Arte de John Piper
Se um familiar ou um amigo morre, não vou elogiá-lo.
Não me peça para fazer discurso ou poema. Não me peça nada. Nem que eu resista e que não sofra. Sou imprevisível. Toda perda é imprevisível, apesar do pessimismo ensaiado. Posso ser forte e insensível, posso ser fraco e derramado. Meu temperamento terá mais a ver com o morto do que comigo. Não irei combinar as meias com os sapatos e não lembrarei a camisa no dia seguinte.
Cansa-me enterros pela encenação. Quem é contido ao pé do túmulo não viveu com o morto. Inventou o morto. A saudade inventa. Cria afinidades e lembranças para ganhar importância de testemunha, para alardear uma cumplicidade única e inseparável.
Já tive amigos que falavam que redescobriram o pai ou a mãe. Mas não se descobre ninguém depois de morto, descobre-se o que não é mais, o que não será. Há gente que nunca vai admitir, mas se tranquiliza com o fim de um parente. Esperava com ardência, torcia, ruminava em segredo.
Na hora da reza, pressente um contentamento. Por detrás dos pêsames e das palavras poucas, corre um alívio. Ao lançar o punhado de terra, percebe que a vida recomeça com a partida do fardo. Festeja por dentro a distância. Agora está leve perante a ausência de futuras explicações. Está alegre e não confessa. Não suportava mais a convivência, porém nunca anunciou o fracasso dos laços.
Seria muito mais honesto se separar em vida do que pela morte, afastar-se do pai ou da mãe enquanto é tempo, por motivos claros e conscientes do que manter o ódio silencioso enferrujando os pregos do caixão. A morte não cura desavenças. A morte salva a aparência de quem fica. Homenageamos o finado para mostrar que somos um bom filho, um bom marido, um bom amigo.
Procuramos a reverência para não ferir nossa imagem. Completamos a maquiagem mortuária com nossas sombras. Preservamos um pudor incompreensível. Somente um serial killer é praguejado, e ainda com educação.
Não se ofende o morto de modo nenhum, nem que tenha nos maltratado até a exaustão. Guardamos um respeito ecumênico, não afirmando aquilo que no fundo pretendíamos: ele não prestava e foi tarde.
Não é por pena, não é por medo de assombração, é por oportunismo. Usamos a morte do outro para nos melhorar. É quase como roubar uma loja aproveitando a depredação.
Verei muita gente chorando no velório porque velório é para chorar. Não significa que sentem muito.
É tão desumano mentir na despedida.
O luto mesmo destrinchará os piores insultos, reclamará pavorosamente das mesquinharias, da ausência de gentileza e de compreensão nos últimos meses.
O abandonado mesmo é capaz de rasgar a camisa do morto, arrancar o sapato, cuspir no rosto, morder as mãos frias para arrancar os anéis e roer as unhas indefesas.
Brigará com toda razão e desrazão. Com palavrões fortes e pichações de banheiro. Andará como uma viatura pedindo passagem, atropelando qualquer um que surgir pela frente.
O amor finito traz o vexame, a confissão intragável; saía de perto.
A indelicadeza é carregada de verdades.
Se um familiar ou um amigo morre, não vou elogiá-lo.
Não me peça para fazer discurso ou poema. Não me peça nada. Nem que eu resista e que não sofra. Sou imprevisível. Toda perda é imprevisível, apesar do pessimismo ensaiado. Posso ser forte e insensível, posso ser fraco e derramado. Meu temperamento terá mais a ver com o morto do que comigo. Não irei combinar as meias com os sapatos e não lembrarei a camisa no dia seguinte.
Cansa-me enterros pela encenação. Quem é contido ao pé do túmulo não viveu com o morto. Inventou o morto. A saudade inventa. Cria afinidades e lembranças para ganhar importância de testemunha, para alardear uma cumplicidade única e inseparável.
Já tive amigos que falavam que redescobriram o pai ou a mãe. Mas não se descobre ninguém depois de morto, descobre-se o que não é mais, o que não será. Há gente que nunca vai admitir, mas se tranquiliza com o fim de um parente. Esperava com ardência, torcia, ruminava em segredo.
Na hora da reza, pressente um contentamento. Por detrás dos pêsames e das palavras poucas, corre um alívio. Ao lançar o punhado de terra, percebe que a vida recomeça com a partida do fardo. Festeja por dentro a distância. Agora está leve perante a ausência de futuras explicações. Está alegre e não confessa. Não suportava mais a convivência, porém nunca anunciou o fracasso dos laços.
Seria muito mais honesto se separar em vida do que pela morte, afastar-se do pai ou da mãe enquanto é tempo, por motivos claros e conscientes do que manter o ódio silencioso enferrujando os pregos do caixão. A morte não cura desavenças. A morte salva a aparência de quem fica. Homenageamos o finado para mostrar que somos um bom filho, um bom marido, um bom amigo.
Procuramos a reverência para não ferir nossa imagem. Completamos a maquiagem mortuária com nossas sombras. Preservamos um pudor incompreensível. Somente um serial killer é praguejado, e ainda com educação.
Não se ofende o morto de modo nenhum, nem que tenha nos maltratado até a exaustão. Guardamos um respeito ecumênico, não afirmando aquilo que no fundo pretendíamos: ele não prestava e foi tarde.
Não é por pena, não é por medo de assombração, é por oportunismo. Usamos a morte do outro para nos melhorar. É quase como roubar uma loja aproveitando a depredação.
Verei muita gente chorando no velório porque velório é para chorar. Não significa que sentem muito.
É tão desumano mentir na despedida.
O luto mesmo destrinchará os piores insultos, reclamará pavorosamente das mesquinharias, da ausência de gentileza e de compreensão nos últimos meses.
