Arte de Joseph Cornell
A esposa reclamava do meu ronco. Dizia que desrespeitava a lei de silêncio do prédio. Ainda mais quando estava absolutamente cansado, naquele estado vegetativo de quem não dorme, porém desmaia.
Capotava de barriga para cima, as pernas esparramadas pela cama inteira.
Ao fechar os olhos, abria a matraca. Não respirava, e sim uivava. Meu inconsciente brincava de língua de sogra. Sorte que adormecia fundo, o necessário para não ouvir minha respiração galopante. Ruim é ter sono leve e ser acordado pelo próprio barulho cavernoso.
Reservava toda a audição da sinfonia para Cínthya. Minha mulher odiava a cortesia e recorria a métodos diversos para me calar.
Inicialmente, ela me ajeitava e massageava o rosto com carinhos. Como não desligava a britadeira, a ternura logo desandou em tortura. Optou pelas ações drásticas: sacudia os braços, comprimia o queixo, apertava o nariz. Em seguida, comprou tapador de ouvidos, touca térmica, fita isolante de sequestrador.
Exausta das tentativas inúteis, veio protestar de manhã:
– Não consigo dormir. Para piorar, seu ronco é ida e volta, lança o ar e engole de novo.
Ensaiei resistência, só que me envergonhei do defeito e fui procurar ajuda. Eu me internei durante três dias no campanário do mosteiro de Três Coroas, conversei por Skype com Dalai Lama, parei de fumar, iniciei ioga, retornei à natação.
Depois de dois meses, não regurgitava mais com o nariz, surdina enfim consertada. Livrei-me do escapamento e das ameaças. Já era um travesseiro de penas de ganso, macio e confiável.
Mas Cínthya continuou a me cutucar de madrugada.
– Ei, ei, ei?
– Que foi amor?
– Tô com insônia, sinto falta de seu ronco, fico com medo de que tenha morrido ao meu lado.
Por obrigação matrimonial, voltei a roncar. Não sou cemitério para descansar em paz. E faço defesa do criativo chiado musical, cheio de tambores e trovões.
Um homem roncando é sinal de saúde. Todos em casa sabem que ele está vivo. Um homem roncando traz segurança ao lar. É ter um cão dentro do quarto. Ninguém assaltará sua casa. Não necessitará pagar alarme ou serviço de vigilância.
Um homem roncando serve como crucifixo. Afasta vampiros, bruxaria, mau olhado, demônios e fantasmas.
Um homem roncando revela satisfação sexual. O ronco é o casamento escondido da risada com o gemido.
Por favor, não seja precipitada, não critique mais seu marido, antes que você se torne sonâmbula da saudade.
Homem é como chimarrão: se não roncar, é falta de respeito.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 11/10/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16852
14 comentários:
Rss... muito bom lembrar disso! Um homem que não ronca não é um homem completo, né... Mas ainda continuo cutucando meu namorado quando ele ronca!
Assim como seria falta de respeito do homem não roncar, é falta de educação da mulher não cutucar o macho e dar a ele o prazer de sua indignação causada pelo ato solene desta perturbação planejada pelo corpo.
Vou passar esse texto para a minha namorada, que vive reclamando do meu ronco...
Um abraço!
Prefiro que ele não ronque. Senão, preciso sair do quarto para conseguir dormir em paz.
Bem, se é só quando está cansado demais eu não reclamo. Mas se repetir mais de 2 dias... aí eu chamo na cotovelada mesmo rsrsrs
Faz-me lembra da república. Uma indoce e infernal sinfonia noturna em que todos diziam que não roncavam.
Ai gente, será que dá pra sentir saudades do ronco? Ainda mais depois daquela cervejada. Prefiro ainda cutucar as costas.
Ronco causa separação!... Não tem desculpas, para provar que está vivo ninguém precisa roncar, se é defeito da máquina, recorra, nada melhor do que o silêncio para dormir, e se no silêncio alguém apagar as velinhas,,, paciência! Cumpriu a missão aqui a na terra!
Se ronco é bom ou ruim... isso não importa. Seu texto é muito bom... como de costume!
– Ei, ei, ei?
– Que foi amor?
– Tô com insônia, sinto falta de seu ronco, fico com medo de que tenha morrido ao meu lado.
MUTAÇÕES
by Ramiro Conceição
É hora de partir…
Então vá… filhinho meu;
é a sua primeira viagem…
mas, por favor, volte.
É hora de partir…
Então vá… menino meu;
é a sua segunda viagem…
mas, por favor, volte.
É hora de partir…
Então vá… filho… seu;
é a sua terceira viagem
mas, se possível, volte…
É hora de voltar…
Então vim… meus pais;
eis meu retorno… possível.
É hora de ficar
à memória de meus pais…
É tempo… de chegar;
bem-vindo… filho meu!
PS:
http://www.youtube.com/watch_popup?v=MQzldrC870s
Obrigado, Carpinejar. Estava precisando de alguem que me defendese com tanta propriedade. Vou mostrar à minha mulher. hahahaha! Ótimo! ABraços. Paz e bem.
o texto é ótimo...como sempre. o ronco no entanto é péssimo...como sempre. só quem fica acordado sabe a tortura q é, daí entao prefiro colocar meu 'cachorro' pra fora do quarto :)
Adorei, ri muito. Carpinejar sempre mestre!
Quem ronca é sempre engraçadinho, bem humorado. Afinal de contas, teve uma ótima noite de sono. Já quem sofre com o ronco leva fama de ranzinza, chato, estraga prazeres.
Eu queria que sua esposa roncasse. Só assim você conseguiria se colocar no lugar do outro. Empatia zero nesse texto. E duvido que sua mulher tenha dito isso algum dia.
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