Arte de Duchamp
Não faça como eu, que chamou a seguradora, e não se pôs em ação.
Não faça como eu, que já decepcionou a co-piloto ao lado.
Ela aguardava o Hércules de graxa dentro de mim, um Sansão suado de minhas clavículas.
Estava ansiosa pelo mecânico que se escondia por detrás do poeta, curiosa pelo macacão jeans debaixo do terno.
Não deixe que um terceiro diga que o pneu furou, repare que o carro está manco enquanto dirige, mostre que conhece o equilíbrio de seu automóvel tal extensão de seu corpo.
Não permita que esta chance de masculinidade se evapore com a preguiça.
Ao constatar que o pneu murchou, desça do carro e chute a roda. No meio da calota, para fazer barulho de cuíca. Solte desaforos, critique a injustiça.
Pode babar, cuspir, xingar o prefeito e os buracos.
Cai bem o acesso de raiva diante da plateia feminina.
Descubra o motivo do infortúnio. Se localizar um prego, não trate com a insensibilidade de uma agulha na almofada de costura, exagere que é do tamanho de um arpão. Não subestime a cratera com delicadezas, não aja com melindres, não alise os frisos.
É o momento de ser truculento, passional, tosco.
Não tente contornar o problema técnico com cantadas e declarações açucaradas.
Naquela hora, sua companhia não quer um Wando, não aplaudirá um Sidney Magal.
O palco da conversa é outro. Sem requebros. Sem palavras inteiras e rimas. Explore urros e resmungos. Não é para entender o que está falando mesmo.
É ação, aventura, adrenalina. Não explique seus passos. Mantenha o mistério.
Sua companhia procura o homem primitivo. Alguém que ofereça proteção e conforto, resolva as crises e enfrente a vida quando enguiça.
Ela espera sua destreza no instante de levantar o assoalho do bagageiro, que não pergunte onde fica a estepe, a maior humilhação na reposição de peças. Espera que pegue a chave e o macaco com rapidez. Que não peça ajuda de ninguém e, principalmente, que não reze. Espera uma longa imundície avessa a qualquer compaixão, que tenha os cotovelos e os joelhos besuntados e não se importe em como retirar as manchas. Espera que demonstre sincera aptidão ao girar a manivela e alçar o veículo dois degraus acima. Espera o exame da Ordem dos Machões do Brasil (OMB), o gabarito, o despojamento para desenroscar os parafusos gigantes. Espera o trabalho completo, que se agache com brilho e virilidade, não de quatro, não expondo o cofrinho, não de qualquer jeito.
Capriche, mas não demore. Pois sua mulher permanecerá atenta ao tempo da troca enquanto simula conferir o estado do esmalte de suas unhas. Ligará o cronômetro, é o Pit stop do casamento.
Ao final da operação, diga que foi fácil e simples, esfregue as mãos com desleixo e busque abraçá-la.
O troféu da cena é o empurrão de seu amor, reclamando que assim vai sujá-la.
Você será respeitado dali por diante.
Respeitado – pelo menos – dentro do carro.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 27/04/2014 Edição N° 17776
3 comentários:
Showwwww Fabricio! Vc é demais! Sou seu fã. Abraços, Luiz Paulo Araújo - SSA/BA
pretty nice blog, following :)
Olá Fabrício, VC nos traz o conforto para que não nos sintamos sós. . . . Os trogloditas estão em extinção. . .
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