quarta-feira, 28 de abril de 2010

COZINHA MEDITERRÂNEA

Arte de Tereza Yamashita

Deliramos que a faxineira não tem fome e que deve esperar. É uma bagagem escravagista extraviada em nossa cozinha.

Não valorizamos sua refeição, fingimos que ela não existe. Revela um ranço amoroso, como se a criatura fosse um bicho, uma verdura, um aspirador de pó. Imagino que seja uma maneira velada de reclamar do valor que pagamos e das passagens oferecidas uma vez por semana. A avareza despontará nos itens mais básicos. Coisa de homem que não economiza para comprar um carro último modelo e reclama do preço do papel higiênico.

Concluímos que a faxina já está cara e que ela agora se vire sozinha, só o que faltava se preocupar com seu estômago.

Costumamos pensar que qualquer coisa serve, que ela pode se contentar com a comida requentada de dois dias atrás. Ainda forjamos um falso despojamento, dizendo para apanhar o que quiser da geladeira, mesmo sabendo que está vazia.

O que não pretendemos é nos incomodar com o assunto.

E toda faxineira percebe a exclusão. Come depois, quietinha, escondida, soprando o feijão quente como um anjo nos ouvidos de um suicida.

Desconfio que a indiferença represente um castigo porque ela conheceu nossa sujeira. Uma espécie de raiva involuntária, para logo se livrar do relatório doméstico e do que enxergou dos nossos hábitos. Inventamos uma discriminação muda, que não gera abaixo-assinado, processo e protestos.

O desconforto com as faxineiras aumenta quando me encontro com Paulo Scott, dono de uma maneira peculiar de lidar com a figura. Na realidade, um tratamento insuportável. Quisera ser igual. Cultivo raiva enciumada.

O cabra não está interessado na divisão de classes, nunca leu Marx e Engels para sua horta. Espera ansiosamente quarta-feira, o dia da limpeza, que apenas não é fatídico para ele.

Não foge da vassoura tampouco se irrita com as cadeiras viradas e os tapetes estendidos. Nada atrapalha suas vontades marinhas e disposição de rede. Segue sua rotina, com o ânimo exaltado. Alheio à confusão, prepara tábuas, afia facas, põe o avental e se entrega ao chiado das bocas do fogão, após peregrinar pela feira do peixe de manhã cedo.

Cria um ambiente afrodisíaco, mediterrâneo. Com flores, candelabros e bandejas, arma a volúpia de restaurante na sala de estar — um esforço imaginário parecido com aquele das crianças, que anoitecem o sol ao levantar uma cabana de almofadas e esticar o cobertor entre as mesas.

O romantismo acanalhado e o excessivo preparativo indicam que receberá a namorada, num golpe fatal da sedução. Mas não há namorada. Aquilo tudo é para sua faxineira.

Tudo.

(Antes que conclua bobagem, meu amigo não cursa gastronomia e testa cobaias, sequer odeia a solidão e comer desacompanhado. Muito menos guarda segundas intenções com Nausira, que tem a idade de sua mãe).

Ele grita às 13 horas em ponto:
— Posso servir?

Ela interrompe o serviço, lava as mãos e senta com o guardanapo de pano nos joelhos.

Vem sendo um ano inteiro de pratos especiais: sardinhas assadas à moda portuguesa, preparadas com alho, pimenta e azeite e o indispensável limão espremido, ou risoto de salmão com alcaparras, acompanhada de Salada Caprese e de um vinho branco.

O único pecado é que sobram para Nausira a louça empilhada e a imensa sujeira na pia e no chão. A generosidade sempre tem um pretexto.




Crônica publicada no site Vida Breve

13 comentários:

milu disse...

Por isso é que adoro ler seus post...Que tapa...Mais um aprendizado...Bjs.

Cláudia Cardoso disse...

Muito bom!

Tati disse...

Esta é uma preocupação que sempre me ocorre, não tão intensamente quanto ao seu amigo, mas já caprichei mais por ser dia da faxineira... Numa dessas me atrapalhei. Fiz uma bela carne assada e a coitada ficou cansada depois do almoço, quase dou o resto do dia de folga... mas carrasca que sou, botei para trabalhar alheia ao risco de indigestão.
Dá próxima faço um peixinho... à moda mediterânea... hehehe
Beijos.

Anônimo disse...

Adorei. Muito bom o texto!

Suziley disse...

Feliz é Nausira por ter tão cristão patrão. Paulo Scott é alheio a Marx, Engels, à religião, mas parece ser daquelas pessoas que, de fato, fazem a vida merecer ser vivida com muito amor no coração!! Parabéns!! Pessoas que gostam e que valorizam outras pessoas!! Texto perfeito. Boa tarde, :)

ana disse...

É que existem pessoas que têm muito amor para dar e espalham este amor para todos que estão à sua volta. Quando vou preparar o café para a minha faxineira, eu pergunto se ela quer cappuccino, caffè-late ou caffè macchiato.Bjs.

Anônimo disse...

Lindo!
*Estou sem graça: eu também me arrisco no fogão quando tenho a companhia especial da faxineira...
Abraço

JPM disse...

Como não gosto de dividir minha intimidade com os outros e tão-pouco sou dado a explorar trabalho alheio [seria uma baita contradição escrever um livro (A Nova Cara da Escravidão) onde bato forte na exploração do homem pelo homem, o que, ao lado da mentira, a meu ver, são os dois maiores males da humanidade] não tenho tal dilema.
Parabenizo-te, sinceramente, pela profundidade, pelo alcance que deste a esse triste retrato de uma sociedade que critica tanto a "elite dominante" e os políticos, mas não se dá conta - ou não deseja - que cada um, no seu mundinho, é cópia fiel dos criticados, não sem antes serem votados.
Aliás, penso que os políticos que escolhemos são uma cópia fidelíssima do comportamento médio que nós, conquanto espécie, temos nas nossas relações. O que nos diferencia dos políticos é um detalhe: eles dão as cartas, nós, jogamos o jogo deles.
Saúde e felicidade a todos.
João P Metz

M.Barth disse...

Maravilhoso! Foi o que pensei quando terminei de ler. E pensei, ainda ha esperança no ser humano, que bom!

Felicidades!
Monique Barth

Flavio Barreto disse...

Belo texto. dignidade é essencial para qualquer um em qualquer função.

Ramiro Conceição disse...

Caro Fabro, avisa ao Paulo Scott que, em busca de uns cobres e um bom rango, estou a fazer faxina. Não tenho todo esse luxo da Nausira, não. Comigo é mais simples: prato de papelão; talheres de pau (ops!); e os copos de plástico. Detalhe: tudo pode ser velho e usado. Comigo, passou uma aguinha - tá novo!

Carmen, disse...

de olho marejado.. :)

Beth Blue disse...

Eu confesso que fiquei assustada...porque moro há mais de 15 anos fora do Brasil e faxineira não apenas é bem tratada como vale ouro. Nessas horas sinto nitidamente o choque cultural de se viver fora muitos anos...e dói um bocado.

Fico impressionada como em pleno séc. XXI ainda exista este tipo de escravidão! Sim, existem outros tipos de escravidão aqui na Europa, digamos assim mais sutis (até porque, vivemos em um mundo capitalista, não sou comunista mas também não sou cega).

lembranças de Amsterdã...