terça-feira, 23 de dezembro de 2014

A INVISIBILIDADE DA LIMPEZA

                                                                 Arte de Edgar Ende

A solidão é como limpar a casa: ninguém percebe, por mais que tenhamos a vontade imperiosa de apresentar o que fizemos.

Quando faxino a residência, sempre vou me decepcionar com a reação da esposa e dos filhos.

Não entendo como ainda insisto, e eles não têm não nenhuma obrigação de ficar me elogiando.

Mas é que me esforcei desmesuradamente em colocar o lar em dia e gostaria de ser parabenizado, festejado, aplaudido.

Eu limpo os interruptores, passo um pano nos azulejos da cozinha, esfrego o teto, elimino manchas ancestrais das panelas, espano as estantes mais altas.

Queria fazer uma exposição dos meus atos, uma visita guiada de museu pelo apartamento para meus familiares, mostrando ponto a ponto, detalhe a detalhe do que realizei.
Imagino caminhando lentamente, com a comitiva atrás de mim, interessada por cada mudança sutil:

- Aqui eu organizei as gavetas, aqui eu levantei a bancada para tirar o pó, aqui empurrei a geladeira e recolhi fragmentos de copos, aqui encerei com aquele produto novo, recomendo, é ótimo!, aqui esfreguei os vidros pelo lado de fora, acompanhe os cantos da veneziana...

Demonstraria o antes e o depois e reconstituiria toda a lavagem do ambiente. Como se fosse um corretor descortinando o apartamento pela primeira vez aos interessados.
Concluo que é uma tola quimera de minha parte.

Eles entram pela porta, apressados de seus mundos, e apenas lançam um olhar geral e pouco curioso. Comentam, de modo resumido:

- Que lindo!

Deu! Acabou o reconhecimento com uma breve fungada pelo perfume composto de lustra móveis, vanilla e detergente.

Eles cheiram mais do que olham.

Limpar a casa é ser invisível, é um contentamento muito particular, como a nossa solidão.

Só você mesmo que segurou a vassoura ou controlou o tubo do aspirador saberá o quanto foi difícil retirar aquela cabeleira do ralo, não terá com quem partilhar, é um segredo. Só você mesmo que ficou de quatro esfregando o piso saberá o quanto o brilho é de lua cheia. Só você mesmo que usa a tática do jornal para transparecer a vidraça saberá o que significa a transparência.

As pessoas somente notam quando a casa está bagunçada, jamais quando está limpa. Assim como você somente repara na geladeira quando algo apodrece dentro, jamais quando está carregada com as frutas generosamente lavadas.

A faxina é a aceitação do tempo que temos que guardar para si. É uma aula sobre amadurecimento. Transformamos a nossa personalidade não para agradar alguém, e sim porque sentimos vontade de melhorar. Mudanças silenciosas, porém necessárias.

Nem tudo será reconhecido. Mesmo assim faremos por conta própria, para a nossa satisfação.

Há alegrias que são unicamente nossas. Não dependemos dos outros.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  21/12 /2014 Edição N°18020

3 comentários:

Jaqueline Cruz disse...

S-E-N-S-A-C-I-O-N-A-L!

Maria Eduarda disse...

que bonito.

OLVIDIA romano disse...

Perfeito pra mim. Neste ultimo fds tive miha carta de alforria. Meu marido me disse em sonoro tom:- Vc não fica se matando todo fim de smana limpado casa!. Qd eu disse que preferiria ficar em casa para preparar coisas pendentes, dentre elas limpar.Fiquei tão indignada com minha invisibilidade que me senti alforriada da obrigação de tudo. Se tem comida na geladeira sou eu que vou ao mercado, se tem roupa limpa é pq eu coloco na maquina, se está o cabide é pq eu fui passar, se tem almoço ou jantar é pq fiquei até as 22hrs preparando, depois de uma jornada de 9 horas de trabalho. Cansei.