quinta-feira, 18 de setembro de 2014

MALDIÇÃO

Arte de Eduardo Nasi


Minha memória mudou.

Aos 20 anos, lembrava do nome e do rosto.

Aos 30 anos, lembrava do rosto.

Aos 40 anos, lembro que conheço, e só. Preciso de tempo, ajuda do Google e de pistas para desvendar o interlocutor.

Todo encontro é uma charada. Relaxo, encaro fundo o enigma, examino qual a entrada mais promissora do labirinto e tento achar uma saída educada antes de optar pela sinceridade mais grosseira: “Não me lembro, não sei quem você é!”.

Na última semana, tive o mais complicado desafio de evocação. Meu sudoku particular.

Caminhando pelo shopping Iguatemi, em Porto Alegre (RS), uma senhora de olhos azuis graúdos me parou pelo ombro:

— Ei, não lembra de mim?

Puxei o ioiô do passado, mas não vinha nenhuma linha. Nenhum fio de imagem. Nenhuma legenda para este rosto redondo e simpático.

— Desculpa, estou sobrecarregado de trabalho e não me lembro.

Ela lamentou:

— Que pena, aguardava ansiosamente o nosso reencontro.

Já raciocinava, aflito: “Será que namorei esta mulher? Transei com ela? Prometi meu coração? É caso de alguma bebedeira?”

Eu me via vestido de cafajeste, de cafetão do inconsciente.

Quando ela esclareceu:

— A gente foi colega no maternal, no Patinho Feio!
— Maternal?, quis esclarecer.
— Sim, dividíamos a mesma almofada na hora do sono.

Não acreditava que ela preservava os fatos, intactos, quando tínhamos cinco anos.

Naquela hora, eu me contentei pelos meus apagões, pelas falhas generosas de meu passado, pelos lapsos do perdão. Pressenti o quanto ela sofre pela nitidez do que viveu. Deve recordar de qualquer briga, com data e horário; de qualquer desaforo, com a ordem exata das palavras; de qualquer desentendimento, com o mal estar minucioso; de qualquer vingança, reproduzindo perfeitamente o tempo do choro.

Aquilo não era memória, mas maldição.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
17/9/2014

5 comentários:

ana disse...

Olá Fabrício, como nao gosto de facebook, que eu chamo de Fakebook, ou Carasbook, respondo sua pergunta por aqui : O amor vai para um arquivo morto, onde estao os diplomas, boletins das escolas, originais de documentos, fotos antigas, ou seja, um lugar onde guardamos com cuidado os formadores de nossa identidade,
mas que nao tem mais utilidade prática no presente, pois suas informacoes já foram assimiladas.

Flávio P. Reis disse...

Maldição! Na mosca!

karen Beheregaray disse...

Realmente Fabrício, não tinha olhado por este ângulo. Sendo assim me sinto menos culpada já que na maioria das vezes minha memória é péssima.
Sou nova ainda, mas sinceramente tenho medo do que será de mim daqui alguns anos...rsrs
Alguns estudos apontam que isso talvez possa ter relação com o fato de dormir pouco. Mas sendo ou não isso, admito que não tenho mais tanta esperança quanto essa questão.
Melhor se conformar e deixar que os outros nos encontrem assim como no livro: Onde está o Wally. hahaha

estouparaaquivirada disse...

Olá Fabricio, como você é artista, conhecido, escreve, aparece na tv, parece-me fácil que ela não se esqueça de si...no seu caso é que seria impossivel de se lembra de uma pessoa que não desde os cinco anos!

Janice Amaral disse...

Como não amar teus textos...kkkk Demais!Tenho uma excelente memória mas nada que me remeta aos meus cinco anos de idade