Arte de Paul Klee
Namoro mesmo começa quando mostramos os álbuns de fotografia da família. Antes disso é flerte ou amasso.
Experimenta-se uma operação frágil e delicada, desde retirar o pó das caixas até virar as folhas plastificadas com capricho de colecionador. Nosso passado é sempre um livro raro, requer uma longa pausa dos dedos.
Reprisei as cenas de menino e não encontrei nenhuma foto rindo dos seis aos nove anos. Meu rosto estava sério, compenetrado, quase ameaçando a câmera. Não olhava passarinho, muito menos fazia xis. Ué, que estranho, eu me tinha por uma criança alegre, caseira, alucinada por colo nas poses. Os ombros da mãe correspondiam às minhas pernas-de-pau. Seu vestido, uma lona colorida de circo.
- Nossa, como você era mal-humorado?, comentou a namorada.
- Eu?
Inspirava realmente ares sombrios, de um guri problemático, com ternura violenta, represada. Poderia constar naqueles fascículos escolares como um futuro psicopata.
Fiquei intrigado durante semanas, assobiando a dúvida entre as tarefas do trabalho. Assobiar é minha hipnose regressiva. Com a cauda melódica de uma canção, sou capaz de passar o meu nascimento e pousar no piano de Beethoven.
Não compreendia a extravagância entre o que me lembrava e aquelas imagens. Pasmo com o tanto que me iludi.
Ao levar o Vicente para escola, caíram finalmente seus dois últimos dentes de leite da frente. Ele estava agora banguela, com uma inocência comovente. Festejei:
- Que lindo, como é mimoso!
Ele fechou o rosto e pisou num silêncio adulto e fúnebre, sequer me encarou. E lembrei, lembrei que eu não ria nas fotografias pelas lacunas da dentição. Emudeci os lábios, selei como envelope secreto. Eu me achava desengonçado, patético.
Reconheci como é terrível para o filho ganhar elogio na queda dos dentes. Os pais pulando em torno, pedindo para que ele mostre, fofocando aos amigos, orgulhando-se da transformação, oferecendo as pedras brancas às formigas em troca de dinheiro.
É impossível quitar essa dívida. Ele não está se sentindo bonito, terá que enfrentar a escola, abrir a fome na merenda, suportar mais duas séries até que os permanentes ocupem seus espaços, disfarçar o desfalque nos flashs dos torneios da escola. Tempo de apreensão, de passar toda hora a língua na gengiva. Período confuso, em que reconhecemos uma ausência e velamos o fim iminente da infância.
Para ele, não era engraçado, mas dolorido.
Vou respeitá-lo. Darei uma gaita para que complete – por enquanto - sua boca com música.
Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 119, Número 197
Abril de 2010
Experimenta-se uma operação frágil e delicada, desde retirar o pó das caixas até virar as folhas plastificadas com capricho de colecionador. Nosso passado é sempre um livro raro, requer uma longa pausa dos dedos.
Reprisei as cenas de menino e não encontrei nenhuma foto rindo dos seis aos nove anos. Meu rosto estava sério, compenetrado, quase ameaçando a câmera. Não olhava passarinho, muito menos fazia xis. Ué, que estranho, eu me tinha por uma criança alegre, caseira, alucinada por colo nas poses. Os ombros da mãe correspondiam às minhas pernas-de-pau. Seu vestido, uma lona colorida de circo.
- Nossa, como você era mal-humorado?, comentou a namorada.
- Eu?
Inspirava realmente ares sombrios, de um guri problemático, com ternura violenta, represada. Poderia constar naqueles fascículos escolares como um futuro psicopata.
Fiquei intrigado durante semanas, assobiando a dúvida entre as tarefas do trabalho. Assobiar é minha hipnose regressiva. Com a cauda melódica de uma canção, sou capaz de passar o meu nascimento e pousar no piano de Beethoven.
Não compreendia a extravagância entre o que me lembrava e aquelas imagens. Pasmo com o tanto que me iludi.
Ao levar o Vicente para escola, caíram finalmente seus dois últimos dentes de leite da frente. Ele estava agora banguela, com uma inocência comovente. Festejei:
- Que lindo, como é mimoso!
Ele fechou o rosto e pisou num silêncio adulto e fúnebre, sequer me encarou. E lembrei, lembrei que eu não ria nas fotografias pelas lacunas da dentição. Emudeci os lábios, selei como envelope secreto. Eu me achava desengonçado, patético.
Reconheci como é terrível para o filho ganhar elogio na queda dos dentes. Os pais pulando em torno, pedindo para que ele mostre, fofocando aos amigos, orgulhando-se da transformação, oferecendo as pedras brancas às formigas em troca de dinheiro.
