segunda-feira, 1 de agosto de 2016

PONTO CRUZ DA MEMÓRIA


A febre é uma terapia – há o degelo de lembranças longínquas que eu julgava esquecidas. Ocorre um derretimento da memória de longo prazo e acesso antiguidades do meu pensamento com grande facilidade. O factual some, o mais imediato desaparece, em compensação o que estava lá atrás das vivências ressurge como se fosse ontem.
Vem um fluxo livre e rico de evocações. Capturo sons e cores da infância, converto fotografias em preto e branco em animação.
Quando fico com febre, não paro de falar. Deliro. Dou uma palestra exclusiva para a minha mulher. Óbvio que ela se assusta porque não calo a boca.
Mas é um reencontro com o meu passado, sem a censura dos sonhos e o medo dos pesadelos.
Febril, recordo que não conseguia dormir na casa de meu avô paterno. Apagava a luz do quarto e começava uma marcha de ratos pelo assoalho. Eu ouvia certinho a migração dos bichinhos pela extensão das tábuas.
Para me assustar, o primo Beto dizia que os ratos se escondiam no piano durante o dia. Por muito tempo, não me aproximei do instrumento. Imaginava que os ratos saltariam das teclas nos recitais de minha tia.
Febril, recordo que viajava na infância deitado num pelego, no bagageiro do carro. Os pais armavam uma cama nos fundos da Belina. Eu e os irmãos vivíamos num universo à parte dos adultos. Brincávamos de Stop e acenávamos aos motoristas que se aproximavam do para-choque.
Febril, recordo que conhecia os vizinhos pelas suas árvores. Era o Edgar do pessegueiro, era a Florinda da laranjeira, era o Pedro da caramboleira, era o Alencar da bergamoteira. Os pés de fruta serviam de sobrenome às pessoas.
Febril, recordo que a minha avó materna me deixava pressionar os pedais da máquina de costura. Debaixo da cadeira, mexia o acelerador usando toda a força das duas mãos. Ela bordava nomes de noivos nas fronhas dos travesseiros, atendendo a pedidos de enxoval em Guaporé (RS).
Febril, recordo daquilo que nem sabia que era meu, revejo o que fui e me dá muita saudade dos meus mortos.
A minha consciência é somente uma questão de temperatura.
Publicado no Jornal Zero Hora/ Caderno Donna
Coluna Semanal
31.07.2016

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