No guichê da companhia aérea, sempre avanço sobre o computador do atendente, espichando o queixo e exigindo:
— Corredor ou janela, não me deixe no meio, não quero o meio, abomino o meio.
O funcionário explicou que reservaria o lugar desejado, sem problema, que me acalmasse. Com a emissão do bilhete, terminou minha principal ansiedade, o corpo já deslizava com rodinhas para a sala de embarque.
Demonstro preconceito mesmo com a localização, uma exigência pessoal em cada partida, tão importante quanto lembrar em acumular as milhagens no cartão.
O meio é o inferno do céu. Para quem viaja excessivamente como eu, é humilhante ficar prensado entre um que dorme e o outro que também dorme, desconhecidos prestes a desabar em meus ombros e fazer gargarejo do ar refrigerado. Comprovado cientificamente que o passageiro encurralado entre as pontas é incapaz de cochilar. Atordoado como uma babá em seu primeiro dia de trabalho. Sofre de hipertensão arterial, encolhido, cacto na chuva, pronto a se defender dos lapsos dos seus vizinhos. Não poderá se mexer durante as longas horas do trajeto, muito menos trocar de livro e buscar seu laptop. Ou ele pega tudo o que necessita no momento em que entra ou esquece, inútil mudar de ideia. Até para mijar, pensará como acordar seus obstáculos. A voz do comandante é a única abertura com o andamento da viagem.
No voo, descubro que fui enganado. Não havia meio, mas duas poltronas. Eu me vi lesado. Sem alguém pior do que eu, não estou melhor. A janela ou o corredor perdem importância. Precisava zombar de quem não conseguiria colocar o braço nos apoios, de quem sofreria a sensação interminável de sequestro, esmagado como um guarda-sol na garagem.
Aquela empresa estragou o luxo da comparação, arruinou minha brincadeira sádica, pôs abaixo a subdivisão de classe que existe na ala econômica. O meio era a chance de tirar leve vantagem na pobreza.
No corredor sem meio, estava duas vezes no meio. Representava ainda a metade que faltava.
Se estivesse acompanhado da namorada, festejaria o formato: extremamente adequado, romântico, propício para preparar cabana e puxar o edredon. Sozinho, impossível gostar. Parecia que formava um casal com um barbudo anônimo, de óculos e franjas retrô. Parecia amizade forçada por professora. Parecia um encontro arranjado por agência. Parecia um casamento por dote.
Eu e ele formando uma fileira inteira, independente, um encontro às escuras. Uma improvável mesa para dois no bandejão universitário. É muita intimidade para se dedicar a um lado só. Com três passageiros em bloco, é trabalho em grupo, a privacidade sobrevive. Dá para variar o pescoço. Com dois, é torcicolo, tarefa em dupla, chega a ser desconfortável não puxar conversa e não segurar o refrigerante para o repentino colega.
Tomo algumas precauções. Sob nenhuma hipótese aceitarei amendoim. Não posso facilitar.
Crônica publicada no site Vida Breve
18 comentários:
Já viajei com um sujeito que era "piloto da reserva da FAB", nos ufanistas dizeres dele.
Foi minha defloração em avião, porque era minha primeira viagem na aeronave.
Danou-se: o reservista me perguntou se era minha primeira viagem, disse que sim e ele começou a contar quais os acidentes possíveis na decolagem e no pouso de um avião.
Eu me senti nas regiões mais sombrias do Hades.
E me alojava onde? Na poltrona do meio...
**Gostei muito desta postagem.
*Abraço e sucesso!
Eu sempre penso também: "no meio não, no meio não, no meio não, eu tenho me comportado direitinho, por favor!". Abraço, @estelab
Sensacional!!!
Odeio viajar no meio também, mas entre o meio e uma poltrona sem meio, fico com a de dois lugares, mesmo que seja alguém gordo, com mau hálito, mau humore todos os outros males...rs
abraçao
Hahahahaha. De quem foi a idéia de distribuir amendoim em vôos de passageiros em pares?!?
