terça-feira, 11 de outubro de 2016

ISTO NÃO É UM OBITUÁRIO

Eu amava Paulo Sant'Ana, este homem que me ensinou a ler o jornal pela última página.

Eu amava este sujeito passional, intenso, febril, que escreveu uma coluna por dia, de segunda a domingo, durante trinta anos - nenhum outro cronista conseguiu proeza igual.

Eu amava este articulista, que usava palavras pomposas, mas não perdia o apelo popular. Seus textos chapinhavam no dicionário. A primeira vez que li claudicante foi em uma crônica dele e quase morri engasgado com este vocábulo pois estava longe de casa para desvendar o seu significado.

Fui descobrir que Paulo Sant`Ana não era claudicante.

Eu amava aquele rosto teimoso, que persistia em fumar contrariando diagnósticos, câncer e derrames.

Eu amava a sua megalomania na alegria e a sua humildade carente no sofrimento.

Eu amava a sua intuição de que a comida que mais apreciamos é a experimentada na infância, por mais que sejamos sofisticados e refinados com o tempo.

Eu amava as suas descrições futebolísticas e paranoicas, a grandiloquência do coliseu da bola, mesmo eu sendo colorado.

Eu amava a sua coragem de ser profeta e assumir as suas opiniões apesar de nem sempre ganhar as apostas.

Eu amava as suas histórias de infância em Tapes, os seus banhos no tanque de pedra em meio aos cartuchos vencidos de balas, ou as suas reminiscências do início da vida urbana, do bonde-centopeia sacolejando pela Duque de Caxias, com o cobrador tirando o bilhete de 180 pessoas entrando e descendo.

Eu amava a coincidência de seu nascimento em 1939, ano dos meus pais e do restaurante Copacabana, que todos frequentávamos.

Eu amava Paulo Sant’ Ana, ele comprava as piores brigas no Sala de Redação em nome da verdade e depois a verdade mudava de lado e ele ficava sozinho até convencer a verdade a voltar para a sua boca.

Eu amava este gênio idiota, que encontrava coerência na alucinação e foi eternamente o mais lido e o mais ouvido e o mais comentado no Rio Grande do Sul somente pela beleza extravagante e carismática de suas ideias.

Eu amava a sua noção de que há ainda prazer em chorar, quem chora tem o prazer das lágrimas, triste é a dor seca, sem nada para desaguar.

Eu amava a saudade que ele pronunciava com vagar, saudade com gosto de sanduiche de pernil do antigo bar Matheus.

Eu amava as suas frases absolutas, peremptórias, como a que poderia viver longe dos amores, porém nunca longe dos amigos.

Eu amava o seu destino de Google, antes da internet existir.

Eu amava as suas façanhas como a de dividir o palco com Julio Iglesias e aguentar a língua do famoso cantor passeando em sua orelha diante de um Beira-Rio lotado.

Eu amava Paulo Sant’ Ana, um Nelson Rodrigues longe do mar.

Eu amava Paulo Sant’ Ana, ele próprio se imitava perfeitamente e ninguém desconfiava que ele era diferente a cada manhã.

Eu amava Paulo Sant’Ana já que prendia a minha atenção no Jornal do Almoço apenas fazendo pausas e bocas. Era uma máquina de escrever expelindo a lauda branca e escrita dos olhos.

Eu amava Paulo Sant'Ana, ele mantinha uma reserva educada e civilizada de inimigos. Não se pode ser grande na vida sem oposição.

Eu amava Paulo Sant’Ana, que transformava Porto Alegre na capital dos acontecimentos de sua alma.

Eu amo Paulo Sant`Ana porque ele não precisa morrer para receber homenagem. E jamais será assassinado pelo esquecimento.

Publicado em Zero Hora
Coluna Semanal
11.10.2016

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