quarta-feira, 21 de abril de 2010

NO MEIO DE TUDO

Arte de Tereza Yamashita

No guichê da companhia aérea, sempre avanço sobre o computador do atendente, espichando o queixo e exigindo:

— Corredor ou janela, não me deixe no meio, não quero o meio, abomino o meio.

O funcionário explicou que reservaria o lugar desejado, sem problema, que me acalmasse. Com a emissão do bilhete, terminou minha principal ansiedade, o corpo já deslizava com rodinhas para a sala de embarque.

Demonstro preconceito mesmo com a localização, uma exigência pessoal em cada partida, tão importante quanto lembrar em acumular as milhagens no cartão.

O meio é o inferno do céu. Para quem viaja excessivamente como eu, é humilhante ficar prensado entre um que dorme e o outro que também dorme, desconhecidos prestes a desabar em meus ombros e fazer gargarejo do ar refrigerado. Comprovado cientificamente que o passageiro encurralado entre as pontas é incapaz de cochilar. Atordoado como uma babá em seu primeiro dia de trabalho. Sofre de hipertensão arterial, encolhido, cacto na chuva, pronto a se defender dos lapsos dos seus vizinhos. Não poderá se mexer durante as longas horas do trajeto, muito menos trocar de livro e buscar seu laptop. Ou ele pega tudo o que necessita no momento em que entra ou esquece, inútil mudar de ideia. Até para mijar, pensará como acordar seus obstáculos. A voz do comandante é a única abertura com o andamento da viagem.

No voo, descubro que fui enganado. Não havia meio, mas duas poltronas. Eu me vi lesado. Sem alguém pior do que eu, não estou melhor. A janela ou o corredor perdem importância. Precisava zombar de quem não conseguiria colocar o braço nos apoios, de quem sofreria a sensação interminável de sequestro, esmagado como um guarda-sol na garagem.

Aquela empresa estragou o luxo da comparação, arruinou minha brincadeira sádica, pôs abaixo a subdivisão de classe que existe na ala econômica. O meio era a chance de tirar leve vantagem na pobreza.

No corredor sem meio, estava duas vezes no meio. Representava ainda a metade que faltava.

Se estivesse acompanhado da namorada, festejaria o formato: extremamente adequado, romântico, propício para preparar cabana e puxar o edredon. Sozinho, impossível gostar. Parecia que formava um casal com um barbudo anônimo, de óculos e franjas retrô. Parecia amizade forçada por professora. Parecia um encontro arranjado por agência. Parecia um casamento por dote.

Eu e ele formando uma fileira inteira, independente, um encontro às escuras. Uma improvável mesa para dois no bandejão universitário. É muita intimidade para se dedicar a um lado só. Com três passageiros em bloco, é trabalho em grupo, a privacidade sobrevive. Dá para variar o pescoço. Com dois, é torcicolo, tarefa em dupla, chega a ser desconfortável não puxar conversa e não segurar o refrigerante para o repentino colega.

Tomo algumas precauções. Sob nenhuma hipótese aceitarei amendoim. Não posso facilitar.





Crônica publicada no site Vida Breve

18 comentários:

Anônimo disse...

Já viajei com um sujeito que era "piloto da reserva da FAB", nos ufanistas dizeres dele.
Foi minha defloração em avião, porque era minha primeira viagem na aeronave.
Danou-se: o reservista me perguntou se era minha primeira viagem, disse que sim e ele começou a contar quais os acidentes possíveis na decolagem e no pouso de um avião.
Eu me senti nas regiões mais sombrias do Hades.
E me alojava onde? Na poltrona do meio...
**Gostei muito desta postagem.
*Abraço e sucesso!

Anônimo disse...

Eu sempre penso também: "no meio não, no meio não, no meio não, eu tenho me comportado direitinho, por favor!". Abraço, @estelab

Leonardo Medeiros disse...

Sensacional!!!

Odeio viajar no meio também, mas entre o meio e uma poltrona sem meio, fico com a de dois lugares, mesmo que seja alguém gordo, com mau hálito, mau humore todos os outros males...rs


abraçao

Augusto Amato Neto disse...