Eu prefiro sempre a janela. Corredor também é ruim, principalmente quando as malas resolvem cair na sua cabeça e quando resolve te dar esbarrões quando passam pelo corredor.
eu prefiro, quando possível, ir de carro! kkk
"O meio era a chance de tirar leve vantagem na pobreza." É por essa e por outras que estou sempre por aqui... Quem mais, a não ser você Fabro, poderia escrever uma frase dessas???
Não estarei em Poços de Caldas, mas estou espalhando a notícia para quem é de lá e ainda não se ligou. Que tudo saia maravilhosamente bem prá você na terra natal da minha mãe.
Um grande abraço
Cid@
"Sem alguém pior do que eu, não estou melhor."
Caro poeta Carpinejar, sinto muito lhe dizer mas... o senhor vai para o inferno!
Sabe por quê?
Ora, o aforismo que você escreveu resume 20 séculos da dita Igreja Católica(sem falar no Espiritismo, Pentecostismo, Comunismo, Corinthianismo e o escambau a quatro!).
Divertidíssimo !!! Não há palavra errada nesse texto. Muito menos no meio de nada.
Muitos risos!
Também a mim
o meio não agrada:
esqueda ou direita,
tudo ou nada.
Beijo,
doce de lira
O meio, pessoas escorrendo, joelhos alheios comprimindo os seus a se juntarem, a sensação caustrofóbica de pedir licença. Os cotovelos aéreos. O meio é o todo do desconforto.
O fim do meio é reservar as entradas, chegar cedo, melhor poltrona e gozar no melhor lugar e ver que em vão foi, pois está sozinho, teatro vazio, e você chegou cedo para gabar-se de estar no melhor lugar e ouvir como ninguém ouvirá a boa entonação, mas tudo que há é o eco.
Espetacular!
Todos nós, que algum dia já viajamos no meio, sabemos perfeitamente o que você quer dizer e diz, com maestria!
Um abraço
Corredor é melhor para voos longos, não me importo com a janela, mas também não gosto do meio!!
Tudo o que você escreve é bacana, principalmente porque faz graça com o cotidiano, coisa que muita gente nem percebe que existe tal a velocidade com que levam suas vidas. Agradecendo pela pausa no tempo, te dediquei um selinho no meu blog.
Abraços letrados!
Desculpe a invasão, mas eu tenho uma ótima notícia para quem gosta de ler!
O meu blog Amor, Mistério e Sangue está estreando sua primeira promoção em parceria com o escritor Jorge Tavares!!!
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Bjs e boa sorte!
Fui comissária de bordo por 14 anos, e sempre olhei com comiseração para os passageiros que sentavam no meio. E sempre caprichei mais na bebida e na atenção. rs
Parabéns por tuas crõnicas, adoro teu jeito de escrever. Me sinto como se estivesse sentada ao teu lado ouvindo a história e rindo com tuas peripécias. Muito bom.
Bjs
Ana Luiza
"Se estivesse acompanhado da namorada, festejaria o formato: extremamente adequado, romântico, propício para preparar cabana e puxar o edredon. Sozinho, impossível gostar. Parecia que formava um casal com um barbudo anônimo, de óculos e franjas retrô. Parecia amizade forçada por professora. Parecia um encontro arranjado por agência. Parecia um casamento por dote."
Fantástico!
Estou adorando ler seus textos!
Parabéns!
Sucesso!
Não aceito a palavra voo sem o acento circunflexo.
Voar com ^ é um vôo de primeira classe. Todo poeta prefere voar com ^. Voo sem o circunflexo é voar na fileira do meio. Sem acesso à paisagem, sem a simpatia do corredor.
O acento é a certeza de decolar...
Adora o que voce escreve, até o que parece superficial se torna importantissimo.
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