terça-feira, 26 de agosto de 2014

CASA ALUGADA NA PRAIA

Arte de John Banting

Não possuir uma casa no litoral tinha seu valor.

Nunca sabíamos onde passaríamos o verão.

Nem o paradeiro, muito menos o endereço. Dependia da finança paterna.

Quando sobrava dinheiro, rumávamos para Santa Catarina. Quando faltava, íamos pelas praias mais próximas, como Pinhal e Cidreira.

Era uma surpresa constante.

O pai arrumava as malas, ajeitava o caos no bagageiro, reclamava que não veria nada pelo retrovisor e não abria nenhuma informação do nosso destino. Ele nos levava no escuro até o local que escolheu.

Brincávamos de cabra-cega durante o percurso.

Onde será? Quantas quadras do mar? Toda casa que enxergávamos pela janela poderia ser a nossa.

Eu me emocionava só de imaginar, nem precisava acontecer.

Os pais preferiam alugar e eu também.

Porque despertava uma competição alegre entre os irmãos.

Quem ficará com o melhor quarto, a melhor vista, o melhor esconderijo?

A entrada pela porta gerava uma corrida desesperada de inspeção.

– É meu, é meu, é meu! – os quatro filhos subiam as escadas e apontavam sem parar.

Não olhávamos direito o conjunto, invadíamos cada cama com a sanha de Colombos, Américos, Cabrais da orla, descobridores de novas terras e civilizações. Com o grito, queríamos garantir a prioridade da escolha.

Não deveria ser simples distribuir os lugares. Desencadeava decepção e piquete:

– Mãe, não vale, pedi primeiro!

Nossa justificativa infantil estava estruturada em pedir primeiro e depois fazer manha.

Vinha um sentimento confuso e misterioso na hora de ocupar o imóvel. Bendito e maldito, prazeroso e melancólico.

Era entrar numa residência totalmente desconhecida e mobiliada. O aluguel apenas civilizava o nosso roubo.

Desfrutaríamos de 30 dias para encarnar uma segunda família, já que a nossa não havia dado muito certo.

Não tirávamos férias somente de espaço e de tempo, mas também de personalidade.

Experimentávamos uma decoração diferente, costumes diferentes, um arranjo doméstico diferente, de quem a gente nem ouviu falar.

A mãe abria as gavetas para avaliar os talheres, abria as despensas para julgar panelas e pratos. Quando reconhecia algo bom, exclamava:

– Nossa, vai facilitar a vida!

Tanto que não carregava meus brinquedos na viagem, com exceção da bola.

Encontrava bicicleta de pneu furado, baldes e geringonças de crianças no depósito.

Alugar residência na praia significava herdar a infância de um outro menino.

Fingia não ser eu, colecionava cartas, perdia tardes consertando jogos, esquecia o meu futuro cuidando do passado de alguém.

Mantenho esse esquisito e fascinante veraneio dentro de mim. Consciente de que o mar nunca foi meu, sempre tive que devolvê-lo quando chegava março.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 26/8/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17903

Um comentário:

Solange disse...

Tenho lembranças semelhantes às suas da minha infância. Sou essa infância também, acho que todos temos, quando criança, esse espírito entrão, avassalador, inquieto, afoito, ansioso por descobertas. Vai saber se Colombo, Cabral e os outros não estavam brincando apenas de avassalar territórios, atrasados no tempo da suas pouca infância, vai saber... Você consegue me fazer rir e chorar, chorar e rir... Ainda estou rindo e vem a lágrima aproveitar que estou de boca aberta. Você é absurdamente belo, totalmente raro...
Um abraço.
Solange