quarta-feira, 27 de julho de 2011

FURTO QUALIFICADO

Arte de Cínthya Verri

— Você é poeta?

O professor Guilhermino César colocou meu pai numa sinuca de bico. Ele estranhou a provocação, se devia dizer que sim e ostentar orgulho ou responder que não e insinuar covardia. Optou por abandonar a gaveta e assumir os versos.

— Sim, sou.
— Tenho uma pergunta para ver se realmente é poeta. Uma só pergunta.

O pai, então com 21 anos e aluno de Guilhermino, entrou em pânico. Duas ou três perguntas não são perigosas, uma única pergunta é assustadora, parece que é caso de vida ou morte.

— Quantos guarda-chuvas você perdeu na vida?
— Você está de sacanagem comigo, professor.
— Não, querido, me responde, é o grande teste da poesia, não existe outro melhor.
— Acho que perdi mais de vinte.
— Boa média. Mostra que é poeta. A poesia é arte da distração, esquecer as coisas para dar valor às pessoas.

Ouvia essa história de meu pai quando lamentava por mais um guarda-chuva deixado na escola. A mãe me recriminava pela falta de atenção, e ele se envaidecia da minha vocação perdulária. Cochichava alegre em meus ouvidos:

— Você vai longe assim, meu filho.

Era para eu ter virado Goethe na adolescência. Extraviei mais de cinqüenta guarda-chuvas antes da maioridade. Às vezes tentava ser uma mãe comigo e me controlar, mas não havia jeito, bastava fechar o cabo que o objeto desaparecia de mim. A existência do guarda-chuva é inviável: seco, não pode ser aberto dentro de casa que dá azar; molhado, é posto de lado para não sujar o chão.

Hoje pode cair o mundo, desabar o oceano na cabeça, que vou para rua desligado do toldo preto. Ando encostado nas paredes. 1, 2, 3, 4 e fui. Pulo as poças a cada contagem e me protejo nas marquises. O curioso é que saio sem nada e volto sempre com um guarda-chuva. Acho que pego daquelas cestas de entrada de restaurante, de recepção de consultório, onde estiver. Não é de propósito, juro, difícil acreditar. Um sociólogo diria que é um ato ideológico: guarda-chuva não tem proprietário. Um neurologista confiaria na tese de que guarda-chuva não tem memória. O terapeuta avisaria que é um ato falho, para me vingar de todos que desperdicei na vida.

A verdade é que não penso, tomo, sou um cleptomaníaco dos bairros Bela Vista e Moinhos de Vento.

Fui ver o cabide, possuo vinte exemplares. Nenhum foi comprado. E não há como devolver. O sol do dia seguinte cancela a reabilitação.

Já imagino o que Guilhermino César diria de mim: coisa de prosador roubar guarda-chuva.



Crônica publicada no site Vida Breve

28 comentários:

Gabriella Chame disse...

hahaha genial! Eu achei que era a unica problematica com guarda-chuva! Já perdi muitos e agora tenho me apossado de um bocado tambem ;x

Anônimo disse...

Muito bom.

Deixo aqui o link do meu blog. Aspirante a escritor e saudoso de alguns guarda-chuvas que sou.
Thiago Romaro

Brojato disse...

Queria poder abandonar em qualquer lugar meu guarda-chuva interno; mas ele parece ter velcro que gruda na minha pele, não consigo perde-los...
Texto perfeito, como sempre de aplaudir, parabéns.

Thiago Correia disse...

Grande Carpinejar!

Feliz em sempre me identificar com seus textos...
Sou também um desses que, mergulhado no mundo dos sentimentos e das idéias, fico a me esquecer sempre de algo nos encantadores lugares com boas companhias que um dia exploro. Parece-me às vezes uma troca justa: deixo algo material e levo comigo emoções e pensamentos de valor maior.

Deus abençoe seu trabalho!

Anônimo disse...