Hahahahaha. De quem foi a idéia de distribuir amendoim em vôos de passageiros em pares?!?

Anônimo disse...

Eu prefiro sempre a janela. Corredor também é ruim, principalmente quando as malas resolvem cair na sua cabeça e quando resolve te dar esbarrões quando passam pelo corredor.

Rafaelle Almeida disse...

eu prefiro, quando possível, ir de carro! kkk

Cida disse...

"O meio era a chance de tirar leve vantagem na pobreza." É por essa e por outras que estou sempre por aqui... Quem mais, a não ser você Fabro, poderia escrever uma frase dessas???

Não estarei em Poços de Caldas, mas estou espalhando a notícia para quem é de lá e ainda não se ligou. Que tudo saia maravilhosamente bem prá você na terra natal da minha mãe.

Um grande abraço

Cid@

Ramiro Conceição disse...

"Sem alguém pior do que eu, não estou melhor."

Caro poeta Carpinejar, sinto muito lhe dizer mas... o senhor vai para o inferno!
Sabe por quê?
Ora, o aforismo que você escreveu resume 20 séculos da dita Igreja Católica(sem falar no Espiritismo, Pentecostismo, Comunismo, Corinthianismo e o escambau a quatro!).

Higgo disse...

Divertidíssimo !!! Não há palavra errada nesse texto. Muito menos no meio de nada.

Renata de Aragão Lopes disse...

Muitos risos!

Também a mim
o meio não agrada:
esqueda ou direita,
tudo ou nada.

Beijo,
doce de lira

F. Carrasco. disse...

O meio, pessoas escorrendo, joelhos alheios comprimindo os seus a se juntarem, a sensação caustrofóbica de pedir licença. Os cotovelos aéreos. O meio é o todo do desconforto.
O fim do meio é reservar as entradas, chegar cedo, melhor poltrona e gozar no melhor lugar e ver que em vão foi, pois está sozinho, teatro vazio, e você chegou cedo para gabar-se de estar no melhor lugar e ouvir como ninguém ouvirá a boa entonação, mas tudo que há é o eco.

Zélia Guardiano disse...

Espetacular!
Todos nós, que algum dia já viajamos no meio, sabemos perfeitamente o que você quer dizer e diz, com maestria!
Um abraço

{ Scrappiness } disse...

Corredor é melhor para voos longos, não me importo com a janela, mas também não gosto do meio!!

Tudo o que você escreve é bacana, principalmente porque faz graça com o cotidiano, coisa que muita gente nem percebe que existe tal a velocidade com que levam suas vidas. Agradecendo pela pausa no tempo, te dediquei um selinho no meu blog.

Abraços letrados!

Bia Carvalho disse...

Desculpe a invasão, mas eu tenho uma ótima notícia para quem gosta de ler!

O meu blog Amor, Mistério e Sangue está estreando sua primeira promoção em parceria com o escritor Jorge Tavares!!!

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Bjs e boa sorte!

Ana disse...

Fui comissária de bordo por 14 anos, e sempre olhei com comiseração para os passageiros que sentavam no meio. E sempre caprichei mais na bebida e na atenção. rs
Parabéns por tuas crõnicas, adoro teu jeito de escrever. Me sinto como se estivesse sentada ao teu lado ouvindo a história e rindo com tuas peripécias. Muito bom.
Bjs

Ana Luiza

Anônimo disse...

"Se estivesse acompanhado da namorada, festejaria o formato: extremamente adequado, romântico, propício para preparar cabana e puxar o edredon. Sozinho, impossível gostar. Parecia que formava um casal com um barbudo anônimo, de óculos e franjas retrô. Parecia amizade forçada por professora. Parecia um encontro arranjado por agência. Parecia um casamento por dote."
Fantástico!
Estou adorando ler seus textos!
Parabéns!
Sucesso!

ana disse...

Não aceito a palavra voo sem o acento circunflexo.
Voar com ^ é um vôo de primeira classe. Todo poeta prefere voar com ^. Voo sem o circunflexo é voar na fileira do meio. Sem acesso à paisagem, sem a simpatia do corredor.
O acento é a certeza de decolar...

Luciana disse...

Adora o que voce escreve, até o que parece superficial se torna importantissimo.