terça-feira, 15 de setembro de 2015

FRALDAS

Arte de Eduardo Nasi

Quem já não ouviu de alguém mais velho “eu lhe conheci de pequeno, troquei suas fraldas”?

Incomoda a forçação de intimidade, pois o enunciado vem grudado na carranca de quem não recorda sequer do nome. Talvez seja um amigo longínquo dos pais, um tio distante, uma prima de terceiro grau.

A feição é completamente estranha para um apelo íntimo. O susto traz um desconforto existencial, passa a ser tomado daquela reação básica de questionar a veracidade do encontro e verificar se ele não está se confundindo.

Só que não. O intruso trata de soletrar o sobrenome de sua família e descrever exatamente onde morava.

Você se vê recebendo de volta o chocalho de seus primeiros anos, o móbile de seu berço e não reconhece as provas como parte de sua identidade.

O desagradável “lembra de mim?” é uma piada perto do “eu lhe conheci de pequeno”.  O primeiro queima a roupa, o segundo queima a pele.

“Eu lhe conheci de pequeno” não tem escapatória; é uma ameaça, uma afirmação categórica, um mandato ancestral, não gera a esperança da dúvida e a hesitação educada. Não resta defesa plausível. A pergunta se enquadra como a mais chata abordagem familiar. Você não conserva nenhuma memória hábil desta época para se defender, será refém de qualquer coisa que seja dita, mentirosa ou verdadeira. Tampouco interessa a informação nada relevante de que ele já lhe viu querubim, peladinho, numa mesa de trocar.

Não existe jeito de ficar à vontade. Volta ao útero do tempo, ao gel no ventre materno, às ecografias fantasmagóricas. O outro se coloca numa posição superior, de supremacia etária, com a longevidade de um Matsulém, com a infalibilidade de um Raul Seixas que viveu há dez mil anos atrás.

Ele estacionou na vaga de idoso na conversa e não sairá dali tão cedo.

Há no cumprimento uma maldade óbvia: já sei de suas m., afinal troquei suas fraldas. Insinua um inconsciente maldito: você não conhece tudo de seu passado.

O pior é que a frase sempre vem com um risinho histérico, babado, que acentua a paranoia. Não entende o motivo da risada.

O meu ímpeto era responder:

- Está na hora de retribuir a gentileza e trocar as sua fraldas geriátricas.

Mas o humor fracassa, a timidez vence o duelo com a infância desconhecida e somente consigo dizer um vago e misterioso “Mesmo?”, e sou obrigado a nascer de novo e ouvir a história inteira.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 09/09/2015

Um comentário:

Tamiris Mend. disse...

Estou do outro do impasse, recordando-me das fraldas que troquei. Ouvi ou vi por aí pessoas que outrora estiveram sob minhas asas e hoje são apenas rostos em retratos perdidos engavetados.