Muito bom! Como sempre!
Eu ainda acrescentaria dois itens para minha vida, além dos guarda-chuvas: Telefones e canetas. Essa mania que jornalista tem de perder caneta e pegar a alheia transforma minha estante num aglometado de canetas de todos os tipos, marcas e lugares que nem sei mais de onde são. E, assim como teus guarda-chuvas, fica impossível devolver sem saber quem é o dono. Tudo bem...teho certeza que algum coleguinha também estará fazendo uso das minhas canetas por aí.

Rafael Carvalho disse...

Guarda, vem do verbo guardar, óbvio, mas quero dizer que o guarda-chuva em sí, além de nos guardar ele próprio se guarda de mistérios, como tu mesmo citou no texto:

"guarda-chuva não tem proprietário. Um neurologista confiaria na tese de que guarda-chuva não tem memória".

E é assim, de dias em dias vivemos e de guarda chuvas em guarda chuvas passaremos.

Parabéns pelo talento Carpinejar, sou seu fã há pouco tempo e admiro demais suas palavras e textos, adoro escrever e a cada leitura tento acrescentar mais conhecimento.

Camila Inácio disse...

Poderia passar o dia lendo... lindo!

O Neto do Herculano disse...

Nunca perdi nenhum, aliás, nunca os tive. Sempre adorei a chuva e considerava o guarda-chuva um simbolo pessimista, é para quem acredita que pode chover e não quer se molhar.

Alice Mânica disse...

Pois agora está comprovado que nunca serei poeta ou prosadora!!! Não perco meus guarda-chuvas, hahahahah!

Outro texto delicioso, parabéns! Assim como o "Borralheiro", minha atual companhia de fim de noite!

Renata disse...

Sou muito distraída, será que sou poeta?
Entre os objetos, esqueço principalmente onde coloquei as chaves do carro, canetas...
Minha mente viaja...rs

Ramiro Conceição disse...

Bem, Fabro, depois do seu texto chego à conclusão metafísica que: livro, amor e, principalmente, guarda-chuva não se empresta a ninguém.

lídia martins disse...

Furto Qualificado? Bobagem. Isso é assassinato. Nunca veio me ver, mas fantasiei que, se eu preparasse um chá de palavras, talvez, sensibilizasse seu fantasma a vir compartilhá-lo, e, com sorte, esclareço que seria tentata a matá-lo para depois esconder o corpo debaixo da certeza de que algum dia, em qualquer coisa que eu tenha lhe dito aqui, consegui sensibilizá-lo.

Este foi um latrocínio. Roubo seguido de morte. Como os idealizadores da constituição já haviam partido, tive que pedir autorização à pátria dos espíritos. Como ninguém disse nada, suponho por extrapolação, que não se importaram com isso. Se algum dia puder ler, gostaria de saber se eu teria porte para, ao menos, fazer um café para os seus aprendizes de gênio.

Você é o oposto de um intectual, é inteligente. A minha sofre limitações, mas essa certeza que me pesa, é dissuadia pela insistência da boa vontade, talvez pelo excesso dela. Se acaso vir, me traga uma ampliação de sua imagem. Quero colocá-la no teto do meu quarto. Com você me sentirei encorajada a enfrentar as tardes de sábado. Todos os meus amigos são feitos de papel e tinta. Dessa que ainda me sobra. Se eu perder o alcance do toque, que eu não perca nunca o alcance da troca.

A Declaração Universal dos Direitos dos Sonhadores, para Vossa apreciação, ofereço.

Um abraço interminável em meu profeta,
Com amor, Pipa.


http://agentepodiasevernoar.blogspot.com/2011/07/despedida.html

Gustavo Faria disse...

Já dizia Rubem Braga: o guarda-chuva é uma invenção imutável.

