quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A CAMA QUE SUBIU AOS CÉUS

Arte de Eduardo Nasi

— Vamos visitar o tio Juvenal no hospital?

Todos os meus irmãos franziam a testa para a mãe, alegavam que tinham prova amanhã para escapar dessa fria.

Menos eu, que levantava o braço e gritava: — Eu, eu, eu! Não havia convite melhor, nem a praça com algodão doce me atraía mais.

Hospital significava um cheiro diferente, pessoas diferentes e imprevistos.

Juvenal não era tio, era amigo da mãe. Recebia a nomeação porque já era velho e estava morrendo.

Não conseguia enxergar sua morte, pois já o conheci morrendo: magro, ossudo, com os olhos grandes de caveira. Não podia comparar com sua fisionomia de antes. Nasceu moribundo em minha memória.

Gostava de Juvenal, mas gostava mais da falta do que fazer e falar dentro do quarto.

O silêncio constrangedor gerava brincadeiras.

Como não se comentava nada sobre seu estado atual, assumia o centro da atenção da enfermeira e do paciente.

Buscavam me distrair, convencer da alegria daquele espaço branco e luminoso, coberto de tosses e palavras cortadas.

Queria adoecer para deitar naquela cama. Queria pneumonia, tuberculose, doença de adulto.

Enquanto caminhava pelos corredores de mãos dadas com a mãe, respirava fundo para ver se não contraía algum vírus nadando no ar. Com a boca escancarada, mentalizava para as partículas invisíveis: — Vem para mim, vem para mim!

A cama tinha uma manivela que levantava o encosto. Uma cama que virava sofá, uma cama que virava torradeira de gente, uma cama que subia suas paredes sem parar.

Para uma criança com uma televisão preto e branco em casa, sem nenhuma tecnologia, aquilo representava mágica.

Para uma criança que dormia num beliche, identificava poderes sobrenaturais na cama que regulava a altura.

Ao perceber Juvenal deitado, eu perguntava se ele não desejava sentar para conversar.

Ao perceber Juvenal sentado, eu perguntava se ele não desejava deitar para descansar.

Ele agradecia o carinho, e solicitava o favor de girar a chave.

E lá ia eu rodar minha roda-gigante particular.

O colchão subia aos trancos, numa sequência sucessiva de freadas.

Cada barulho da parada produzia um susto, e meu coração se alegrava. Eu ria alto, naquela gargalhada sincera e ansiosa que vem da mais profunda atenção.

Nunca me diverti tanto. Guardo a certeza de que o hospital foi meu principal brinquedo.

Quando Juvenal morreu, meus três irmãos foram no enterro. Menos eu, que precisava estudar para prova no dia seguinte. Não suportaria estar presente no enterro de minha infância.

No fundo, não falei para ninguém, fiquei magoado com Juvenal, que subiu sozinho sua cama aos céus, sem pedir a minha ajuda.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
01/10/2014

3 comentários:

Anônimo disse...

No final, fiquei meio entristecida. Mas acredito que as melhores horas do Tio Juvenal no hopistal era quando vc estava lá, para subir e descer a cama dele. Bjs Carpinejar.
Guarujá/SP

Pedro disse...

Conheci o seu nome hoje juntamente com o seu trabalho. Adoro a poesia intrínseca na prosa! Seu jeito de escrever doce e leve é pura poesia!

Abraços,
Pedro

Pedro disse...

Também escrevo e tenho um blog. Por favor dá uma olhada lá e me dê um feedback! Ficarei muito honrado!

http://algumjovempoeta.blogspot.com.br/