador, emoldurado por um rosto anguloso, compenetrado e enigmático. Os lábios não se mexem, absolutamente contraídos, envelopes fechados para a posteridade.
Lispector não mostrava suas obturações, sua arcada para ninguém. Não se permitia gargalhadas para não parecer mulher superficial e leviana.
Ela percebeu que existe um imenso preconceito contra a alegria. Os críticos não a levariam a sério, dizendo que ela não era densa, não inspirava profundidade; acabariam por sobrepor a aparência faceira aos questionamentos metafísicos de sua obra.
Seu medo não era bobo. O riso permanece perigoso. Todos temem os contentes. Falam mal dos contentes.
O riso gera inveja, ciúme, intriga: “Por que está feliz, e eu não?”.
A alegria é malvista em casa e no trabalho, sempre intrusa, sempre suspeita equivocada de uma ironia ou de um sentimento de superioridade.
Ainda acreditamos que profissionalismo é feição fechada, casmurra. Ainda deduzimos que competência é baixar a cabeça e não entregar nossas emoções.
Quanto mais triste, mais confiável. Quanto mais calado, mais concentrado. O que é um tremendo engano.
A criatividade chama a brincadeira, assim como a risada renova a disposição.
Se um funcionário ri no ambiente profissional, o chefe deduz que ele está vadiando, sem nada para fazer. Poderá receber reprimenda pública e o dobro de tarefas. Quem diz que ele não está somente satisfeito com os resultados?
Se sua companhia ri durante a transa, você conclui que está debochando do seu desempenho. Quem diz que não é o contrário, que ela não festeja o próprio prazer?
Se a criança ri no meio da aula, o professor compreende como provocação e pede para que cale a boca. Quem diz que ela não está comemorando algum aprendizado tardio?
Se o filho ri quando os pais descrevem dificuldades profissionais, a atitude é reduzida a um grave desrespeito. Quem diz que ele não achou graça do tom repetitivo das histórias?
Se a esposa ou marido ri e suspira à toa, já tememos infidelidade.
O riso é escravo dos costumes, sinônimo de futilidade e distração quando deveria ser visto como sinal de maturidade e envolvimento afetivo.
Não reagimos bem à felicidade do outro simplesmente porque ela ameaça nossa tristeza.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 17/04/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 1742
22 comentários:
Adorei o texto, é bem verdade cada linha, o riso é prejudicial ao outro. Coitados, não sabem o que estão perdendo...
Bjsss e até uma outra risada!
AFE MARIA DO CÉU! QUE MARAVILHA DE TEXTO!
Muito bom! O riso é sempre uma ameaça pra gente sisuda, mas acredito que seja mesmo é dor de cotovelo por quem sabe rir da vida e deixá-la mais leve...
Sei não. Acredito que estamos mais vivendo numa ditadura da felicidade que qualquer outra coisa. Pelo que vejo e vivo, quem não sorri é suspeito. Você não é bem-vindo num grupo de pessoas se não tem um sorriso a oferecer (ainda que possa dar, em troca, muitas outras coisas). De qualquer maneira, outro ótimo texto seu, agudo, desafiador, como de costume. E eu gosto do que me desafia.
A felicidade está extinta.
Fabrício,
Me identifiquei com o teu texto. As pessoas "perderam" o riso fácil dentro do seu coração e passaram a acreditar que ser adulto é ser sério. Abraços. Rosmaria
Rir é algo que pode salvar vidas, e momentos sobrecarregados de nossos dias
! ! !
Ai que lindo! Estava com saudades daqui, bjos!
Rindo para você e com você, bela lembrança da adorada Clarice. Recebeu as fotos? Beijo
Lindo!No entanto, é mesmo verdade que a pessoa bem disposta e alegre compromete a pseudo tristeza de muitos embezerrados!!! jacira
Um problema gerado. Sou amante do riso largo solto as tipicas gargalhadas em silencio sorrio até com os olhos. Um problema para os infelizes.
Para Clarice, o que ,talvez, justificasse sua postura, além froid,é o teórico dominique maingueneau, quando diz sobre ritos genéticos em discursos literários. são, as obras, um espelho do que os autores constroem de si. e, o riso, é do caralho.
Parabéns pelo texto, muuitoo sensível. Eu vi uma palestra sua em Ctba, e adorei. Quando você veio pra Maringá, que também veio o Affonso Romanno e a Alice Ruiz, eu não consegui ver |Fiquei sabendo que vocês vieram meses depois do acontecido. Uma lástima. Um abraço e sucesso.
Excelente texto! Realmente nunca vi um sorriso da Clarice, escritora por quem sou apaixonada.
Grata pela partilha!
muito bom, principalmente a última frase!
Agora eu quase chorei...pela primeira vez me dou conta o do pq de tantas perdas em minha vida...
Concordo com o Rafael, que comentou acima. Vivemos sim uma ditadura da felicidade. Ao menos aquela feita sobre medida pro outro ver e aprovar. Todo mundo hoje vive feliz, sorridente, como personagem de um comercial de margarina. Basta um passeio pelo facebbok para confirmar. O triste, esse sim,'e visto sempre como aquele a ser banido do cenario cor de rosa. Na verdade o que predomina e a artificialidade do sentimento.
Muito bom teu texto, as pessoas alegres perdem grandes oportunidades,sou do tipo alegre, algumas coisas só passam ao meu lado, não chegam, como que se você não prescisasse delas chegam justo nas pessoas mais tristes e menos criativas.
Simplesmente um dos textos mais maravilhosos que li nos últimos dias!
Um enorme beijo pra vc1
Você não me conhece, mas escreveu sobre mim. Essa sou eu, livre pra ser feliz.
Você não me conhece, mas escreveu sobre mim. Essa sou eu, livre pra ser feliz.
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