sexta-feira, 2 de abril de 2010

LUXURIOSO

Arte de Peter Blake


Minha mãe assistia novelas, eu assistia propagandas. Acreditava que as propagandas eram novelas para crianças. Curtas, rápidas.

Andava como cego, raspando as mãos nas paredes. Minhas mãos ficavam vermelhas de tanto caminhar.

Achava que uma propaganda completava a outra. E a novela era a propaganda da propaganda. Ninguém nunca me provou o contrário, até porque nunca falei isso. O segredo é uma forma de manter a opinião.

Eu completava o enredo: juntava carros com máquina de lavar com gel para cabelos. A cada dez minutos, um novo capítulo. A infância mistura mais os olhos do que a comida.

Suspirava quando apareciam as caixas de sabonete de Madeiras do Oriente, fascinado por uma expressão que uma loira dizia: espuma luxuriante. Aquilo me excitava, mesmo não entendendo o significado. A excitação aumenta com a incompreensão. Batia uma vontade de raspar as pernas nos muros. As pernas ficaram vermelhas de tanto andar parado.

Eu queria ser invisível. Havia uma mulher invisível na televisão. Creio que ela usava uma poção ou talvez as caixas de sabonete de madeiras do Oriente. Espumava e desaparecia. Luxuriante.

Na primeira tentativa de sumir, empreguei camadas de Minancora por todo o corpo. Aumentei a visibilidade. Rendeu efeito oposto, mas senti que estava no caminho correto. O contrário é o vizinho do acerto. Um inimigo ama com o ódio. Eu não tinha inimigos. Criava superstições para evitar danos e doenças. Meu medo não dormia. Olhava as fotos da família para definir qual era a foto de morto de cada um de meus parentes. Existe uma foto de morto quando a pessoa ainda estava viva. É a foto que sairá no jornal ou no anúncio fúnebre ou na lápide. No instante em que ela é tirada, a morte surge. Já posso ter minha foto de morto, cabe analisar com cuidado os álbuns de família.

Quem mais chegou perto da extinção foi o tio Luis, que entrou em coma por dois dias. Coma é um comercial da morte.

Não desejava morrer, mas desaparecer para voltar. A morte é uma desaparição perfeita. Eu me acalmava com os ruídos.

Pensava e respirava em separado. A asma complicava meu raciocínio. Um gato chiava dentro de mim – não o enxergava por mais que cavasse com a boca.

Alentava hipóteses malucas para apagar a carne por instantes. O talco que gerava a falta de ar deveria ser o responsável pela minha salvação. Uma nuvem atravessa aviões. A nuvem é transparente. O que faz mal pode curar. Como o antídoto retirado do próprio veneno de cobra.

Abandonei as roupas, respirei fundo e borrifei o pó inteiro numa só cremação. Meu pai recebia escritores, entre eles o Mario Quintana. Conversavam animados na sala, tomando cafezinho e criticando qualquer um que ousasse escrever poesia.

Atravessei pelado o longo corredor e passei pela sala cheia de visitas. Girei o corpo, ginguei a cintura, arrisquei polichinelo e nenhuma reação, susto, torcicolo. Não fui visto, consegui. Consegui! Voltei ao quarto e beijei o milagroso Johnson. Chato é que veio uma cisma, recomendando confirmar o experimento. Acabei seduzido pelo poder da repetição. A repetição é domínio.

Retornei ao pulmão da residência. O silêncio depois do grito é escandaloso. O pai me puxou pelos cabelos, espalhou poeira pelos tapetes, e me botou de castigo. Restei no quarto. Sem sinal.

Entendi que não é possível ser invisível duas vezes seguidas. Eu me excedi.


Crônica publicada
no livro "Os Televisionários"
(ARdoTEmpo, 400 ps),
de Walmor Bergesch

20 comentários:

Candy *.* disse...

Comercial é uma pequena amostra positiva de um objeto de desejo. O desmaio somente é bom pelo descanso de sentidos temporário. A morte, o eterno. A eternidade cansa! Pois o amor humano é efêmero.

Cida disse...

