Há quatro décadas, o médico Irineo Mariotto, que visita até 30 famílias por mês, costuma tirar o chapéu à porta da casa de seus pacientes. Fotos de Jean Scharwz
Na minha infância porto-alegrense, sofria crises fortíssimas de asma, que sempre me obrigavam a retornar ao consultório do pediatra. Cansado de acompanhar o vaivém, Sérgio Pilla Grossi decidiu:
– Vamos até sua casa.
Mesmo? Nunca havia recebido um médico. E ainda a caráter: de jaleco, estetoscópio e maleta preta. Ele tomou chimarrão na cozinha, brincou com os manos, pediu que mostrasse o quarto, até que apontou para as cortinas pesadas e recomendou à mãe:
– Põe para lavar, e deixa a janela sem nada durante algum período.
Dito e feito: eu me despedi da asma. Sem sua passagem pela minha residência, não teria descoberto o problema.
Quase desaparecido da Capital, o médico de família é uma figura central e dominante no interior do Estado. É ele que manda na saúde pública e desafoga o hospital na italiana Ivorá, município de 2,4 mil habitantes, a 283 quilômetros de Porto Alegre. Na cidadezinha emoldurada pelo Monte Grappa, chá de banco não existe, mas cafezinho no sofá.
Desde 1972, Irineo Mariotto, 66 anos, vai de porta em porta todo dia para conferir o ânimo de seus pacientes. Visita 20 a 30 famílias por mês, chegando a tratar quatro gerações num endereço, do avô ao bisneto.
– Enxergo a realidade muito além de simplesmente escutá-la. Gastei muitas solas de sapato branco nos cascalhos, bem mais do que qualquer sambista – brinca.
Ele aperta a campainha e sai dizendo:
– Com licença...
Seu chapéu preto é uma tática cavalheiresca.
– Coloco o chapéu somente para tirá-lo, é uma homenagem às mulheres.
A fisionomia cabotina e simpática é completada pelo contraste entre o farto bigode e os óculos minúsculos.
– Conheço 99,9% dos ivorenses. A convivência alimenta meu bom humor – afirma.
Pelo trabalho de formiguinha ao longo de quatro décadas, Mariotto foi eleito prefeito por duas gestões (1989/1992 e 1997/2000).
– Os idosos não medem esforços para me agradar, interessados na situação de seus contemporâneos. Servem suco, biscoitos, doces, ansiosos por notícias dos outros – confessa.
Maria Joaquina de Paula, 88 anos, a filha Maria Dejanira, 59, e as netas Gabriela, 19, e Daniela, 26, são pacientes de Irineo.
– Visita é melhor do que consulta, né? – pergunta Dejanira.
A aparição do médico ajuda a rotina feminina, já que Joaquina é paraplégica.
– Não temos necessidade de subir escada com cadeira de rodas, achar um táxi grande, aquela trabalheira para levá-la ao hospital. O médico cuida da nona no próprio quarto e orienta dieta e exercícios – conta Gabriela, técnica em administração.
Em suas andanças, Mariotto aprendeu que não deve demonstrar pressa. O ideal é conversar amenidades que a verdade surge ao natural.
– Quando doentes, as pessoas odeiam ser pressionadas, elas se sentem culpadas, têm medo de falar, acreditam que são vítimas de algo que fizeram de errado. Alivio a cobrança.
Extremamente observador, examina cada corredor e hábito.
– Ele é mais cricri do que faxineira. Olha os cantinhos para ver se mantemos o lar limpinho – entrega Dejanira.
Suas vistorias domésticas não são traços de mania obsessiva, e sim bases da medicina preventiva.
– Havia reincidência de verminose no posto de atendimento. Verificamos que o saneamento básico era zero em algumas comunidades. A população bebia da fonte dos animais.
Para Mariotto, tudo é claro e lógico, cartesiano e sensato. Incompreensível apenas é a prole expressiva com a mulher, Neiva. São cinco filhos, número alto para quem se vangloria do planejamento familiar:
– Eu queria 10 filhos, reduzi pela metade!
Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 28, 23/7/2011
Porto Alegre, Edição N° 16770
Veja vídeos de Ivorá.
6 comentários:
Lembrei-me de um velho tio, também médico de uma cidadezinha do interior. Querido por todos, receitava até na rua, entre uma visita e outra.
Sua mesa era farta, resultado de muitas consultas pagas com galinha, compotas, frutas, etc.
Viveu uma vida tranquila e feliz e tinha consciência da importância do seu trabalho para a comunidade.
beijos
Como sempre muito bom. Adoro sua simplicidade de retratar o cotidiano com boas histórias. Pareço entrar num lugar especial quando leio o que vc escreve. Obrigada!
ah, dah gosto ver o homem por trás do e como profissional. bela história, bela figura ;)
Um retrato perdido mundo afora e achado num contidiano que não qualquer.
texto simples, porém de uma beleza incomparável.
parabéns.
Esse tipo de médico está em extinção. Esse último espécime deveria ser empalhado quando morresse.
Esse é mais um daqueles textos ao final dos quais a gente conclui: é, a vida já foi bem melhor...
“Em suas andanças, Mariotto aprendeu que NÃO SE DEVE DEMONSTRAR PRESSA. O ideal é conversar amenidades que a verdade surge ao natural.”
A LESMA
by Ramiro Conceição
Sou lento… muito lento…
pensando-sentindo tudo!
Uma pedra, para mim,
é um Pão de Açúcar,
uma palavra, uma odisséia.
Sim... sou uma lesma
fantasiada de homem.
Não sei como fabrico poemas.
Devo ser uma lesma... alada,
um bicho-papão em mutação,
uma espécie de dragão, muito gosmento,
a ser colado na imaginação das crianças.
De início, fui uma lesma católica;
depois, tornei-me uma marxista;
freudiana; nietzscheana; reichana;
e, hoje, sou uma lesma quase feliz:
uma espécie de catassol aprendiz,
que ama navios perfumados a mar.
É, agora estou literalmente a ver navios,
que sabem…: a tristeza ou a felicidade
são pássaros migratórios de passagem.
Embora lenta… a sabedoria da minha lesma
ensinou-me que tudo é rápido, muito rápido,
que o relevante não é a distância percorrida,
porém a profundidade e a altura do calado à
geração de rastros, na busca de longínquos.
Melhor do que um milhão de beijos: um único dado.
Melhor que um milhão de olhares: um único amado.
Melhor que uma biblioteca inteira: um poema alado.
Sim,
meu relógio são relâmpagos:
a hora exata dos vaga-lumes,
das araras… e das maritacas!
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