O abandonado mesmo é capaz de rasgar a camisa do morto, arrancar o sapato, cuspir no rosto, morder as mãos frias para arrancar os anéis e roer as unhas indefesas.
Brigará com toda razão e desrazão. Com palavrões fortes e pichações de banheiro. Andará como uma viatura pedindo passagem, atropelando qualquer um que surgir pela frente.
O amor finito traz o vexame, a confissão intragável; saía de perto.
A indelicadeza é carregada de verdades.
22 comentários:
De acordo com o poeta: enterros para encenação fazem o morto seguir vivendo na ilusão.
Essa sua última frase é perfeita: "A indelicadeza é carregada de verdades." É a mais pura verdade!!!!
Amo seus textos!!!
Meus parabéns!
Texto sensato e perturbador. Talvez por que a sensatez perturbe!
[se o espelho dói é porque a nossa mentira nos corrói até ao tutano; uma factura validada pela vida, tem recibo... pela morte, quem sabe, só ilusão, permanente ilusão]
pela partilha,
por si
um imenso abraço, Fabricio
Leonardo B.
Perfeito!
Detesto funerais. Sou tomado por uma força estranha que me faz rir e contar piadas para aqueles parentes e amigos que moram longe e só encontramos em velórios.
Vida longa ao senhor e seus textos.
Algumas pessoas fazem de seu ver-o-mundo uma verdade universal e se esquecem de que talvez -- somente talvez -- nem todos sejam tão desprezíveis.
Por difícil que seja, caro Fabro,
é necessário encará-la (Brrrrrrrrrrrr!).
VECCHIA SIGNORA
by Ramiro Conceição
1.ALÉM DAS VIDRAÇAS
E o mistério do ser voltou
no acender-apagar do vaga-lume
que pela janela entrara.
E o poeta olhava
com aquele olhar dos cegos
que veem além das vidraças,
e pensava-sentia
no fatal encontro
com a velha senhora sombria
que não tolera zombaria.
2.CABRALINA
Às vezes é clara,
numa visão repentina,
a terminal aridez
da angústia cabralina:
a primavera finda,
e a outra bem-vinda
bem dentro d'olhar do corvo
que se aproxima para dizer,
dilacerando: "Nunca mais".
"O abandonado mesmo é capaz de rasgar a camisa do morto, arrancar o sapato, cuspir no rosto, morder as mãos frias para arrancar os anéis e roer as unhas indefesas."
Eu li esse trecho e pensei: eeeeeeeeitcha! :D
Fabrício,
creio que há erro de regência em "não afirmando aquilo que no fundo pretendíamos: de que ele não prestava e de que foi tarde.", já que o verbo "afirmar" não admite preposição.
Beijo!
Beta.
Seria esse texto um "insight literário" de GRITOS DE SUSSUROS de Ingmar Bergman ? A clássica obra do gênio sueco, mostra bem alguns dos aforismos citados acima.
Teríamos então, aqui, um autor que já nem sabe mais quem é?
Um personagem caricato de sua própria literatura neurótica!?
deixemos de hipocrisia: a vida está ai para dizer, arrumar, pagar, perdoar. Depois que se morre (ele, ela ou nós), nao há nada para fazer, chorar, amar.. apenas saudade (daquelas doces, só, pq saudade temperada com arrependimentos nao vale).
eu nao gosto de velórios. prefiro a lembrança viva de alguem, do que aquela sinistra de dentro do caixão.
belo texto!
sou tua fã!
É, depois que "Inês é morta", não adianta mais nada mesmo. Excelente texto. Bom dia, ;)
http://arslitterayelizus.blogspot.com
O amor finito traz o vexame, a confissão intragável; saía de perto.
UAU!
Estou apaixonada pelos seus escritos!
Pa-ra-béns, mais uma vez!
Alguns se vão muito tarde...outros muito cedo.
É a vida,é a morte.
Belas reflexões, e escritas com maestria. Alguém aí achou um errinho de sintaxe, eu achei dois de digitação. Mas queria escrever assim ó, lindão, como você o faz.
Por aqui enterramos a mãe ausente sem falsos choros, apenas com sentimento de perdão àquele ser humano, pois mãe já havíamos enterrado há tempos.
No seu texto, percebi que os enterros em minha família sempre foram muito verdadeiros, hora com uns pulando na cova sobre o caixão, hora com indiferença declarada. Ainda bem...
O que mais traz sofrimento para o que fica, sem sombra de dúvida, é o remorso...
E é por isso, justamente, que devemos tentar viver da melhor forma possível com as pessoas.
Prá morto, não adianta pedir perdão.
Um abraço
Cid@
Fabrício pensei em uma maneira de falar e homenagear a todos que tanto vêm me incentivando com o carinho e apoio que me doam.
Escrevi uma crônica pensando em nós blogueiros. Falei sobre o que penso ser o blog para nós. Você pode concordar ou discordar; pode também acrescentar; mas não deixe de opinar. Leia e entenderá por que a sua opinião é indispensável para mim e para todos blogueiros.
Abraço do Jefhcardoso do http://jefhcardoso.blogspot.com
"A saudade inventa." Odeio este blog porque ele sempre me faz ter inveja de frases que queria ter dito eu. A leitura me despertou para a saudade de um texto, de como o inventamos em nossa mente e para a tristeza que é a morte de um.
Abraço!
Faz um tempão que não visito o blog que está lindo demais.
Divido com meus amigos o que gosto. Seus textos, fazem parte da partilha. Como você, sou avessa ao "faz de conta". Mais uma vez, encantada!
Naire
www.turbantedanaire.blogspot.com
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