Amei...amei, e... amei!!!...rsrs

Já disse aqui que tenho um filho (o mais velho), que é quase da sua idade...
Pois bem, como ele também era asmático de criança (outra coincidência!), eu fico aqui matutando com meus botões, se ele também surtafa assim quando pequeno...rsrsrs

Acho um delícia te ler!
E olha eu aqui, em plena sexta feira santa, morrendo de rir ao te imaginar "fantasma", correndo pela sala entre tão "nobres" convidados. Deve ter sido muito bom de se ver!
Onde é que seu pai estava com a cabeça prá te por de castigo??? Todo lindo e perfumado a Johnson, merecia um troféu!...rsrs

Desejo uma feliz Páscoa prá você Fabrício, e que Deus permita que você continue a nos brindar com essas histórias contadas de uma forma que só você consegue.

Paz e Bem!

Cid@

Jééh disse...


veiy que lombra,não entendi necas-de-pitibiriba do que tá escrito :S, mas achei bem legal assim esmo ^^

Cida disse...

Lá acima ao invés de "surtafa" eu queria dizer "surtava".
Então é isso...

Pensamentos soltos traduzidos em palavras. disse...

Muito bom!
Quanto aos comercias? Traduziu parte da minha infância.

Ahh Quintana... Quem me dera a visita dele na minha sala!

Adorei.
=)

Márcio Ezequiel disse...

E cada crônica tem uma foto póstuma, a frase que fica na lápide literária, slogan que vende o bom texto. Para mim foi essa: "O segredo é uma forma de manter a opinião."
Abraço!!!

Dalva M. Ferreira disse...

Muy bueno, muy bueno. Invejinha...

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) disse...

Fabrício,
As primeiras frases são versos de Drummond, que por sinal fazia muita propaganda de Quintana, que era amigo de seu pai, que tinha três escritores em casa: um ainda fantasma. Drummond de novo: Quadrilha. Antes, Infância. E você, Fabrício, já sabia que sua história era tão bonita quanto a de qualquer criança que sente invisivelmente que dar-se-ia às letras. Sorte dos números, que ganharam mais um imensurável escritor...

Abraço mineiro,
Pedro Ramúcio.

Anônimo disse...

somente os asmáticos, miopes e invisíveis podem ser poetas.
Belo texto, abçs

Joana disse...

Eu tb era asmatica e tb andava raspando as maos na parede... gostava de me fingir de cega no centro da cidade, a minha irmã mais velha ia me guiando. nao queria ser invisivel, gostava de aparecer. rsrs


Adorei o texto!

Ivi Medau disse...

Você é arrebatador!

"repetição é domínio" é perfeito!


Um beijo enorme!

Renata de Aragão Lopes disse...

"O contrário é o vizinho do acerto."
Delícia de texto!

E que inveja boa,
pelo fato de haver recebido
Quintana em sua sala! : )

Uma Páscoa muito feliz
a você, Mariana, Vicente, Cíntia
e demais familiares!

Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse...

"Pensava e respirava em separado"
bela imagem

Alê Periard disse...

Fabrício

É um luxo ler uma crônica, tão maravilhosa quanto essa! Cheia de tiradas e memórias interessantes.

Sucesso e muito obrigada pelo presente!

Beijos

Alexandra Periard

Ana disse...

sempre que eu leio uma frase sua no twitter (e eu sempre leio), eu penso: que merda é essa?
mas então eu entro aqui eu tudo faz um sentido absurdo. puta dom, esse...

Anônimo disse...

"O segredo é uma forma de manter a opinião." Me amarro!!

K disse...

é realmente uma honra te ler.
vc traz fascínio às palavras!
beijos

Lucia Alfaya disse...

Há vários Carpinejares invisíveis dentro desse Carpinejar que escreve textos surpreendentes, visíveis e tremendamente líveis!

Debil Mental disse...

Como sempre,majestoso!!

Adélia Carvalho disse...

Pois tive também um tempo em que acreditava que as propagandas, eram pequenas novelas, das quais eu conhecia bem as personagens e as cenas repetidas...