quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

CASA PARALELA

Sempre estamos mobiliando uma casa paralela e imaginária com os objetos perdidos. A casa perfeita tem tudo o que a gente extraviou e não achou mais na vida. É a morada de nossas preces, concebida pela Salve Rainha e São Longuinho. Daremos pulinhos ao entrar em seu umbral.

Lá nunca faltará guarda-chuva e carregador de celular – terei um estoque para combater trovoadas e o fim repentino da bateria. Os livros que jamais localizei estarão alinhados nas estantes, por ordem alfabética. Os LPs foragidos se mostrarão intactos, de pé, ao lado do dois em um, com os plásticos de dentro nem um pouco amassados. Assim como irei me surpreender com a montanha de fitas cassete com as trilhas românticas que preparava de madrugada gravando programas na rádio (em que cortava a voz do locutor e os comerciais). Será um encanto rever as camisetas e calças desaparecidas nos cabides, que deixei em casas de colegas da escola. Não controlarei a gargalhada diante das meias avulsas, solteiras, amontoadas em cima da cama, de sumiço misterioso entre a cesta e a máquina de lavar. Na prateleira da cozinha, reencontrarei as tinhosas e malandras tampas da panela, prisioneiras de algum ralo misterioso ou Triângulo das Bermudas gastronômico – tantas e diversas que posso cobrir a extensão de meu telhado. Relógios e óculos reluzirão na gaveta do criado-mudo, com os estojos de veludo empilhados. Devo reaver a coleção de pulsas coloridas do relógio Champion da adolescência. Na escrivaninha do escritório, alinhado ao meu chamado de general, revistarei a tropa de canetas Bic, com os seus capacetes azuis. Centenas delas. Todas as canetas emprestadas ao longo dos anos.

Espanto sem igual experimentarei no quarto com o armário atolado dos brinquedos da infância, que a minha mãe deu um jeito de passar adiante. Consumirei dias montando o Ferrorama e o Autorama e reclamando da falta de espaço para concluir as tarefas. Demorarei a acertar a pontaria do Batalha Naval ou para conferir o dinheiro de mentirinha do Banco Imobiliário. Não duvido que chore ao esticar o ioiô da Coca-Cola e tentar repetir a façanha da montanha-russa com as cordas. Farei festa ao folhear os alguns de figurinhas das Copas do Mundo de 78, 82 e 86. Antes de dormir, colocarei a bolita verde perto dos olhos, como uma córnea doada pelos amigos.

É sumir algo em minha rotina que logo reaparece na residência de outra dimensão.

Um pouquinho de mim também vai junto com a saudade.

Publicado em Vida Breve em 04/10/2017