sexta-feira, 11 de novembro de 2016

CABIDE PARA DOIS



Texto Fabrício Carpinejar
Foto Gilberto Perin

Os objetos mais banais revelam a grandeza da fidelidade: quando você passa a ser guardião de algo do outro e precisa cuidá-lo das permanentes tentações do extravio.
Lembrar de trazer de volta um pertence que não é seu significa uma autêntica demonstração de amor.
Pois é fácil esquecer um guarda-chuva quando para de chover. É fácil esquecer um blusão quando esquenta. E ainda é mais fácil quando você não é o dono.

Minha mulher pediu que recuperasse o seu casaco de couro que ficou no espaldar da cadeira do restaurante que costumamos almoçar.
Só que eu estava em trânsito - ainda viajaria a longínqua Petrolina (PE) para talk show, sem nenhuma mala para guardá-lo. Eu me encontrava realmente avulso, com a roupa do corpo, destinado a um aloprado bate-volta.

Não têm ideia de como foi complicado me lembrar de que ele existia. Ainda mais que Petrolina é um calorão e não faz nenhum sentido andar com um casaco.
Quase deixei no bagageiro do avião - voltei quando já me encontrava na porta da saída. Quase deixei no carro do evento - estiquei a mão no banco de trás na última hora. Quase esqueci no armário do hotel - afinal, não tinha bagagem, como iria me recordar?

De quase em quase, fui me afeiçoando ao objeto, comemorando cada resgate, embalando entre os braços o embrulho como um bebê adotivo.
Não era mais uma peça feminina, mas a minha responsabilidade com o relacionamento, o meu compromisso com a palavra, o meu pacto em proteger um pertence predileto daquela que dividia a vida comigo.

Estar casado é combater diariamente o egoísmo da vida solteira. E também não se importar mais com o que os demais pensam a nosso respeito.
A minha esposa deve ter sentido o mesmo quando preparei uma surpresa em seu trabalho e lhe entreguei um balão a gás de ursinho. Ela não podia abandoná-lo sob o risco da ingratidão.
Além da vergonha que engoliu a seco diante dos colegas engravatados, ela circulou com a cordinha vermelha pelo escritório de sua empresa, entrou no táxi com a alegoria, e atravessou as ruas de Porto Alegre equilibrando a bolsa no lado esquerdo e o balão no direito.

Quando ela chegou em casa empinando o meu presente como um menina adestra os ventos de uma tempestade no corpo de uma pipa, não nego o céu limpo de meus olhos: ela realmente me valorizava mais do que o seu receio do vexame. Jamais o medo seria maior do que o nosso amor.
A covardia se esconde nos fingidos esquecimentos. A mentira nasce dos pequenos lapsos. Lembrar de si e de quem nos acompanha é sempre uma manifestação corajosa de honestidade.

Coluna Semanal
Publicado no Jornal O Globo
11.11.2016

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