Arte de Eduardo Nasi
Tenho uma estratégia para dormir nos filmes e parecer que não estou de olhos fechados. Não falo de cinema, sagrado para mim, que não cochilo nem se for um documentário mudo, preto e branco e de cinco horas, mas daquele filme para ver na cama, escolhido um pouco antes da meia-noite, em horário altamente perigoso para quem acorda cedo. Sendo o filme bom, enfrentarei grandes chances de arcar depois com a insônia.
Apesar do medo de aguentar ou não aguentar, participo de nosso ritual familiar com entusiasmo, pois criei uma manha para sobreviver. Opto por um filme que já vi várias vezes. Óbvio que escondo a informação. Aliás, digo o contrário. Solto uma frase animadora que costuma encerrar nossa procura:
— Amor, faz séculos que desejo assistir este filme!
Diante do título que já frequentou até sessão da tarde, a mulher me encara com incredulidade, quase pergunta onde estive nos últimos vinte anos, quase questiona se não vim de uma ilha deserta. Certo de que sente pena das minhas lacunas cinematográficas.
Agora vem a melhor parte. Eu me agarro nela de conchinha, encaixo a cabeça em sua nuca cheirosa, e levanto o queixo preguiçosamente em direção à tevê.
Sua pele é meu vício. Não resisto ao ópio confortável de sua fragrância, e desfaleço. Minha atenção na tela dura dez minutos. Ela pressente minha respiração pesada no cangote, e vira para conferir se dormi. Nesta hora, levanto as pálpebras assustado e finjo que continuo assistindo. Ela não acredita, está na cara de que me entreguei. Como conheço o filme de cor, repito o que aconteceu naquela cena e conquisto o direito da dúvida. Sofro mais vinte apagões antes dos letreiros finais.
De manhã, durante o café, enfrento o inquérito sobre a dissimulação.
— Não dormiu, né? Então me conte como o filme termina?
Descrevo as cenas com detalhes impressionantes, sutilezas, reprodução de diálogos. Convenço e fico solto para viver a impunidade de mais uma madrugada.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
29/04/2015
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