Arte de Albert Gleizes
Terrível no inverno não é passar frio, mas tentar não passar frio.
É se antecipar ao desconforto do vento e da tremedeira.
Passamos a estação inteira nos adiantando para não sofrer e terminamos sofrendo o dobro.
Nunca conseguimos nos agasalhar para o frio psicológico.
Planejamos um momento em que estaremos protegidos que nunca chega. Sempre falta uma coisa que encerra o aconchego que criamos detalhadamente.
É como se refugiar num abrigo antiaéreo e deixar a sacola de mantimentos lá em cima. Subir ou não subir de volta?
Quantas vezes já tremi a noite inteira somente porque não desejava me levantar para buscar um edredom?
Dentro do sono, eu pensava: será que vou ou não vou? E, por fim, dormia com a angústia da dúvida, tremendo, chamando a gripe para conviver comigo.
Inverno é um dilema permanente, um descuido irreversível.
Vou assistir a um filme na sala com a minha mulher, preparamos pipoca e chocolate quente, puxamos o edredom, demoramos para encontrar o lugarzinho ideal, para nos encaixar entre as almofadas e o encosto, no instante em que alcançamos a perfeição alguém se dá conta da ausência do sal. Qual será a alma caridosa a largar a fortaleza e trazê-lo da cozinha? A tristeza é que – se um sair – recomeçará todo o reposicionamento delicado que levou horas para ser feito.
A ânsia de não sofrer contratempos supervaloriza o incômodo. A mania de querer uma situação ideal nos põe em perigo.
Qualquer movimento em casa é acampamento, com o medo permanente de sair do fundo da barraca após o esforço de montá-la. É trazer tudo para não se mexer depois, mas sempre existe um lapso.
Inverno é frustração, é distração letal.
Quem já não enfrentou o banho rápido, desafiou o gelo do lençol, friccionou seus pés com os pés da esposa, abraçou forte sua companhia debaixo da montanha de cobertas, suspirou de felicidade quando se enxergou novamente quente e, de repente, verifica que a persiana tem uma fresta de luz? É preciso muita coragem para abandonar o acolhimento custoso e reiniciar os trabalhos.
No inverno, por maior que seja a cautela, esqueceremos algo.
Perderemos consecutivamente a vantagem que adquirimos com a prevenção.
Basta encontrar uma posição para se morrer feliz que seremos impelidos a ressuscitar.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.40
Porto Alegre (RS), 10/05 /2015 Edição N°18158
Um comentário:
Que lindo Fabrício. Lembrei-me de POA. Só quem passou invernos solitários no alto de um edifício da Duque de Caxias, com o Minuano preenchendo o vazio do apartamento, flagelando a carne como açoite, sabe o valor de um abraço, ainda que dissimulado.
R. Sica,
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