Sorriso disse...

certa vez escrevi sobre guarda chuvas também. sei que você não me conhece, e tampouco deve ter tempo pra ler tudo que te mandam, mas o espírito é mais ou menos o mesmo. guarda chuva é um negócio curioso mesmo. mas enfim, eu não sou escritor, o meu texto é mais um amontoado de idéias, do gênero "quer fazer graça", mas é o melhor que eu consigo. se quiser conferir, agradeço. é um pouco extenso. abraços!
http://ospopxperts.blogspot.com/2009/11/o-longiquo-e-lotado-mundo-dos-guarda.html

sevora disse...

Quando perder um guarda chuvas sei onde deve estar... e quando procurar pela poesia, já sei como encontrar...

CEM PALAVRAS disse...

sempre bom! bom demais!

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Achado, dizem, não é furtado
Certo dia,sentei-me, num ônibus, e lá estava uma
linda sobrinha italiana. Não entreguei ao
motorista, senão seria ele a ficar com a prenda.
Levei-a comigo, para o trabalho.No mesmo dia,
na volta, deixei-a do lado. Vinha o ônibus de
volta e subi, com pressa. Esqueci a prenda, no ponto do ônibus. A dois quarteirões gritei: "pare motorista". Desci e retornei: lá estava a
sobrinha, esperando sua nova dona. Tenho-a, até hoje. Fiz um "continho" para ela: "Achada, perdida e achada"...
Achado,muito melhor, só mesmo esse blog: Carpinejar!

PS>
Ah! lembrei-me de meu bisavô,era um excelente Carpina, tornou-se escultor,pela habilidade com a madeira...Foi um Mestre, de vários ofícios, vindo dos Açores. Seu "Carpinejar", fez-me lembrar-me meu bisavô.
Valeu, vir aqui...voltarei, portanto, vou seguí-lo.
Um abraço,
Lúcia

Bibiana disse...

Texto perfeito Carpinejar! como todos são... claro!

Acho que perdi poucos guarda-chuvas na vida, destruo antes que isso aconteça... já desisti deles à muito tempo, são objetos sensíveis demais para que eu consiga conservá-los.

Ana Oliveira disse...

AMO VOCÊ

Fátima El Kadri disse...

Detesto guarda-chuvas. Quando não os perco, quebro. Passei a usar a capa, que é mais prática. Será que isso me faz menos poeta?

Unknown disse...

eu nunca perdi... será que não levo jeito para a arte?

um abraço

KML disse...

Já perdi guarda-chuvas e mais, muito mais por sintomas de poesia. Bravo!

ana disse...

Coleciono sombrinhas e guarda chuvas. Para poder ficar ao sol ou sob a chuva mais tempo,sem pressa, sem correr para um abrigo.
Levar consigo um abrigo é muito poético.

Augusto Dias disse...

Você é surpreendente!

Fico muito feliz de ja ter perdido tantos então.

Vou amarrar o meu guarda chuva na cintura se te encontrar por ai, rsrsrs!
Tudo de bom e o sucesso de sempre pra você!

j.artur disse...

pra quê guardar a chuva pra si, se ela banha a todos nós?

Paulo Ednilson disse...

Pois é Fabrício... A distração pode ser um indicio que o distraído tem algum talento para a abstração. Gostei, pelo menos vou me sentir menos culpado agora! Abração!

Vinicius disse...

Estou tão distraído agora que mal li o seu texto; algo com guarda-chuva, deve ser porque está chovendo agora? Vou compor um texto a cerca dos "ditos de alguns poetas e a loucura dos seus ouvintes."

Abraço.

Carlos Kurare disse...

Fabrício,

Um dia tomei uma resolução: jamais esquecer guarda-chuvas!
Mas, só deu certo depois que passei a sair de casa sem eles!
Ah! Quanto às pessoas, continuo a esquecê-las, pois ainda não aprendi a sair sem elas!
?:O)

Um abraço!

“Saudade é o sumo que sai quando sua lembrança me espreme o coração”
Carlos Kurare