É impossível quitar essa dívida. Ele não está se sentindo bonito, terá que enfrentar a escola, abrir a fome na merenda, suportar mais duas séries até que os permanentes ocupem seus espaços, disfarçar o desfalque nos flashs dos torneios da escola. Tempo de apreensão, de passar toda hora a língua na gengiva. Período confuso, em que reconhecemos uma ausência e velamos o fim iminente da infância.
Para ele, não era engraçado, mas dolorido.
Vou respeitá-lo. Darei uma gaita para que complete – por enquanto - sua boca com música.
Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 119, Número 197
Abril de 2010
21 comentários:
Começo de namoro, almoço com a familia no domingo e album de fotografias... é a intimidade suave, felicidade delicada. Mostrar fotos antigas é confiar.
Crianças banguelas são lindas, principalmente quando comem espiga de milho numa tarde quente.
beijos
definitivamente um escritor nao possui um estereótipo escolar prodígio.
Deixamos muita coisa pelo caminho: saudades, pegadas, dentes. A ausência não precisa realmente ser evidenciada, o que não há já cumpriu seu papel.
"Darei uma gaita para que complete – por enquanto - sua boca com música." Adorei esta frase, coloque-a no twitter. Queria tê-la escrito.
Sabe, nunca tive problema em ser banguela, além disso, sempre fui fã do Tião Macalé!
Se namoro mesmo começa quando mostramos os álbuns de fotografia da família, eu nunca passei do flerte e do amasso. Nunca namorei.
Bela descoberta, belo texto!!! Parabéns
Os dentes escondendo o sorriso, a alma em repouso.
O álbum da família mostrando que existe não uma, mas várias lacunas do sorriso, das lembranças, da vida.
Texto extremamente sensível, afinal, quem de nós não fechou a boca para não abrir a janela?
Parabéns!
Lindo texto!!! Abraços
Ai como eu gosto de ti e do tanto que tu me ajudas a evoluir no entendimento de todas as coisas...
Continuo cumprindo "nossa" promessa, te compartilho pelo mundo afora...
Ontem conheci a Martha Medeiros, fiquei aflita, temi que ela tivesse má impressão de Joinville também, mas não, foi bem mais tranquilo o público dela do que o teu...
Te mandei um beijo por ela, tomara que recebas!
Saudade, muita!
Lov.U
Nossas ecdises são sempre dolorosas, significam não apenas perder a casca que não mais nos servem, mas mudar de fase, a chegada do desconhecido.
Você foi ótimo em suas reflexões. Não me lembro desta fase, mas com certeza não deveria ter orgulho dos buracos no sorriso.
Beijos.
Somos o melhor espelho para compreender nossos filhos e suas divergências na infância e na tão complicada adolescência. Se todos os pais usassem essa referência, compreenderiam melhor o que parece impossível de aceitar. É na memória que as histórias se resguardam.
Hoje pela primeira vez entrei no blog da sua Cinthya e pude perceber que ela realmente está à sua altura Fabro, bela, inteligente e irreverente.Torço por vcs!
Bjos de sua eterna fã.
Na noite passada, fiquei lembrando coisas da minha infância e agora leio este texto.
Estava contando ao meu marido sobre as festas juninas inesquecíveis na rua onde morei.Fiquei tão imersa nas lembranças que parecia sentir o cheiro de um daqueles dias.
Beijos
Adorei este! Segredo revelado e imediatamente me identifiquei, lembrando algumas minhas das fotos que sofreram o mesmo comentário.Daí o perigo da revelação de intimidades, rsrsr
Gostei da idéia da gaita!
Sorriso sem dente é como professor dando aula sem calça. Qualquer indivíduo sadio fecha a cara.
Até maio em sampa!
Augusto
Carpi, tem um erro gramatical no texto. Na parte "nenhuma foto rindo entre os seis aos nove anos" deveria ser "entre seis e nove" e não os seis aos nove", ou tiraria o entre e colocaria "dos seis aos nove anos". Veja aí.
Abraços.
Cara, voce e muito PHODA! (:
Oi Anônimo!
E tinha mesmo! Já está corrigido. beijo agradecido Fabro
Muy bueno.
Perder os dentes na infância
não é, definitivamente,
uma boa lembrança...
Também já escrevi a respeito:
http://docedelira.blogspot.com/2009/07/dna.html
Será um prazer recebê-lo
em minha confeitaria poética!
Beijo,
doce de lira
A FEBRE
by Ramiro Conceição
ao Fabro
Quando meu filho está com febre,
meu coração, febril, se veste.
Porém, pra mim, não há diferença
entre a doença do meu filhote
e a tosse que sacode a cidade...
Logo, dentro do possível,quando posso,
um vestido, à humanidade teço;
por isso, para que fique mais bonito,
de fato, trato toda febre com cuidado.
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