quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A RUA DOS VENTILADORES DE PEDRO GONZAGA


Pedro Gonzaga é o vinil da poesia. O antigo renovado. Os ruídos artesanais de cada poema tocando como se fosse uma faixa na agulha.

Falso Começo significa a correção da música durante a gravação. O livro inteiro, com sessão de autógrafos nesta sexta, na Casa de Ideias, é uma tentativa desesperada de repetir a infância e a adolescência no estúdio da memória. Entender o que se viveu – ou se deixou de viver – pelo esforço em descrever detalhes e odores do passado.

Em O Mesmo, o escritor confessa: “Tantas vezes ter pensado nisso / e só agora o verso”.

O verso corresponde a um último clarão – sempre perseguido – do pensamento.

Quantas vezes ele buscou escrever e não conseguiu? O verso traduz, enfim, o sucesso de todos os fracassos de suas ideias.

Percebe-se um conjunto lírico assombradamente porto-alegrense, desvelando o calor infernal da capital gaúcha e seus bares cult fechados pela falta de clientela. Com sua experiência de músico, Pedro Gonzaga captura a dificuldade de convivência entre arte e negócio e desdobra os finais das madrugadas com humor fino, pessimista e melancólico. “Onde ensaiamos mais uma vez / aquela canção que levou à falência / o gordo juarez e seu boteco de jazz”.

Apelidaria a obra de “A rua dos ventiladores”, para lembrar os sonetos desencantados de A Rua dos Cataventos de Mario Quintana. Ventilador representa a casa na rua, a casa no mundo, a casa remota, incoerente e infantil exilada na síntese da vida adulta.

Merece constar em antologias de nosso clima o poema Condenação, que aborda o nosso verão estúpido, sem praia, sossego e respiro.

“Mais uma vez

verão dos diabos

a carne gentil

mal desvelada

salubre e daninha

a vibração da vida

antes da noite

antes dos insetos

um cheiro de lavanda

só mais uma vez

denunciará meu destino”

Ele acerta mesmo quando força a barra, mesmo quando cria metáforas luxuriosas e comparações barrocas, dignas de Jorge de Lima e seu Invenção de Orfeu: “Os pulmões são dois balões cinzentos / expostos como airosos cachos de uvas”.

Acerta porque se arrisca, acerta porque ousa, acerta porque não tem medo de se elevar do chão. Afinal, o pulmão é e sempre foi um cacho de uva. Qualquer criança não duvidaria disso.

Aviso de antemão: Pedro é um belo poeta. Belo no sentido de estuário da palavra. Estro. Destro. Com uma capacidade helenística de retratar a simplicidade da novela banal do cotidiano com a elevação do sublime.

Vinculado a toda uma geração que preza a rima e o cuidado formal – Alexei Bueno, Eucanaã Ferraz, Paulo Henriques Brito –, mas com uma tristeza peculiar de milonga, que só o Sul poderia produzir, o poeta deslinda remakes sensíveis das paixões na juventude. Destaco O Apartamento Estranho, quando o casal se ama entre a selva de móveis estranhos, e Linha 476, que mostra aquele ansiado beijo na colega enquanto ele aguarda o ônibus.

Seus escritos têm o circuito de elegias, um texto remetendo ao próximo infinitamente. O tempo – mediante as figuras das estações e dos meses – intensifica o tom angustiado de julgamento, de ajuizamento das contas, de consciência da finitude que só vem com idade (quando a morte deixa de acontecer somente para os outros). Lembrar seria se despedir. E se despedir é perdoar. Ou – no máximo – aceitar a perda da idealização.

Falso Começo traz um andar acima de A Última Temporada, marcante estreia na poesia de Pedro Gonzaga.

Temos um novo arranjador de nossas dores.

Publicado no Jornal Zero Hora
Segundo Caderno, p.4
Porto Alegre (RS), 23/10/2013, Edição N° 17592

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