terça-feira, 3 de abril de 2012

TRABALHO DE PARTO

Arte de Akira Kurosawa

Jussara deixou para definir o nome de sua filha na última hora, curtia a dúvida, sondava numerologias. Apostou na inseminação artificial para não sofrer com dilemas existenciais com nenhum homem. Temia que fosse subornada por chocolate nos instantes derradeiros e aceitasse batizar seu bebê de Frisson, a Mulher Melão.

Era influenciável demais para dividir a vida com um marido. Aceitaria qualquer sugestão como ordem. Não aprendeu a dizer não, tomada de arrebatamentos generosos que lhe colocavam em maus lençóis. Não podia ter um estagiário, que já cumpria o trabalho de banco para ele. Não podia ter uma empregada, que já cozinhava para ela. Não podia chamar uma pizza, que convidava o entregador a comer junto. A culpa crescia e dividia os méritos e renunciava à autoria do sucesso. Jussara evitava a convivência para não ser corinho, rejeitava o amor para não ser escrava do sexo e da gentileza. A gravidez não foi bem coragem, mas cobrança da mãe por um neto. Atendeu ao pedido para dispensar explicações em toda visita.

A gestação seguiu tranquila, até o dia D. Rompeu a bolsa e ela se desesperou. Não havia ajuda para montar a mala e partir para o hospital. Não havia amparo para superar os cinco andares de seu prédio. Não havia sequer um nome para a filha (não bateu o martelo de tanto que saboreava o índice onomástico do Guinness Book).

Fazendo respiração meio latido meio miado, ela tentou ligar para a mãe, que não atendeu. Tentou também o táxi, só ocupado. Ainda por cima chovia. Despencou escada abaixo. Já na rua, ensopada, ninguém parava diante de seu sinal educado e tímido. A sorte é que uma jovem passou pela gestante e se preocupou com os gemidos. Não titubeou, colocou Jussara no banco traseiro do Palio e correu ao Mãe de Deus. A nissei dirigia com astúcia, ziguezagueando a Ipiranga, atalhando pelo corredor do ônibus.

– Calma, estamos chegando – acalmava a voluntária, com forte sotaque oriental.

Jussara desceu a salvo na entrada do hospital. Posta numa maca, reuniu ânimo para segurar o braço da salvadora e sussurrar:

– Gostaria de agradecer o gesto dando seu nome a minha filha. Como se chama?
– Sou Suashará – ela respondeu.
– O quê?
– Suashará – ela repetiu.

Jussara se arrependeu da promessa, sua filha receberia um nome incompreensível aos ouvidos ocidentais, mas tinha palavra, não iria quebrar a homenagem.

Pena que, no calor do momento, não prestou atenção no que realmente falou a estranha:

– Sou sua xará.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 03/04/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 1728

8 comentários:

Anônimo disse...

um dia "go"
outro volto
a grande onda
sobre a montanha
http://is.gd/j3p6A0

Ramiro Conceição disse...

“A gestação seguiu tranquila, até o dia D. Rompeu a bolsa e ela se desesperou. Não havia ajuda para montar a mala e partir para o hospital. Não havia amparo para superar os cinco andares de seu prédio. Não havia sequer um nome…”


E AGORA?
by Ramiro Conceição


Tudo aconteceu para romper um muro.
Mas que ironia! Há outros, atrás, escuros…
Teria sido mais fácil crer nos evangelhos.
Mas não… Ela procurou ser lúcida!
E agora que amara fulano, sicrano e beltrano
que eram a delicadeza dum Mário Quintana?
E agora que
nos supermercados, só havia pedaços:
a malícia - em mil fatias - à freguesia?

E agora?!

Anônimo disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk...

Anônimo disse...

Adorei!

Monica Trugano disse...

Hahahaha muuito bom!!!

sidcley disse...

Gostei muito do desfecho. Igrediente que pede bis.

sidcley disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
sidcley disse...
Este comentário foi removido pelo autor.